domingo, 24 de abril de 2016

Notas aos Relógios na Praxe

O relógio de bolso e o relógio de pulso na Praxe

 Não há como negá-lo: grassa uma enorme confusão e um enorme equívoco quanto ao uso de relógio de pulso com traje académico.
Muito se ouve dizer, nos meios estudantis, nos meios praxísticos, que não se usa relógio de pulso quando trajado.
Nunca ninguém, contudo, conseguiu dar uma cabal explicação e justificação para esse facto. Nenhum código que preconiza tal tonteria sequer explica o porquê dessa determinação.

Esse mito, criado sabe-se lá bem quando e onde (entre os anos 80 e 90 do séc. XX), foi replicado por sucessivas criações de novos códigos de praxe, nas emergentes e recém-criadas instituições de ensino superior, que mais não eram do que cópia de outro(s) que se adaptava(m) e reformulava(m) – e que outros copiavam e alteravam…e assim por diante.
O facto é que essa ideia, tornada lei proibitiva em muitos códigos, não passa de um enorme equívoco que não tem qualquer suporte histórico que o valide.
Todos eles (os que dizem que é proibido o relógio de pulso) permitem, apenas, o uso de relógio de bolso (vulgo cebolas), supostamente por ser a tradição histórica entre os estudantes de antigamente; supostamente porque nunca o relógio de pulso foi de praxe, era usado, era tradicionalmente utilizado.

Pois nada mais falso.
Este é mais um dos muitos mitos, das muitas mentiras e ficções que enchem páginas e páginas de códigos ditos “de Praxe”.
E vejam que até estudantes de Coimbra e Porto encontramos com essa ideia errónea, quando nunca o código de Coimbra, nem mesmo o projecto de código do Porto (de Balau e Soromenho), alguma vez, proibiram o relógio de pulso.
De Praxe não é nenhum relógio, como nunca o foi historicamente.
De Praxe, então, é qualquer relógio, seja de pulso ou de bolso, de ponteiros ou digital, de marca ou comprado nos chineses.


O que sabemos, historicamente?

 O relógio de pulso aparece na 2ª metade do séc. XIX, com várias empresas a reclamarem para si o ónus da invenção, como é o caso da empresa Patek Philippe, no fim do século XIX com rápida difusão, a qual, segundo consta, se deve, igualmente, ao famoso Alberto Santos Dumont que, em idos de 1904, pediu ao seu amigo, o famoso joalheiro Louis-François Cartier, que lhe desenhasse um relógio adequado aos rigores e necessidades dos aviadores, e que viria a ser o 1º relógio de pulso masculino (pois femininos já existiam).

Dada a enorme fama que gozava, foi, de imediato, imitado, popularizando-se o uso do relógio no pulso, passando a ser ícone de “estar na moda” e, logo, entrando nos adereços imprescindíveis da toilette masculina, a começar pelos da alta sociedade.

Note-se, a título de curiosidade, que o relógio de pulso se torna referência social para diferenciar o lado esquerdo do direito, dizendo a etiqueta que “o lado esquerdo é o do braço onde colocamos o relógio.”

 Sabemos, igualmente que, em Portugal, o relógio se populariza muito rapidamente a partir de 1914, como aliás em toda a Europa, por impulsão da I Guerra Mundial, pois os soldados precisavam de um meio prático de saberem as horas.
Um artigo publicado na revista "Sábado" (nº 334 de 23 a 29 de Setembro de 2010, p. 52-68), sobre "O dia-a-dia em Portugal há 100 anos", do historiador Rui Ramos, confirma (p. 60) que " O relógio de pulso se tornou popular entre os jovens em 1914".

Assim, a rapaziada rapidamente teve acesso a um “gadjet” bem mais barato e apetecível, bem mais prático e na moda, substituindo, rapidamente, os dispendiosos relógio de bolso (que não estavam ao alcance de todas as bolsas e eram reservados à idade adulta – muitas vezes passados de pais para filhos, normalmente ao mais velho, em jeito de herança, quando estes se emancipavam e “substituíam” seus pais no “comando” da família).

 Relógio de Bolso? Só para alguns.

 É, pois, natural que, até mesmo em Coimbra, Porto ou Lisboa, assim se verificasse essa mudança entre os estudantes.

 De realçar que afirmar que era prática generalizada os estudantes usarem relógio de bolso (que é o que supõem, mal, os códigos de praxe, numa espécie de revivalismo histórico romanceado) é falacioso. Não apenas por ser objecto dispendioso, mas porque a larga maioria dos estudantes nem posses teriam para ter um seu – mas porque, para terem horas, podiam sempre recorrer ao rebater da “Cabra[1]” ou de qualquer outro sino que, do alto das torres das igrejas, iam dando as horas (as “matinas”, as “ave-marias” pelas quais o povo organizava a sua vida no campo ou na cidade).

O relógio de bolso era, de facto, usado pelos estudantes até à década de 40-50, e António Nunes diz que "O relógio de bolso ou “cebola”, em ouro e prata, com ou sem símbolos, com e sem monogramas, é um objecto de prestígio tradicionalmente usado pelos estudantes de Coimbra do sexo masculino" , mas, mesmo assim, não o era pela maioria, tendo sido gradualmente substituído pelo de pulso (esse sim bem mais generalizado).
Estranha-se, assim, que os muitos praxistas que defendem (e defendem mal, por ignorância) que o traje foi criado para esbater as diferenças sociais (bem sabemos que tal é falso), sejam, muitas vezes, os mesmos que dizem ser proibido o relógio de pulso para se usar o de bolso – quando o relógio de bolso, nesse contexto, é, até, sinal de riquismo e, logo, discriminatório (se visto desse prisma).

O meu amigo Zé Veloso, cujo belíssimo artigo dedicado às Latadas o N&M reproduziu, diz, a esse propósito, que “(…) só uma sociedade de abastança e desperdício como a de hoje se pode dar ao novo riquismo de adquirir um relógio de bolso (quando muitos nem relógio têm e usam o telemóvel) para usar meia dúzia de dias, que é o tempo que muitos hoje vestem a capa e batina.”

Uma coisa é inegável: o relógio de bolso desde sempre está ligado a uma imagem iconográfica da alta aristocracia, dos mais abastados (burgueses, clérigos…), ou como peça de valor inestimável que só aparecia nos trajos domingueiros da plebe masculina.

Eduardo Coelho diz-nos, sobre o assunto:

"...a ostentação do relógio de bolso na viragem do séc. XIX era uma declaração política da burguesia republicana - tal como o bigode, por contraposição às barbas, preferida pela nobreza (ou com aspirações a...)
Outros
símbolos eram o chapéu de coco e a casaca.
Não podemos esquecer que a moda das sociedades secretas anarquistas, maçónicas - libertárias, de uma forma geral - assolou a comunidade estudantil de Coimbra e, em muito maior medida, a do Porto, cujas propensões livre-pensadoras encontravam expressão muito mais declarada num meio burguês como o do Porto (cf, por ex., a revolta dos sargentos de 31 de Janeiro).
Que se vejam inúmeras fotos de académicos de 189... sempre de relógio de bolso, entendo, por 2 razões: a raridade do relógio de pulso e a afirmação política, por um lado, e a ostentação de riqueza - as correntes dos relógios não seriam propriamente de latão.
Além disso, o relógio de pulso não se via. Na mentalidade do burguês, de que serve gastar dinheiro em algo que não se vê nem dá para esfregar na cara do vizinho?
Se essa gente soubesse história... Perceberia que o relógio de bolso ( a corrente do relógio) é muito mais um sinal exterior de riqueza (porque se vê) do que o relógio de pulso ( que não se vê).
Na Tuna de Arentim, Braga, nos anos 40, um dos elementos comprou um relógio de pulso. Mandou o alfaiate subir a manga esquerda do casaco para que, ao tocar viola, todos pudessem ver a maravilha - era o primeiro das redondezas. Esta história é verídica.".


De onde vem a questão da proibição?

 O historiador, e investigador, António M. Nunes, autor do reputado blogue Virtual Memories, diz que, e citando, “A interdição do uso do relógio de pulso é uma regra de etiqueta própria da grande casaca preta civil de abas de grilo, muito usada por chefes de estado, cantores de ópera, membros de grandes orquestras, ilusionistas. O porte da casaca obedece a normas muito rigorosas, que constam habitualmente dos manuais de cerimonial e protocolo. Por extrapolação, alguns estudantes oriundos das classes populares e da média burguesia em busca de afirmação social importaram para o mundo das tradições académicas preceitos do cerimonial de Estado.”.

Não estou em crer que fosse essa a razão entre os estudantes, pois a proibição nasce a partir da década de 80-90 do século XX, pela mão de algum saudosista que, como está bem de ver, pouco ou nada perceberia de protocolo, de história ou mesmo de tradição académica.

 Não deixa de ser verdade que, em momento de gala, de cerimonial, manda a etiqueta que não se use relógio de pulso. António Nunes sublinha que tal é “desaconselhado quando se envergam vestes de gala sejam elas masculinas ou femininas.”. Mas, nessas mesmas circunstância, também o de bolso não se permite.

Ora, em quantas situações o Traje Académico é usado em momento de gala ou cerimonial, de facto (julgamento e baptismo do caloiro, latada, cortejo da queima, entre outros, não assumem essa dimensão)?

Ora, exceptuando uma Oração de Sapiência, uma Missa de Finalistas, uma Entrega de Diplomas, um Chá Dançante (Baile de Gala), considerando que sejam os momentos de maior gala e solenidade……. poucas serão as ocasiões onde o relógio tenha de sair do pulso (ou do bolso do colete, no caso da "cebola").

Na larga maioria das vezes em que os estudantes trajam não o fazem nesse contexto, daí não haver qualquer fundamento para proibir o relógio de pulso.

Aliás, disse-me António Nunes que “Pela praxe conimbricense, não há nada que proíba o porte de relógio de pulso e quem o vier proibir será por desconhecimento.”, a que acrescentamos que também o não é pela praxe do Porto, como nunca o foi, até finais de 1980 e inícios dos 90, em nenhuma outra academia.

 Ao que parece, a proibição virá de uma interpretação deturpada de algum testemunho pessoal, do ideário construído em torno das imagens de época retratadas em tantos e tantos filmes, no fundo, uma espécie de febre do passado, a relembrar o gosto dos historiadores de finais do séc. XIX e inícios do XX, na sua adulação pelo medieval, pelo antigo (o mesmo que levou tanta gente a dizer, erradamente, que as Tunas eram uma tradição de 6 séculos).


Qual usar?

 O facto é que, goste-se ou não, essa febre pelo relógio de bolso em detrimento do de pulso, que tanto código apregoa, mais não é do que mero snobismo, quando imposto.

Esteticamente é bonito, não podemos negar. Quem o quiser usar, pois que o faça, mas não se queira é tolher o entendimento e vir com argumentos sem qualquer fundamento, a quererem proibir o relógio de pulso e a elevar as qualidades histórico-praxísticas(inexistentes) da “cebola”.

Não há nenhum motivo de natureza tradicional ou histórica que, em Praxe, determine coisa alguma.

Usou-se o relógio de bolso, tal como, depois, e de forma muito mais generalizada (e em maior número) o relógio de pulso.

Note-se que, até à data, ainda não encontrei qualquer documento fotográfico de época, que evidenciasse o uso corrente do relógio de bolso; aliás, todas as fotos que observei (abarcando clichés desde o séc. XIX), é difícil vislumbrar estudantes com relógio de bolso (um ou outro, apenas), prova de que o uso não era generalizado (se bem que, e em abono da verdade, quando devidamente trajado, seja difícil ver o mesmo, quando se está a posar para a máquina).

Alguns exemplos:

1907:
























1908:





























1909:




















1912:














1923:



















1927:













1936:
















 Inquirindo o ilustre Zé Veloso, também ele um investigador destas matérias, o mesmo me disse que, e passo a citar, “não tenho dúvida de que o meu pai, nos anos 30, usava a capa e batina com o único relógio que tinha, que era um relógio de bolso, já que os de pulso não eram correntes naquela época

Assim como não tenho qualquer dúvida de que no meu tempo de Coimbra - anos 50 (liceu) e 60 - só se usava relógio de pulso... porque o relógio de bolso tinha caído em desuso e só era usado por homens maduros ou velhos. Falo também pela Academia do Porto, onde estive integrado de 66 a 69.”


Parece, pois, evidente, que o relógio de pulso era usualmente utilizado pelos estudantes, já nas décadas de 50 e seguintes, em contraposição ao relógio de bolso, entretanto caído em desuso.

Note-se, também, este testemunho elucidativo:

“Cheguei à Estação Velha, um quase descampado, já com muita noite caída sobre mim e o mundo. A folhinha marcava o dia 15 de Outubro de 1960: os ponteiros do relógio de pulso que minha Avó me oferecera pelo meu 19.º aniversário, ainda não tinham iniciado a ladeira que sobe até à meia-noite (…)” Cristóvão de Aguiar, Escritor, In Corpo de delito na ilha de Coimbra, http://www.mundoacoriano.com/index.php?mode=noticias&action=printMe&id=92)




Concluindo:


Se quiséssemos ser puristas, e numa toada mais ortodoxa, diríamos que nenhum aparelho medidor de tempo deveria ser usado com traje académico, pois quando este surgiu, nomeadamente a capa e batina, os relógios de bolso não eram usados (quanto mais de pulso ou os telemóveis).

Mas se, como muitos propalam, e bem, a Praxe deve, gradual e pertinentemente, acompanhar os tempos, então é preciso olhar para a evolução social e perceber, quanto a este assunto de relógios, que, em momento algum, faz sentido ignorar o relógio de pulso sob o pretexto analéptico de reavivar o de bolso.

Ambos são legítimos, conquanto sejam úteis.



Use-se, pois, relógio, seja ele de bolso ou de pulso, pois se há algo que a Praxe nunca preconizou foi que ela prejudicasse o estudo e a pontualidade às aulas, daí que impedir o uso de um instrumento desta natureza nem lógica sequer tem.

Cabe a cada estudante escolher o que mais lhe apraz.

Obviamente que, no meio de tudo isto, existe a questão estética, daí que deva existir o devido bom senso na escolha do relógio de pulso a usar, para que seja discreto e sóbrio (em harmonia com o traje). Na falta desse discernimento, mais vale, mesmo, é não usar e recorrer ao telemóvel.



[1] O relógio da Torre da Universidade andou avariado na década de 1860, e em Abril de 1867 esteve em Coimbra um relojoeiro francês com a missão expressa de consertar o maquinismo. As horas eram tangidas na mesma pelo sineiro da Universidade (cabreiro), mas manualmente, o que obrigada o pobre empregado a subir o escadão de caracol com frequência. O arranjo do relógio teve repercussão mediática na cidade e originou a polca O Tocar da Cabra, de Francisco Lopes Lima de Macedo, datada de 1867, segundo informa A. Nunes no blogue de Octávio Sérgio, Guitarra de Coimbra (Parte II),  artigo de 2 de Novembro de 2008 (em linha: http://guitarrasdecoimbra.blogspot.com/search?q=rel%C3%B3gio)

Nota: Um agradecimento penhorado pelos informes e prestabilidade do Zé Veloso e António Nunes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário