terça-feira, 24 de abril de 2012

Uma vez caloiro, nunca mais caloiro



Paulo Moreno Toscano escrevia no "Palito Métrico" (Conselhos para os Novatos ocuparem o tempo das férias...) [Coimbra Editora, 1942, p.191]

«É tão antigo o costume de chamarem Novatos aos que na Universidade se matriculam no primeiro ano, como são as Universidades no mundo.»

A palavra «caloiro» designava originalmente o aluno dos liceus, sendo o «novato» aquele que, como se vê, se matricula no primeiro ano.

Qual seja a origem da palavra «caloiro» é irrelevante para o caso que aqui me traz: É possível ser-se caloiro mais do que uma vez?

Este é um dos erros mais incompreensíveis que se têm transmitido ultimamente em Praxe. Como se terá chegado até aqui? Como é possível que alguém defenda que se pode ser caloiro 2, 3 - n vezes?

No Porto usava-se o seguinte aforismo: «Ser caloiro é um estado de espírito». E assim é, de facto. Tal como há «adultos» (em idade...) que nunca passaram da adolescência, também há veteranos com mentalidade de caloiro, de bicho e até mesmo de polícia: «Caloiro está três furos abaixo de cão e sete acima de polícia».

Pelo contrário, caloiros há que sabem mais que a Lúcia. E por isso existiu sempre a figura da alforria. Se o caloiro mostrava dotes invulgares de humor e companheirismo, muitas vezes era imediatamente alforriado logo no primeiro dia, significando que perdia o estatuto de caloiro/novato, passando poder sair às horas que queria sem ser incomodado, etc.

E quando isso não acontecia? Vejamos o que diz ainda o «Palito Métrico», num soneto de António Duarte Ferrão:

«Conselho saudável a um Novato

Será muito obediente ao Veterano,
Será no seu falar muito encolhido
E quando for (quod absit) investido(=praxado),
Tudo executará com rosto lhano (=cara alegre):

Se acaso ouvir dizer: "Fora, pastrano", (=pastor; nada que ver com "pasta"...)
Vá andando, não se dê por entendido;
Porque o mais é mostrar-se compreendido,
E além disso, arriscar-se a maior dano:

Se dos quinze de Maio se vir perto
Sem que lhe tenha alguém montado em cima,
Pode pesar-se a cera pelo acerto:

Mas de gabar-se disto se reprima;
Pois lá diz um ditado muito certo,
Que até lavar os cestos é vindima.»

"Quinze de Maio" era o fim do ano lectivo e início da época de exames. Se o caloiro não tivesse sido montado até essa data, podia pesar a cera pelo acerto (podia acender uma velinha aos santos), mas que não se gabasse de não ter sido investido (praxado, diríamos nós), pois até ao fim dos exames ainda podia ser... mas a partir daí, já não.

Ora, como se vê, a tradição (os textos que citamos são anteriores a 1765 - sim, mil setecentos e sessenta e cinco, não é engano) consagra que a partir do fim do primeiro ano lectivo o aluno deixa de ser Novato (Caloiro, para nós). Mais: a mudança de designação é automática. Isto é, o aluno deixa imediatamente de ser "Novato" para passar a "Semiputo", etc. Não precisa, pois, sequer de ser investido (praxado) para deixar de o ser.

Como se justificam expressões como "Passar na Praxe" ou "Matrículas na Praxe"?

Como ensina ainda Paulo Moreno Toscano:

«Aos do segundo [ano] costumam nomear por Semiputos (...). Aos do terceiro, Pés de Banco (...). Aos do quarto, Candeeiros (...).»

E o traje? Quando pode o Novato/Caloiro usar traje? Seja agora António Castanha Neto Rua, em meados do séc. XVIII (dezoito, sim, não é engano) em «O Sábio em Mês e Meio» (Palito Métrico, Coimbra Editores, 1942, p. 332) quem no-lo ensine:

[Um bacharel recém licenciado por Coimbra está de visita a um pároco de aldeia seu amigo. Um dia, apareceu por lá um sobrinho do bom abade, rapaz espigadote, que ia candidatar-se à Universidade. O bacharel engraçou com o moço e começou a dar-lhe conselhos sobre o que fazer quando chegasse a Coimbra]

«[Depois da investida dos veteranos amigos do seu primo, e antes de fazer sequer os exames de admissão], como eu desejo que Vossa mercê seja completo, passe imediatamente a comprar a sua batina em segunda-mão. A isto objectou o Tio (...) - Que ele tinha muito dinheiro e não queria que seu Sobrinho apanhasse os suores de ninguém. Ao que o [aldrabão] do bacharel tornou com [o seu] costumad[o ar de gozo]: Senhor Padre,  Vossa Mercê destas coisas não pesca: a batina que lhe recomendo é para o primeiro ano, a fim de não parecer Novato e livrar-se da injúria de lhe chamarem Calouro, Boroeiro, Felpudo e outros nomes que se engendram segundo o vagar e a fantasia de cada um, pois, [lá diz o ditado] "Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele" e foi indo por diante.
Vestido pois de batina, peça a seu primo que o ensine a traçar segundo a moda (...)»

O Novato/Caloiro pode ou não trajar? Cada um conclua daqui o que puder... ou fique caloiro para sempre.

E os caloiros estrangeiros? Este problema só se começou a pôr a partir de 1911, com a criação da Universidade do Porto (e de Lisboa) - uma vez que até essa altura existia apenas a Universidade de Coimbra.

Com o trânsito de alunos entre as duas universidades, foi necessário, a partir de determinada altura, chegar a entendimentos entre as duas academias. Penso que a princípio o problema continuou a não existir, sendo cada aluno imediatamente aceite no grau hierárquico que lhe competia.

Verdadeiramente, aparece a designação de caloiro estrangeiro no Código de Coimbra de 1957 e, mais tarde, no projecto de código do Porto (anos 80), que  se limita a copiar o de Coimbra, com muitos laivos de invenção pelo meio.

É efectivamente a partir dessa altura (anos 60 em Coimbra e sobretudo a partir  de finais dos anos 80 e início dos anos 90, no Porto) que deixa de haver "paralelismo", embora os alunos transferidos não fossem molestados ou alvo de certos "abusos", como anos mais tarde viria a suceder (e que hoje se observa).
Não praxavam, mas também não eram praxados.

Sobre isso, disse-nos o nosso amigo Zé Veloso (do blogue Penedo d@ Saudade, e estudante de Coimbra e Porto nos anos 60) o seguinte, quando por mail o questionámos sobre como era no tempo dele:

"No meu tempo de Coimbra, quem chegasse a Coimbra vindo de outra universidade era sempre considerado "caloiro estrangeiro".
Eis o que diz o Código da Praxe de 1957:
«Pertencem à categoria de caloiros estrangeiros os alunos que, embora já tendo estado matriculados no ensino superior, português ou estrangeiro, todavia estejam matriculados na Universidade de Coimbra pela primeira vez.»
Os caloiros estrangeiros tinham limitações de circulação na cidade, idênticas às dos restantes caloiros, depois do toque da cabra, mas não podiam ser rapados. Estas prescrições eram seguidas.
Os caloiros estrangeiros não eram "mobilizáveis", ou seja, não eram alvo de troças (de prática e de jure).

Quem chegava ao Porto... nada havia de praxes. Nem na Faculdade de Engenharia nem da de Ciências (onde fiz uma cadeira que trouxe de Coimbra atrasada)."

Os anos 80 vêm, pois, agravar o problema, com a criação exponencial de universidades e a criação de códigos de praxe a metro. As novas universidades quiseram diferenciar-se a todo o custo, criando as suas próprias praxes. Surgiu assim o argumento de que o aluno que vem  de outra universidade não conhece "a nossa praxe", pelo que terá de ser "caloiro" para aprender a praxe da casa...

Esta postura contém um erro de base, uma vez que parte do princípio que a praxe serve para ensinar a Praxe aos caloiros. Não serve. A Praxe existe acima do caloiro e do veterano, vinculando ambos a um conjunto de direitos e deveres.

Ninguém sabe tudo de praxe. Quem o afirmar é um mentiroso. Ora, se ninguém sabe tudo de praxe, então andamos todos a aprender. Então somos todos caloiros!  - é a única conclusão a que podem chegar aqueles que dizem que a praxe serve para ensinar a Praxe... Ora isto não parece razoável a ninguém.

Quando um aluno muda de universidade, não me choca que passe por um período de iniciação/adaptação a novos costumes. Um semestre parece-me razoável. O que me parece igualmente é que este já não será um "novato" nas andanças universitárias, pelo que não deverá ser tratado como um «caloiro puro», sendo integrado no grau hierárquico que lhe cabe, de acordo com o ano curricular que frequentar - mesmo que seja o último.

"Putus" (e o feminino "puta"), em latim, significa "Puro, sem mistura, não adulterado". "Semi puto" quer dizer "quase puro", "quase refinado". Ora a investida (praxe, se quiserem) destinava-se a isso mesmo - a purificar, a refinar, a retirar as impurezas do caloiro, identificado como sendo aldeão, rústico, pastor. Sendo assim, e partindo do princípio de que já foi "depurado" noutra universidade, precisará agora apenas de "limar algumas arestas" - o tal período de adaptação.

Sejamos razoáveis - tanto é o que se pede e aconselha, tendo em conta que um caloiro é, antes de mais e acima de qualquer outra coisa um ser humano e um colega de curso, não um saco de pancada para as nossas frustrações.

Há quem entenda que o caloirado é em tudo semelhante à instrução básica da tropa: só quando o recruta dominar um conjunto de técnicas básicas (marchar, formar, pôr a arma ao ombro, identificar as divisas e as patentes, etc.) é que pode passar ao grau seguinte. Nada de mais profundamente errado! Embora a praxe e a instituição militar sejam fortemente hierarquizadas, em praxe a passagem de um estatuto ao seguinte é automática - na tropa, não. Outra diferença reside no facto de na tropa existir subordinação efectiva e um poder real e legal entre superiores e subordinados - em caso de guerra, o superior chega a ter poder de vida e morte sobre os subordinados. Nada disso se passa em Praxe, onde não existe poder efectivo,  mas apenas consentido. Triste do que acredita que é efectivamente mais do que um caloiro...

O caloirado é uma janela temporal, que fica aberta durante um ano lectivo e se fecha automaticamente. E é dentro desse limite temporal que o caloiro pode ser sujeito (se nisso consentir) a um determinado número de práticas.


----------------------------
As imagens publicadas neste artigo foram retiradas da Internet.

Nenhum comentário:

Postar um comentário