quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Notas ao filme "Capas Negras". Tradição com passado.

Não é especialmente pelo filme, numa detalhada análise técnica, mais ao gosto de verdadeiros cinéfilos, mas um olhar arguto para algo que muitos esqueceram de ver: o que é genuino, essência e fundamento das coisas.

É uma análise sobre um filme que documenta como era, de facto, a Praxe e a Tradição, longe dos papismos e invenções que se vieram a introduzir, nomeadamente do Código de Praxe de 1957 em diante.
Um artigo delicioso, pela mão do colega, e professor, Eduardo Coelho, e que deveria fazer pensar muito gente que acha saber de Praxe, a começar pelos que ocupam funções nos organismos que coordenam ou tutelam a praxis académica.
 
 
Aqui fica o texto (publicado em 1ª mão em 2012, no Blogue "Portvs Cale Tvnae", do meu querido amigo, o Dr. Ricardo Tavares):
 
 

“Capas Negras é um filme português, realizado por Armando de Miranda em 1947. Tem argumento de Alberto Barbosa e José Galhardo. Os principais actores são Amália Rodrigues, Alberto Ribeiro e Artur Agostinho, Vasco Morgado, Barroso Lopes, Humberto Madeira, António Sacramento e Graziela Mendes.
O filme foi estreado em Maio de 1947 e bateu todos os recordes de exibição até então. A seu lado está Alberto Ribeiro. Foi gravado na Real República do Rás-Teparta, na Rua dos Estudos, em Coimbra. Esta república viria mais tarde a mudar-se para o n.º 6 da Rua da Matemática, onde ainda hoje se encontra, em virtude da demolição de casas de habitação da alta coimbrã para construção das Faculdades. "Capas Negras" esteve 22 semanas em cartaz, tornando-se no maior sucesso do cinema português. Amália obteve o maior sucesso como actriz.”
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Capas_Negras

Não admira que o filme (http://www.youtube.com/watch?v=2wK6oQzd07g) tenha feito tanto furor à altura – atente-se no elenco. O enquadramento, em si, num espaço físico, social e “etário” que assume quase as proporções de mito – a Coimbra dos relatos humorísticos e saudosos de Trindade Coelho, de Antão de Vasconcelos e de tantos outros que dão sentido à famosa quadra do Vira de Coimbra:

Coimbra, terra de encantos,
Fundo mistério é o seu:
Chega a ter saudades dela
Quem nunca nela viveu.

O encanto do filme reside precisamente na evocação desse espaço-tempo de sonho, que faz com que cada português sinta Coimbra um pouco também como sua e se reveja nas aventuras, venturas e desventuras de uma cidade eternamente jovem.

E é como “documentário” desse “sonho” - passe a contradição – que a película se torna especialmente eficaz.

Para nós, o filme começa a ter interesse a partir de 0:51:41, altura em que a acção se transfere para o Porto

Particularmente interessante é o discurso feito no jantar de despedida do “Coca-Bichinhos”. Antes de anunciar a partida do colega para o Porto, prática corrente à época – e que explica os fortíssimos laços que unem as duas academias e a influência (e até certo ponto descaracterização) que a praxe portuense sofreu por parte da praxe coimbrã(1), o “Manecas” (Artur Agostinho) proclama:

Estamos aqui reunidos na tasca da Ti’ Zefa para festejar o honroso convite que foi dirigido à Tuna e ao Orfeão de Coimbra para se irem exibir triunfalmente em terras de Espanha.

O filme segue o seu curso, com imagens do Porto dos anos 40 (Estação de S. Bento, pontes de D. Maria e D. Luís, Aliados, a Foz, o Coliseu...)

A 1:20:09, surge uma página de jornal com a seguinte “notícia”:

Partiu para Espanha a Tuna Académica de Coimbra que leva como cantor de fados o distinto advogado Dr. José Duarte.
O Jornal de Notícias prossegue:
MADRID, 9 – Estreou-se a Tuna Académica de Coimbra. Êxito extraordinário do Dr. José Duarte.
O Diário de Coimbra dá a seguinte nota:
VIGO, 26 – A Tuna e o Orfeon de Coimbra obtiveram um triunfo completo nesta cidade.
E, n’O Comércio do Porto:
De regresso da Galiza chegam hoje ao Porto a Tuna e o Orfeon da Academia de Coimbra.

Este destaque dado às deslocações dos agrupamentos tuneris portugueses ao estrangeiro (sobretudo a Espanha) era prática corrente. E era indiferente que a tuna fosse do Porto ou de Coimbra: a simpatia era idêntica, sendo os estudantes acarinhados pela imprensa de norte a sul do País.

Especialmente interessante para o “Portus Cale Tunae” é o facto de uma tuna ser filmada nesta cidade.

Em 1:20:46, vemos os tunos de Coimbra a sair da estação de S. Bento, onde foram recebidos pelos colegas do Porto e população em geral, saindo do recinto sob um fortíssimo aplauso e vivas a Coimbra. E nova cena deliciosa: o “Zé Duarte”, ainda trajado, acabado de chegar da digressão, corre ao Tribunal a defender a sua amada “Maria de Lisboa” (Amália Rodrigues), que desprezara injustamente. A quantos de nós não sucedeu já irmos para o trabalho ainda trajados, depois de uma digressão ao estrangeiro... ou às janelas das vizinhas...

Contudo, é a partir de 1:30:39 que assistimos a algo inédito – e, cremos nós, irrepetido - em todo o cinema português: uma tuna no grande ecrã.

A cena é filmada na escadaria do Tribunal de S. João Novo (Tribunal da Relação). A música – e sobretudo a letra – transportam o presidente do Tribunal para os seus tempos de juventude em Coimbra e abafam por completo o discurso moralista do Procurador do Ministério Público. A assistência já não consegue ouvir os argumentos sisudos, legalistas e eloquentes do esforçado tribuno. Debalde tenta fazer-se ouvir, mas já ninguém lhe presta atenção, transportados que estão todos pela música que chega do exterior.

E o filme termina justamente nessa nota etérea e quase onírica. A Tuna vem salvar uma inocente das garras de uma lei que se refugia nos aspectos formalistas para obter uma condenação exemplar. No entanto, e pela voz da Tuna, “outro valor mais alto se alevanta”: o amor redime mais que a justiça – um acto de justiça poética, na verdadeira acepção da palavra.

Pelo meio da trama ingénua, alguns aspectos importa retirar, no que à tuna concerne:
1) A popularidade e a estima de que a tuna estudantil goza junto da população em geral;
2) O sentido de fraternidade entre os elementos das duas academias, sem bairrismos bacocos e despropositados;
3) Curiosamente, o “estigma” social de que o “Dr. José Duarte” foi vítima, pelo facto de ser “fadista”, manifesto na ausência de clientes, que desconfiavam das competências científicas do “advogado-cantor”, preconceito que ainda hoje se faz sentir sobre os tunos;
4) A postura da tuna, que interpreta o tema de pé, na escadaria, algo absolutamente incomum numa altura em que as tunas actuavam sentadas;
5) Sendo de Coimbra, a tuna actua de capa pelos ombros, não de capa traçada, ao contrário do que tanto se tem apregoado e praticado;
6) A nível de instrumentos, temos bandolim, guitarras portuguesas e guitarras clássicas, sem qualquer instrumento de percussão visível.

Vimos isto e muitas mais coisas. Mas tão importante como o que vimos é aquilo que não vimos:

a) Vimos camaradagem franca e leal entre estudantes, independentemente da sua posição hierárquica, e entre academias;
b) Vimos uma espera de uma trupe a um caloiro;
c) Vimos que o veterano aparece para pedir protecção para o caloiro, não para agravar ainda mais a situação;
d) Vimos que a trupe pergunta “O que é pela praxe?” – não disparates em latinório macarrónico, como “Quid Praxis?”;
e) Vimos veteranos sempre trajados;
f) Vimos o à-vontade com que o caloiro “Já-cá-canta” (Humberto Madeira) convive com os outros repúblicos, mesmo com os veteranos, tratando-os por “tu”;
g) Vimos colegas mais velhos a brincar com colegas mais novos;
h) Não vimos imbecis a mandar “encher” e a berrar aos ouvidos;
i) Não vimos caloiros de olhos no chão, em posições humilhantes e com ar assustado;
j) Não vimos tanta imbecilidade a que hoje em dia se assiste gratuitamente, praticada em nome de uma invenção doentia a que infelizmente se colou com cuspo o nome de “praxe”;
k) Não vimos pretensos manda-chuvas em bicos de pés, a quererem ficar numa fotografia para a qual não foram convidados e onde fazem tanta falta como uma viola num enterro;
l) Não vimos a tuna a pedir licença fosse a quem fosse para ir onde lhe apeteceu ou fazer o que bem entendeu.

Pouco mais de uma hora e meia passada com um sorriso nos lábios. Definitivamente, um filme a ver e divulgar.

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(1) De entre os nomes destes “imigrantes”, avulta o de António Pinho Brojo, que se deslocou para a Invicta pelas mesmas exactas razões que o nosso “Coca-Bichinhos”: frequentar a Faculdade de Farmácia. Este trânsito foi uma constante até aos anos 80, sendo frequente os estudantes de ambas as academias concluírem o curso na outra, fosse para seguirem planos de estudos que as respectivas universidades não ofereciam (Engenharia era um caso paradigmático), fosse para tentarem concluir uma cadeira cujo catedrático os tivesse “tomado de ponta”.

 
 
 




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