sábado, 25 de julho de 2015

Notas a Augusto Hilário nos 150 anos do seu nascimento.

Celebramos, este ano (2014) e este mês de Janeiro, 150 anos sobre o nascimento do maior vulto da Academia de Coimbra e o maior académico nacional, nascido em Viseu em 1864 e onde viria a falecer a 3 de Abril de 1896.

Passamos, agora, a transcrever o que consta do site http://paginas.fe.up.pt/~fado/por/augustohilario.html (muito provavelmente baseado em José Niza, Fado de Coimbra II (Da Colecção “Um Século de Fado”, Edição da Ediclube, Alfragide, 1999), obra que contém diversas imprecisões (algumas das quais AQUI enunciadas).

"Augusto Hilário da Costa Alves, nasceu em Viseu em Janeiro de 1864 na Rua Nova. A data do seu nascimento é ainda uma incógnita, porquanto o registo de baptismo refere que foi “exposto na roda desta dita cidade pelas cinco horas da manhã do dia sete do dito mês e ano”, sendo baptizaso a 15 do mesmo mês e ano pelo páraco da Sé, com o nome de Lázaro Augusto. Ao receber o crisma em 26 de Maio de 1877, muda o nome para Augusto Hilário.

As dúvidas que se poderiam levantar em relação à sua filiação ficam desfeitas em face da certidão de óbito que refere Augusto Hilário como filho legítimo de António Alves e de Ana de Jesus Mouta. Crê-se assim, que Hilário terá sido fruto de um enlace pré-matrimonial sendo por isso exposto na Roda e posteriormente reconhecido.

Frequentou o liceu de Viseu com o intuito de fazer os estudos preparatórios para a admissão à Faculdade de Filosofia, mas os anos foram passando sem que concluísse a disciplina de filosofia.
Matriculou-se em Coimbra, mas também aí os resultados não foram famosos e revela-se então um apaixonado pela boémia coimbrã, notabilizando-se como cantor de fado e executante de guitarra. Os seus fados correram o país de lés a lés, ficando imortalizado o Fado Hilário.

 Em 1889-90, foi examinado no liceu de Coimbra e tendo feito uma prova admirável foi aprovado com boa classificação. Matriculou-se então no 1º ano de Medicina, tendo assentado praça na Marinha Real para obviar à falta de recursos, recebendo um subsídio do Estado.

A sua actividade de fadista e trovador era conhecida pelo país inteiro, em particular na Academia Coimbrã onde era o “Rei da Alegria”. O seu esmerado trato e a sua cordialidade faziam dele o grande animador dos serões académicos. Nos seus fados, interpretou poemas de Guerra Junqueiro, António Nobre, Fausto Guedes Teixeira, para além dos que ele próprio criou.

Parte alta da sua vida de fadista foi a participação na festa de homenagem ao grande poeta João de Deus que se realizou em Lisboa no Teatro D. Maria II, a que se associou a Academia de Coimbra e onde participaram entre outros o Prof. Doutor Egas Moniz. No decorrer do espectáculo, após a sua intervenção e em plena apoteose do público presente, Hilário atirou para o meio da multidão a sua guitarra, da qual nunca mais nada se soube. O Ateneu Comercial de Lisboa a 2 de Junho de 1895, oferece-lhe aquela que foi a sua derradeira guitarra e que se encontra actualmente na posse do Museu Académico de Coimbra, por especial oferta da família.

Como poeta escreveu dezenas de quadras que se imortalizaram nos seus fados e das quais se destacam Fado Hilário (36 quadras); Novos fados do Hilário, recolha de um conjunto apreciável de quadras; Carteira de um Boémio, conjunto de versos manuscritos de que se ignora o seu paradeiro.
 A sua grande capacidade de improvisar fazia dele uma figura popular e sublime que entusiasmava quem o ouvia tendo actuado em Viseu, Coimbra, Lisboa, Espinho e Figueira da Foz, entre outros lugares.

Foi uma hora de luto nacional aquela que o ceifou à vida no dia 3 de Abril de 1896, pelas 21 horas, vitimado por uma “ictericia grave hypertermica”. Morreu na sua casa da Rua Nova, contando 32 anos. Frequentava então o 3º ano da Escola Médica da Universidade de Coimbra e era aspirante da Escola Naval.

O seu funeral foi imponente, com uma aparatosa multidão que o quis acompanhar até à sua última morada no cemitério da cidade de Viseu onde ficou sepultado em jazigo de família [um erro, pois nunca existiu jazigo de família]. Em carta de condolências datada de 5 de Abril de 1896, remetida de Mangualde à sua mãe pelos seus colegas é feita a síntese do sentimento académico de então:

        “Está de lucto a mocidade portugueza!”

 Chorado por admiradoras, amigos e conhecidos, chorado por simples amantes do fado, Hilário marcou para sempre a academia conimbricense ao enraizar-lhe a alma que lhe faltava, o fado. A admiração provocada nos seus contemporâneos levou a que o seu nome fosse dado a um jornal que se fundou em Viseu pouco tempo após a sua morte. Em 12 de Junho de 1896, surge nas bancas o Hylário, com a figura do fadista ao centro da 1ª página e tendo a guitarra como ex-libris. Semanário “imparcial e livre de quaesquer agrupamentos partidários”, assim foi também o seu homónimo.

 Se nunca foi feita uma biografia do poeta-cantor, referências em jornais e revistas não faltam. Vejam-se, por exemplo, os artigos publicados logo após a sua morte, na revista O Occidente, de 1896, no jornal que teve o seu nome ou noutro semanário de Viseu, A Liberdade, que transcreve em vários números as notícias saídas em jornais de todo o país aquando da sua morte.

Em 1967, a família, por intermédio da Srª Dª Maria Alice Trindade de Figueiredo, entregou ao Museu Académico de Coimbra uma das guitarras que o seu tio-avô dedilhara em muitas ocasiões e que lhe tinha sido oferecida pelo Ateneu Comercial de Lisboa quando ali se deslocou a cantar.

 Em 30 de Junho de 1979, é a vez da Camara Municipal de Viseu promover uma grande homenagem ao poeta a que se associou toda a população da cidade e academia Coimbrã, tendo sido atribuído o seu nome a uma rua da cidade e descerrada uma lápide na casa onde nasceu.

Em 1 de Dezembro de 1987, a Associação Académica de Coimbra, recordou o grande Augusto Hilário, por ocasião do I Centenário da Academia, editando um desdobrável onde se podia ler um artigo escrito no Jornal dos Estudantes, de 1 de Maio de 1896, poucos dias, portanto, decorridos sobre a sua morte. É mais um testemunho da dor que a morte da fadista provocou no coração de todos os estudantes, futricas e tricanas de Coimbra."

É uma efeméride singular esta, de um icone nacional que foi transversal na sociedade portuguesa, alcançando o estatuto de mito, razãopela qual questionamos, aqui, a razão de também este grande símbolo não ter sido elegível para o Panteão Nacional, já que muito mais do que uma bandeira de Coimbra, mas do fado, dos estudantes e da cultura nacional, ainda hoje recordado, cantado, celebrado, querido por todos, passados todos estes anos.
Fomos, por isso, a Viseu, para vos trazer alguns artigos publicados na imprensa local (neste caso nos periódicos "A Liberdade" e "O Comércio de Viseu"), a que somámos mais um ou outro ("Occidente" e "Branco e Negro") que fomos desencantar na Hemeroteca de Lisboa, sobre o que dele se escreveu após o seu falecimento.
Mas fique certo o nosso prezado leitor que é apenas uma gota no oceano jornalístico de milhares de artigos publicados na altura por todos os jornais e revistas (durante meses a fio).



A Liberdade, 15 Agosto 1889, 19 Anno, nº 976, p.2
O artigo acima é um de vários, descobertos recentemente no âmbito da  investigação levada a cabo pelos autores de "QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal", que atesta da fundação da Tuna/Estudantina de Viseu em 1889 (alguns anos antes do inicialmente pensado), pela mão de Augusto Hilário (sendo, a par com a Estudantina de Coimbra e Porto, âmbas datadas de 1888, das mais antigas tunas portuguesas documentadas).
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1494 de 21 Fevereiro de 1896, p.1
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1507 de 07 Abril de 1896 p.1
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1507 de 07 Abril de 1896 p2
---------
 Branco e Negro n.º 2, Lisboa, de 12 Abril de 1896, pp.12-13
 
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1509 de 14 Abril de 1896 p.1
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1509 de 14 Abril de 1896 p.2

-------------------

Occidente N.º 623, de 15 de Abril de 1896, pp.87-88
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1512 de 24 Abril de 1896
 A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1513 de 28 Abril de 1896 p.1
Desenho publicado pelos CTT de Viseu,aquando do 125º aniversário do seu nascimento (1989)
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1515 de 05 de Maio de 1896 p.1
 A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1516 de 08 de Maio de 1896 p.1
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1517 de 12 de Maio de 1896 p.1 
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1518 de 14 de Maio de 1896 p.1
---------------
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1519 de 19 de Maio de 1896 p.1
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1521 de 26 de Maio de 1896 p.1
 A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1522 de 29 de Maio de 1896 p.1

 A Liberdade, Anno XXVI, nº 1523 de 02 de Junho 1896
Selo comemorativo dos 100 anos da morte de A. Hilário, lançado pelos CTT em 1996, segundo desenho/litografia de Carlos Leitão.
 A Liberdade, Anno XXVI, nº 1524de  04 de Junho 1896
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1525 de 09 de Junho de 1896 p.1



 A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1526 de 12 de Junho de 1896 p.1
A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1527 de 16 de Junho de 1896 p.1
Augusto Hilário em retrato a óleo, por Almeida e Silva, em 1896.
 A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1528 de 19 de Junho de 1896 p.1

A Liberdade, Anno XXVI, Nº 1529 de 23 de Junho de 1896 p.1 

O comércio de Viseu, 14 Agosto 1892, VII Anno, Nº 635

 O comércio de Viseu, 26 Agosto 1894, IX Anno, Nº 847
Selo em edição comemorativa dos CTT, pelo centenário da sua morte (1996) com base no desenho/litografia de Carlos Leitão.




Hylario, por Luiz d'Athayde, no semanário "O Fado".
in "Histórias do Fado" de Maria Guinot, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório, sob o tema de "Um século de Fado", editado pela Ediclube em 1999, e distribuído pelo jornal "A Capital".

Citando A.M. Nunes, trata-se de uma "pequena brochura de João Inês Vaz e Júlio Cruz, "Augusto Hilário. A alma do fado coimbrão. Breves apontamentos", Viseu, Edição da Câmara Municipal de Viseu, Janeiro de 1989. A obra foi publicada na sequência da deliberação tomada pela Câmara de Viseu na sua reunião de 28/11/1988 com vista às comemorações do 125º aniversário de Augusto Hilário. Pode considerar-se um pequeno catálogo ilustrado, contendo fotografias, certidões e outros documentos."

Ao contrário de Coimbra, Viseu não deixou de lembrar a efeméride.


Termina este artigo com um vídeo de 1990, do famoso grupo Toada Coimbrã (onde ponderam diversos amigos, com especial menção ao João Paulo Sousa) que interpreta, em colaboração com o já desaparecido Paulo Saraiva, a mais famosa composição de Augusto Hilário (o "Fado Hilário"). Um deleite. Ora vejam:




segunda-feira, 25 de maio de 2015

Notas ao Rasganço

O rasganço é um ritual que, ao longo de décadas, poucas alterações sofreu.
Parece ter origens em finais do séc. XIX inícios do XX, sem certezas absolutas.
Surgirá, estamos em crer, em razão, também, do "ódio de estimação" que os alunos tinham pelo uniforme estudantil, de uso obrigatório, e para quem ele constituía, na época, mais um símbolo de submissão às normas disciplinares do que identificação do foro privativo.
Com o rasgar do traje, terminava o tempo das liberdades cerceadas e os jovens alunos podiam, finalmente, na sua perspectiva, serem livres e emanciparem-se definitivamente como homens.

Inicialmente, tinha lugar no último dia de aulas e os alunos mais novos ficavam à espera dos alunos do 5º ano para lhes esfrangalharem as roupas.
Era, de certo modo, o exorcizar de anos de "duras penas", um grito de libertação do jugo dos estudos, o fim das sebentas, dos exames, das orais, das farras perdidas para ficar em casa a "marrar"..............
Nessa altura, era todo o traje, capa incluída, que eram feitos em farrapos.
Nessa altura, o rasgado valia-se da capa de algum caloiro ou colega mais novo, senão ia mesmo a correr em pelota até casa, para gáudio das sopeiras, tricanas e população que, com os estudantes em festa, dava vivas ao finalista, entre risos puritanos e gargalhadas desbragadas aos fugitivos nudistas.

Com o tempo, o ritual "civiliza-se".
Essencialmente partir do pós-guerra, o rasganço passa a ocorrer já não no último dia de aulas, o famoso "dia do ponto" (marcado, tradicionalmente, pelas latadas), mas após o último acto de formatura, ou seja, e como hoje se observa, aquando do último resultado afixado nas pautas que atestava o fim do curso.
Entretanto, a capa deixou de ser alvo dos ataques destrutivos, passando a ficar a salvo do rasganço e passando a significar, romanticamente, lembrança dos tempos de estudante. O resto, ia tudo ao ar!

Outra evolução que ocorreu foi que este ritual do rasganço passou para o foro privativo, já não como acto público, espontâneo e por vontade de terceiros, mas em data escolhida pelo próprio estudante, convidando para o ritual as pessoas chegadas, os colegas (podendo ter mais ou menos visibilidade na via pública, conforme desejo do rasgado).
A capa, que então era poupada, servia para cobrir o pobre rapaz, evitando infringir a lei respeitante ao decoro na via pública.

Actualmente, algumas partes do traje também já não são retiradas, mas permanecem no rasgado, a modos de gozação, de brincadeira: os punhos da camisa e o colarinho, bem como a gravata ou laço (por vezes, meia gravata apenas).
Mais recentemente ainda, as mulheres entraram no rito, havendo, já, vários registos de rasganços femininos, embora, por norma, com maior recato na hora de passar a tesoura (mesmo se, tradicionalmente, o rasganço se fizesse sem recurso a tal utensílio), proibida de ad libitum à roupa interior.

 in revista Rua Larga, nº 53, de 31 Maio de 1961, pp.1334-135

In Coimbra, o Tempo De História, de Sofia Rosário.
Coimbra, Dpt. Gráfico da AAC, Março de 1989








Notas às Colheres de café no Traje


Importa meter uma colherada, e bem grande, neste assunto de colheres que infestam pandemicamente as gravatas de tantos e tantos trajes académicos.

São ainda muitos os que acreditam ser "da praxe" meter uma, ou mais, colheres na gravata ou lapela do seu traje, emprestando-lhe uma quantidade enorme de significados e explicações fantasiosas que, contudo, não encontram qualquer fundamento histórico ou praxístico na tradição académica portuguesa.

Pior ainda quando, em alguns códigos, podemos ler que a colher (de café, ainda por cima) deve ser roubada (leram bem: ROUBADA).
Mas de onde vem essa moda das colheres que, ainda há menos de 20 anos não existia?

Sabemos que, tradicionalmente, a colher de madeira é uma insígnia de praxe usada, como tal, desde finais do séc. XIX, supostamente como referência aos antigos sopistas. No entanto, ela surge de facto como substituta da palmatória, ou seja como instrumento repressivo (que, juntamente com a moca e tesoura, forma a trindade das "armas" que os alunos mais velhos usavam para exercer os castigos sobre os novatos - embora convenha dizer que, no caso da moca, ela era muito mais utilizada como arma de defesa do que propriamente para aplicar sentenças ou punições).

A colher que vemos por aí disseminada, tal doença contagiosa, por gravatas e lapelas, parece ter surgido por cópia equivocada e romanceada da tradição tunante espanhola (volta e meia, um ou outro tuno aparecia de bicórneo e com as ditas colherinhas de madeira no mesmo)
Com efeito, era bastante comum, entre a segunda metade do séc. XIX e primeiros anos do séc. XX, vermos tunos espanhóis ostentando, nos seus bicórneos (chapéu de 2 bicos), uma ou duas pequenas colheres de madeira cruzadas.

As explicações (bastante posteriores) dadas a tal era uma suposta evocação das colheres que os sopistas de antanho supostamente usavam para ir à "sopa boba", ou seja um sinal da sua mendicidade.
Só que até isso é lenda.

Desenho publicado por
Vicente de la Fuente em 1842,
Conforme informações adicionais dadas por Félix Martín Sárraga, presidente do Tvnae Mvundi, e um dos mais conceituados investigadores tunantes a nível mundial, tal colher teria surgido, ela também, por uma cópia de um desenho inventado no séc. XIX.
A primeira referência ao uso de uma colher num chapéu de um (suposto) tuno/estudante  é de Vicente de la Fuente que publica um desenho no "Semanário Pitoresco Español" em 1842[1], onde se vê uma figura de um tocador com colher no chapéu. 
Com efeito, e sem se percebe porquê (pois não era uma tradição ou prática existente), ele pintou uma colher no chapéu da personagem (fictícia, note-se). 

Décadas mais tarde o próprio autor, e segundo testemunho do próprio, ficou espantado com a importância que teve  tal desenho na rápida apropriação por parte das estudiantinas carnavalescas, passando os seus membros a ostentar tal colher que, contudo, nunca antes o fora.

Obviamente que, mais tarde ainda, surgiram as explicações costumeiras dos sopistas, quando questionados sobre o porquê de tais colheres, ganhando laivos de verdade histórica o argumento da evocação dos sopistas (sopistas esses que não eram todos estudantes, note-se; com efeito apenas os estudantes mais pobres viviam de esmola e caridade, mas não eram os únicos a quem se chamavam sopistas) que, fique claro, não ostentaram nunca qualquer colher no seu traje estudantil, fosse a capa y gorra ou no mantéu (Vd. Qvid Tvnae? A Tuna Estudantil em Portugal, pp. 48-62).

Uma estudiantina em França, ca. 1900
Fica, pois, claro que nunca  se usou qualquer colher num traje estudantil e que, a partir da 2ª metade do séc. XIX, só os tunos espanhóis, até sensivelmente as primeiras décadas do séc. XX (depois é já mais pontual ver-se, pois o bicórneo, entretanto, cai igualmente em desuso generalizado a partir da década de 1920[2]  - altura, também, em que vemos tunos a ostentar as colheres no peito) o fizeram, mas num traje de tuna, não num traje estudantil (em Espanha, o traje estudantil foi abolido em 1834, quando cessou o foro académico).

Em Portugal, entretanto, não há nenhuma tradição de colheres seja em que traje for; e sopistas, tendo-os havido, não tiveram sequer a expressão que marcou a cultura do país vizinho - além de que não existe qualquer referência a andarem de colher, note-se.

Portanto, caros leitores, ir em busca de argumentos de antanho, recuperando a desculpa dos sopistas para justificar colheres no traje estudantil não tem ponta por onde se lhe pegue, senão como neo-romantismo ficcionado

Quanto à imitação histórica das antigas estudiantinas e tunas do país vizinho, parece-me, uma vez mais, pretender enxertar-se, ad hoc, na nossa tradição académica, algo que lhe é de todo alheia.

Neste preciso momento, o leitor mais atento ao Notas&Melodias lembrará o caso da influência das tunas espanholas no uso dos emblemas nas capas.
Tem razão. 
De facto, a partir da década de 1980, tal prática dos tunos espanhóis aparece em força nas tunas portuguesas e rapidamente se cristaliza pelos restantes estudantes (uma "tradição" que, como sabemos, surge em Espanha apenas a partir dos anos 60, por força da "moda mochilera"). 
Mas se o leitor reparar bem no artigo que explica a origem dos emblemas nas capas (ver AQUI), verá que já bem antes os estudantes costumavam coser emblemas no fundo da sua capa, nomeadamente em Coimbra, cosendo o símbolo da Briosa ou o caso dos orfeonistas e coral de letras.
Há, pois, um antecedente; um antecedente português de feição estudantil.

Mas outro aspecto assoma  em oposição ao uso desbragado e infundado de colheres de café nos trajes: a colher, como insígnia, é insígnia de Praxe e não como insígnia pessoal.

Faz toda a diferença, quando, na verdade, temos uma tradição secular em torno da colher de pau, enquanto instrumento da prática praxista e o uso de colheres mais pequenas a modos de coisa nenhuma.

- Nunca a tradição académica portuguesa contemplou outra colher que não a colher de pau (e não de metal; e não de café), e como insígnia de praxe apenas.
- Nunca a tradição académica contemplou colheres no traje estudantil; nem ela nem qualquer das primeiras codificações ou documentos que, ainda hoje, nos ilustram as práticas e tradições estudantis mais antigas.
- Não há qualquer referência a estas seja em que documento ou código for, anterior a ca. 2000. O primeiro Código de Praxe existente em Portugal (1957) nada refere também, como é óbvio.

Infelizmente, quando a falta de senso reina e os estudantes são menos criteriosos, temos estas invenções, acompanhadas das simbologias e significados tão diversos quanto fantasiosos e disparatados (nº de matrículas, amizades, amores, chumbos, provas de amizade, grau hierárquico ......), quase lembrando as que costumam acompanhar as dos dos rasgões e tranças (uma aberração, note-se, essa das tranças) nas capas.

Continua a ser preciso questionar e perceber de onde vêm as práticas que copiamos, seguimos (demasiadas vezes com cego fundamentalismo) ou que nos impingem, de modo a aferir da sua validade e fundamento.
É dever de um estudante universitário saber, de forma mais criteriosa e alicerçada, a razão de ser das "tradições" que segue, evitando "comer gato por lebre" e andar a defender precipitada e emocionalmente aquilo que não consegue com a razão.

Há quem queira seguir e respeitar a Tradição. Outros optam pela Tra(d)ição.
Uma escolha que implica saber, para bem se viver.





[1] Edição de 08 de Maio de 1842
[2] A partir dessa altura, o bicórneo vê-se muito pontualmente num ou noutro tuno.

sábado, 25 de abril de 2015

Notas à Bênção das Pastas (Origens e história)

Nota prévia: este artigo vem substituir dois outros dedicados à Bênção das Pastas de Lisboa e Porto, os quais ficam, agora, incorporados neste novo texto.



A Benção das Pastas é, de há largos anos a esta parte, um dos momentos altos dos festejos das Queimas das Fitas (também denominadas de Semana Académica) um pouco por todo o país.
Trata-se de uma cerimónia religiosa inicialmente promovida e destinada a finalistas católicos a quem, com o passar do tempo, a simbologia e prestígio do acto, se foram associando os demais estudantes finalistas, fossem, ou não, crentes.
Tem-se a ideia errada de ser a Benção das Pastas uma cerimónia praxística ou costume da Praxe, quando não o é, nem nunca foi sequer.
A verdade é que a solenidade desse evento cedo cativou os estudantes, mormente a sua maior ou menor afinidade com o catolicismo, a sua maior ou menor fé, a sua relação mais ou menos próxima com a Igreja.
 A Bênção das Pastas gira em torno da Eucaristia de Acção de Graças, pelo sucesso escolar alcançado, e de súplica esperançosa num futuro profissional risonho.
Mas não foi esse lado mais religioso que despertou o interesse de muitos dos estudantes que elevaram este acto a costume e tradição académica, mas, sim, o rito de consagração, em primeiro lugar, e, depois, a bênção, propriamente dita, dentro da pompa e solenidade que, nos festejos da Queima, não existia, de facto, para assinalar o fim dos estudos – algo que nem a entrega de diplomas conseguia oferecer.
Foi, por isso, com naturalidade, que uma cada vez maior adesão se foi registando, tendo, como resposta, por parte da Igreja e associações de finalistas católicos (entidades promotoras e organizadoras), uma abertura “ecuménica” que possibilitou, com o passar dos anos, que fosse o momento especialmente acarinhado pela academia e transformado num dos pontos altos (e o de maior solenidade) dos festejos e tradições académicas.
Com efeito, a Benção das Pastas, continuando a ser uma cerimónia religiosa católica, abre-se paulatinamente a toda a academia, a todos finalistas (crentes convictos, ocasionais ou mesmo não crentes) onde os menos dados à religiosidade sentem, contudo, ser importante participar pelo simbolismo que tal acto adquirira, já, no seio da academia.
 
COIMBRA
 
O primeiro registo de tal cerimónia remonta ao ano de 1930, em Coimbra, como disso nos dá conta Alberto Lamy:
 
“Na capela da Universidade efectuavam-se a Consagração dos Quintanistas ao Sagrado Coração de Jesus (pela 1ª vez, na Sé Velha, a 25 de Maio de 1930, em cerimónia promovida pelos estudantes do CADC) e a Bênção das Pastas.
Havia missa celebrada pelo Bispo-Conde, com presença do reitor e de muitos professores.
Ante o Santíssimo exposto, um dos quintanistas, em nome dos colegas presentes, lia a fórmula de consagração.
Os quintanistas apresentavam as pastas ao Bispo-Conde que dava a bênção geral, começando depois a desfilar perante ele, ajoelhando-se a seus pés. Logo que o quintanista recebia a bênção, deixava o seu nome no Livro de Ouro das consagrações que estava no centro da Capela e se guardava no CADC.
Finalmente, o Bispo-Conde dava a Bênção do Santíssimo.
Terminadas as cerimónias, os quintanistas, com as individualidades presentes, tiravam a fotografia da praxe na escadaria central da Via Latina.
“A Bênção das Pastas é, para o estudante católico, a cerimónia mais solene do seu curso académico. Na hora da partida, depois de váriso anos de trabalho a preparar o dia de amanhã, os finalistas abeiram-se do altar, numa manifestação viril e espontânea de fé, para consagrar a Deus a sua vida e receber dele uma bênção especial para a Pasta em cujas fitas se escrevem os nomes mais queridos[1]”. [2]

 

O N&M, fiel ao seu propósito, procurou algo que documentalmente reforçasse o que o insigne investigador acima mencionava na sua obra, tendo descoberto o seguinte artigo, precisamente a dar conta da 1ª Bênção das Pastas em Coimbra (porventura a 1ª em Portugal).
 
(Gazeta de Coimbra, Ano 19º, Nº 2496,  de 27 Maio 1930, p.2)
 
Igualmente interessante é perceber que, nos primórdios desse acto solene, existia claramente uma separação entre esta cerimónia e demais festejos da Queima, sendo a participação restrita a estudantes católicos, a maioria deles ligados e inscritos nas várias associações do género (algumas delas com uma intervenção social e associativa, peso e prestígio, ao nível da associações académicas).
 Disso podemos dar conta, através do que nos relata António José Sares:

“Festa dos Quintanistas
Os quintanistas católicos celebraram a sua festa de consagração ao S.C. de Jesus, fotografando-se em seguida.
Os quintanistas não católicos também se fotografaram em grupo”.[3]

 

Ao que tudo indica, a abertura à comunidade em geral fica definitivamente reforçada a partir dos anos 60, em razão dos ventos de mudança que sopram do Concílio Vaticano II[4], passando a  Bênção das Pastas  a ser aceite e considerada como uma cerimónia integrante da tradição estudantil, a par com as demais, a qual, por exemplo no Porto, já era comumente aceite como acto que iniciava a própria Queima, como o atestam os títulos de O Comércio do Porto de 1953 e 1955 respectivamente:
"Com a benção das pastas e um sarau para proclamação dos vencedores dos «Jogos Florais» começaram ontem as festas da «Queima das Fitas» dos estudantes universitários do Porto " (1953-05-04)
 "Com a benção das pastas e um sarau artístico para distribuição dos prémios dos «Jogos Florais», iniciaram-se ontem as festas da «Queima das Fitas» dos estudantes universitários desta cidade"(1955-05-09)

 O amigo Zé Veloso adenda ainda o seguinte, comprovando que a inserção da Missa nos festejos da Queima é bastante recente e que passaram mais de 3 décadas até se cristalizar como Tradição Académica em Coimbra:

"Acrescento às considerações do autor do artigo que, no tempo de Gonçalo dos Reis Torgal - 1959 - a cerimónia ainda estava, de facto, fora das festas da Queima. Nesse ano, diz ele que a Benção foi a 4 de Maio e o programa da Queima começou uns 10 dias depois."


 
Benção das Pastas em Coimbra (Sé Nova) na actualidade.
 
 
 
 

LISBOA

 

No que concerne a Lisboa, António Nunes (2013) diz-nos que a 1ª ocorrência de uma Missa de Finalistas teve lugar em Lisboa, em 1926 - o que significaria que a tradição da Bênção das Patas teria origem na capital,  mas não conseguimos, até agora, uma foto de tal ou quaisquer documentos que o comprovem, nem mesmo registos anteriores a 1933.
Parece-nos, pois, que o cliché que a seguir apresentamos será o primeiro documento fotográfico sobre a Benção das Pastas na capital, a qual se realizou em 1933 (na Igreja dos Mártires), para os "quintanistas católicos de direito e medicina", precisamente o mesmo ano em que existe a 1ª referência a esta cerimónia no Porto.
Na falta de mais dados, apenas podemos colocar a bênção das pastas em Lisboa como tendo iniciado em 1933.

 

(Ilustração, 8º Ano, Nº 6 (174), de 16 Março 1933, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

Segue-se um segundo cliché, datado de 1934, com os quintanistas de Direito.

 

(Ilustração, 9º Ano, Nº 198 , de 16 Março de 1934, p.33 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

Na foto de 1936, que abaixo apresentamos (esta, tirada no interior da Igreja), a respectiva legenda já não especifica os cursos envolvidos (porventura porque já os teria congregado a todos), mas apenas que os estudantes são católicos. De notar o número considerável de mulheres que, embora não envergando traje, se apresentam de pasta e fitas.

 
(Ilustração, 11º Ano, Nº 251 , de 01 Junho de 1936, p.26 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)

 
Benção das Pastas em Lisboa (Terreiro do Paço) na actualidade
(com o então Cardeal Patriarca, D. José Policarpo)



PORTO

 
Tal como sucede em Lisboa, sabemos que, na Invicta, esta cerimónia tem  lugar desde, pelo menos, 1933 (e não 1944 como inicialmente se pensava) e que, nos anos 50, se torna parte integrante do programa da Queima das Fitas portuense.
 Relata o artigo abaixo, datado de 1933, que esta cerimónia foi organizada por iniciativa da Associação dos Estudantes Católicos do Porto (em Lisboa, cremos passar-se o mesmo) e que as pastas estavam "...amontoadas numa ampla mesa, ao lado da Epístola".

Depois de abençoadas as pastas, estas foram entregues aos alunos pelos lentes da Universidade.

 

(O Comércio do Porto, de 04 Maio, de 1933, - ref. do Arquivo da UP - AN2-N83-P74)

 
Seguem-se mais 2 clichés, também referentes à Bênção das Pastas do Porto; o primeiro de 1938 e o segundo de 1939, recentemente descobertos pelo N&M.
Note-se que o uso da capa e batina ainda não é, aqui, tido como obrigatório, dado que a etiqueta académica não contemplava, ainda, este tipo de cerimonial.

 

(Ilustração, 13º Ano, Nº 298, de 16 Maio de 1938, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)

(Ilustração, 14º Ano, Nº 322, de 16 Maio de 1939, p.7 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

As imagens que se seguem, obtidas no Arquivo Digital da UP, vêm reforçar o que já expusemos, ou seja que a cerimónia da Bênção das Pastas ainda era, de certa forma, algo "à parte", só para alguns, sendo explícitas as referências a "Finalistas Católicos", menções que irão tendencialmente desaparecer, à medida que a cerimónia se abre a toda a academia (e esta a adopta igualmente como o momento mais solene dos festejos de fim de ano).

 
(O Comércio do Porto de 14 de Maio de 1945 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N261-P278)
 


(O Comércio do Porto, de 7 de Maio de 1951 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N618-P480)

(O Comércio do Porto de 10 de Maio de 1958 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N447-P400)
 

Benção das Pastas no Porto (Av. dos Aliados, com a Câmara Municipal ao fundo), na actualidade.
 
A Benção das Pastas é, actualmente, uma cerimónia que envolve milhares de pessoas, o que obrigou a que, em muitas cidades, a mesma ocorresse fora dos locais de culto, tornando "missa campal".
A esta cerimónia está associada a etiqueta da praxis que determina que o estudante se apresente rigorosamente trajado e com a sua pasta fitada (pasta da praxe com 8 fitas).
Um dos costumes que está igualmente associado a esta cerimónia é a de os pais(ou muitas vezes a “cara metade”) oferecerem ao finalista, no fim da Eucaristia, um aramo de flores, preferencialmente com as cores do curso/faculdade.
Mantém-se a bênção por parte do prelado, mas já não existe a apresentação individual dos finalistas ao bispo (ajoelhando-se para receber a bênção), nem a consagração, tal como não existe o registo (assinatura) dos finalistas em livro próprio (o tal “livro de ouro”).
Com efeito, em virtude da massificação, e tendo em conta, também, uma feição “ecuménica” (muitos vão lá, mas sem fé sequer, apenas e só pela cerimónia – a lembrar alguns casamentos de véu e grinalda), a cerimónia aligeirou-se, continuando, ainda assim, a ter a Eucaristia por centro e cerne do acto.


 
Benção das Pastas em Viseu (largo da Sé) presidida por D. António Marto
(actualmente bispo de Leiria-Fátima)

 



Poderá interessar ao leitor o seguinte artigo (AQUI) dedicado à ocorrência da Benção dasBastas nas Escolas do Magistério Primário (tradição iniciada nos anos 50) e que, no caso de Lisboa, explicam o porquê dessa "peregrina" tonteria de usar pastas com dezenas de fitas (em vez das 8, como manda a tradição) e as mesmas apresentarem desenhos e monogramas.



 



[1] Estudos. Juklho de 1948, Ano XXVI (facs. VI-VII), nº 268-269, pág. 390-391.
[2] LAMY, Alberto Sousa – A Academia de Coimbra, 1537-1990. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª Edição, 1990, pp. 671-672
[3] SOARES, António José – Saudades de Coimbra, 1917-1933(Tomo III). Almedina. Coimbra, 1985, p. 5 do ano de 1932.
[4] O Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo Papa João XXIII, que o inaugurou no dia 11 de outubro de 1962. O Concílio só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo VI.