quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Notas ao Apadrinhamento do Caloiro (das origens à actualidade)


Muitas são as perguntas que, volta e meia, são colocadas na tentativa de perceber de onde vem a tradição do apadrinhamento na Praxe.

 Vamos tentar fazer alguma luz sobre o assunto.

O Apadrinhamento é uma prática já bem antiga que consistia, grosso modo, no recomendar do novato e algum estudante mais velho, lá da terra, para que este último tomasse conta, orientasse e protegesse o “miúdo” de todas as partidas, usuras e vícios.

Como os estudantes se organizavam em residências (cuja administração era por eles assegurada), era nesse meio fechado e altamente hierarquizado que tudo se jogava.

Na hidalga Espanha, onde temos os registos mais antigos dessa prática, as ditas residências eram conhecidas por “colégios” e, para além do novato ter deveres (faxinas várias), gozava igualmente de direitos, pois os veteranos, por imposição das leis universitárias, tinham de garantir determinadas condições aos alunos mais novos, sendo uma delas o apoio ao estudo[1].

Façamos a viagem ao interior da história, por mão do “QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal”, que claramente nos explica tal fenómeno

 “Havia uma modalidade bastante difundida até meados do séc. xvi: a pupilaje. E entram em cena os famosos bachilleres de pupilos, que tanta tinta têm feito correr, desde os tempos da literatura picaresca aos bits e bytes (e muitos «bitaites»...) da cibernética.
Os bachilleres eram estudantes que, possuindo o grau de bacharel (bachiller), alojavam em suas casas outros alunos menos adiantados nos estudos. Regra geral, o bachiller era aspirante ao grau de doutor ou ao ensino na universidade. A possibilidade de receberem hóspedes, que lhes era oferecida pelas autoridades académicas, constituía uma fonte de rendimentos para o prosseguimento de estudos. Num paralelo com o «Processo de Bolonha», diríamos que haviam concluído a licenciatura e pagavam, assim, o mestrado. Além disso, como a nomeação para uma cátedra se fazia por votação, os pupilos representavam mais uns votos na eleição.
Contudo, esta benesse impunha um conjunto de obrigações: orientar o estudo, organizar a vida em comunidade, vigiar o bom comportamento e incutir bons costumes nos pupilos, fornecer alimentação devidamente regulamentada pelos estatutos da universidade, fazer cumprir as horas de recolher, etc. O pupilero (aquele que alojava os pupilos) foi sobejamente retratado de forma satírica na novela picaresca (Guzmán de Alfarache, La Vida del Buscón) como um avarento que gastava o menos possível das mesadas que os pais dos pupilos lhes enviavam, servindo a pior comida e a mais barata em quantidades irrisórias, equipando os quartos com mobília de péssima qualidade – enfim, transformando a pupilaje num negócio sórdido e rentável.
Os estatutos universitários determinavam ainda que cada bachiller recebesse apenas alunos do mesmo curso ou de cursos afins, para assim estimular o estudo por via das afinidades electivas e intelectuais dos seus pupilos.”[2]



Fica um retrato das origens.
Em Portugal, as residências governadas por universitários (sucedâneas das existentes sob tutela de ordens religiosas – os colégios[3]) ficarão conhecidas, no séc. XIX, por Repúblicas[4].

As repúblicas que surgem em Portugal resultam da necessidade dos estudantes arranjarem uma nova forma de alojamento, após a extinção dos colégios universitários de Coimbra (que criou uma enorme falta de locais para albergar tanto estudante), quando, em 1834, é abolido o Foro Académico. São posteriores, pois, à revolução vintista e consequência da implementação do decreto de Joaquim António de Aguiar, em 28 de Maio de 1834, que extingue congregações, mosteiros, conventos, hospícios, etc.

"República" em razão do governo da residência ser semelhante aos governos dos estados republicanos. Amílcar Castro define-as como “casas onde vivem estudantes por conta própria”[5], dado que era constituída por estudantes e uma ou duas criadas (para lavar a roupa, cozinhar...), devendo prestar contas no fim do mês ao senhorio, controlar as despesas e dívidas dos moradores e a alternância na chefia da residência (às vezes semanal, mensal ou, então, anual).

 Mas voltemos ao fio da história.

Em Portugal, as relações de usura e exploração de novatos por parte dos veteranos era prática também comum à da vizinha Espanha (e outros países com urbes universitárias).

Recorremos, mais uma vez, à obra acima referida, a qual designa o conjunto literário que versa sobre esses costumes e vivências de antanho por “Picaresca Portuguesa”:

 “A mais antiga fonte documental oriunda do meio académico e respeitante à forma de vida dos estudantes é uma colectânea de textos publicados por estudantes de Coimbra, entre 1746 e 1790, e que dá pelo nome genérico de Palito Métrico. Nela se encontra vividamente retratada em primeiríssima‑mão a vida da classe estudantil: as investidas aos caloiros, as artimanhas engendradas pelos mais velhos (e velhacos) para viverem à custa dos outros, os expedientes para suprir a falta de mesadas, os costumes, as modas, a exploração comercial e os logros infligidos aos estudantes pelos habitantes da cidade, a fome, o frio...
Todos os textos pretendem fornecer utilíssimos conselhos aos novatos para que não caiam nos logros dos veteranos, chegando os seus autores ao descaramento de afirmar que um dos logros é justamente a publicação de livros que previnem contra os logros!...
(…)

Ao folhearmos as deliciosas páginas deste «Apontoado de versos macarrónicos latino‑portugueses, que alguns poetas de bom humor destilaram do alambique da cachimónia para desterro da melancolia», vamos compondo um retrato da vida académica não muito diferente daquele que os congéneres espanhóis foram deixando. São as mesmas partidas feitas aos novatos, são os mesmos expedientes de sobrevivência,os mesmos conflitos com as autoridades.
(…)
Num outro texto da autoria de um tal António Castanha Neto Rua, um suposto recém‑licenciado por Coimbra encontra‑se de visita ao pároco de uma remota aldeia. Sabendo que um sobrinho do bom velho padre pretende frequentar a Universidade, oferece‑se o bacharel para aconselhar o mancebo sobre como poupar dinheiro, evitando despesas desnecessárias e burlas de amas, lavadeiras, criados e veteranos – queixas comuns aos dois lados da fronteira.”[6]

O apadrinhamento de hoje sofreu evoluções, nem sempre no sentido correcto, muitas vezes visto como uma forma de relacionamento, ou posse, de um indivíduo como objecto para praxe pessoal.

 O que sabemos é que ele tem por base a convivência em comunidade: as Repúblicas, onde se criavam afinidades (fosse com alguém da mesma terra, fosse por viverem debaixo do mesmo tecto). Recordemos que muitas emancipações (cartas de alforria)[7], ocorriam no seio das Repúblicas:

 “- Tu, e esticou o dedo na direcção de outro, pega nesta espingarda (era uma vassoura velha), põe-na ao ombro e vai fazer guarda, à porta da República. E não te esqueças:- sempre que passar uma gaja boa, grita “às armas”, para nós irmos admirar a bela Dulcineia.
O caloiro destacado, para fazer a guarda, desceu as escadas e foi postar-se à porta, de vassoura ao ombro. De vez em quando fazia ronda, como na tropa, andando de um lado para o outro, mas sempre em frente da República.
De repente, ouvimo-lo gritar:
- Às armas!
Todos corremos para as janelas. E lá ia, na verdade, a passar uma beldade de se lhe tirar o chapéu. (…)
Nesse momento, saía a D. Maria [criada da República], para ir às compras ao mercado.
Consciente da sua responsabilidade, a sentinela apressou-se a apresentar-lhe armas, no mais puro estilo marcial, o que lhe valeu um louvor de todos os presentes. Voltámos para dentro, mas, um ou dois minutos depois, voltou a gritar:
- Às armas!
Todos corremos de novo para as janelas, mas, desta feita, era uma pobre velha, alquebrada ao peso dos anos, que, muito custosamente, subia a calçada.
- Às armas, gritou outra vez o caloiro.
E porque, nesse momento, ela fosse a passar na sua frente, apresentou novamente armas.
- Ah” sua animália, você não vê bem, pro causa do cabresto ou perdeu os óculos?
No entanto, acharam que o caloiro se tinha portado por forma a merecer um segundo louvor e que a piada era, na verdade, de registar, o que lhe valeu ser imediatamente desmobilizado, para se sentar à mesa, com os “doutores”, a tomar o pequeno almoço.[8]

Também pululam invencionismos sem nexo, com doutores a exigirem que os caloiros peçam apadrinhamento por escrito ou outras formas descabidas, em detrimento do pedido pessoal e simples à pessoa. Um “altar” de ridículo no qual se colocam certos praxistas que redobram de presunção, na falta de algum pingo de senso, e humildade.


O Baptismo

 O apadrinhamento tem a sua formalização no “baptismo” (nas festividades da Latada/semana do Caloiro), acto em que o doutor se compromete a orientar e ajudar o novo aluno na sua integração na vida universitária (que não propriamente nas praxes). O caloiro, por sua vez, compromete-se a respeitar e acatar os conselhos daquele que escolheu livremente (a escolha é exclusiva do caloiro), sem que isso implique aceitar formalmente quaisquer abusos ou práticas que atentem à sua integridade.

O baptismo marca, igualmente, o reconhecimento simbólico e jocoso do caloiro como "inter pares", ou seja como académico, como colega, cessando, com o baptismo, a fase de recepção ao caloiro e as praxes ao mesmo.
Apadrinhamento de um Caloiro (à direita).
Pintura de Varela dos Reis, feita na
República dos Paxás, anos 50.
O caloiro não ganha nenhuma designação nova (não existem graus hierarquicos dentro da noção de caloiro: aluno que frequenta o Ensino Superior pela 1ª vez), antes o reconhecimento académico dos colegas mais velhos e a formalização do seu caminho de integração, com a entrada, na sua vida, do seu padrinho ou da sua madrinha.

Praxis do Baptismo

Sendo o “baptismo” um acto solene, copiado ou inspirado das práticas religiosas, implicaria que os doutores estivessem de capa descaída pelos ombros, ao invés de traçada, do mesmo modo que se deveria usar da colher ou, quando muito, o penico, evitando exageros na quantidade de água (daí serem descabidos os duches a que alguns sujeitam os caloiros ou os banhos em lagos, no mar e afins).
O acto solene do baptismo (inicialmente à beira rio, Mondego, mas também em fontenários) será normalmente conduzido por quem tem o ministério da Praxe (indicado para liderar a cerimónia) para aquele acto (o Dux ou outro responsável), cabendo ao padrinho/madrinha, ficar ao lado (e não, como se faz em alguns sítios, baptizar o próprio afilhado - embora neles possa ser delegado, em razão do número elevado de caloiros).

É derramado um pouco e água sobre a cabeça do caloiro, com recurso à colher de pau ou, eventualmente, a um penico, proferindo uma fórmula em latim macarrónico, que poderá andar à volta de algo como "In nomine solenissimae praxis, caloirum (nome) baptizatum est".


Quem pode ser padrinho ou madrinha?


Em rigor, qualquer estudante com possibilidade de também proteger (exercer protecções), ou seja com pelo menos 3 matrículas. Nada na tradição impede que possa ser alguém com menos matrículas, embora seja mais comum a escolha de um estudante já mais avançado nos estudos, em razão da sua maior experiência.



Quantos afilhados se pode ter?

Na prática, e com senso, diremos que não mais de 1a 2 por ano (o que dará cerca de 5 a 10 afilhados apadrinhados no fim do curso (o que já é muito).
Isto porque, como acima deixámos claro, o apadrinhamento é, da parte de quem apadrinha, uma responsabilidade; o dever de acompanhar e orientar, ou seja estar presente e atento.
Seguindo a antiga tradição dos estudantes que recebiam a incumbência de zelar por ouros mais novos, conforme acima mencionámos, citando a obra "Qvid Tvnae", cada aluno que apadrinha deve ter em conta que acompanhar um colega mais novo implica uma dedicação que não se compadece com legiões de afilhados como quem mete dezenas de pins e emblemas "para inglês ver".
Ser padrinho não é uma afirmação de popularidade, mas um serviço que se deve prestar em verdadeira solidariedade académica.
Tal não se consegue apadrinhando às carradas, só para parecer um tipo fixe e popular.
Lá diz o ditado que "quem toca muitos burros, algum deixa para trás". Ser padrinho não é colecionar afilhados.


Pedidos de apadrinhamento

Uma das coisas mais ridículas que temos assistido em algumas "casas" é o facto de ser exigido aos caloiros que o pedido de apadrinhamento se faça através de carta, de um documento escrito ou outra qualquer forma criativa.
Depois variam os tipos, de acordo com a tonteria dos veteranos. Ora é numa língua quem nem eles dominam, ora exigindo que a carta seja escrita de baixo para cima e da direita para a esquerda, ora assim ora assado.

Como forma de gozar o caloiro, em tom de brincadeira, tudo bem. É como mandar o caloiro ir à farmácia buscar pregos.
Mas levar isso a sério, ou seja como procedimento "administrativo" obrigatório, apenas evidencia a estupidez de quem se faz difícil e exige esse tipo de coisa sem nexo.
O pedido faz-se pessoalmente, cara a cara, perante o qual só duas respostas são possíveis: "sim" ou "não".

Não é preciso, porque nem é Praxe (nem de gente equilibrada), andar a inventar "démarches" e papeladas para algo tão simples como responder a uma pergunta/pedido.
Quem deve sentir-se honrado é o padrinho ou a madrinha, em ser escolhido(a) para orientar alguém cuja escolha demonstra reconhecimento pelas qualidades humanas e académicas.
O caloiro, ao escolher alguém, está implicitamente e reconhecer e honrar uma pessoa que vê como exemplo e como capaz de ajudar a ser melhor.
Não se percebe, pois, que os doutores se coloquem num pedestal de presunção bacôca a colocarem obstáculos e provas para que o caloiro se rebaixe q.b. para conseguir algo que se quer simples e sem folclores.
Doutor que se arma em difícil para aceitar um pedido de apadrinhamento está desde logo a falhar como doutor, desde logo por não perceber o apadrinhamento nem respeitar o caloiro na sua escolha livre e sincera. Em certos casos, obrigar alguém a fazer pedidos originais (e de facto reconhecemos a criatividade de muitos deles) chega a ser falta de educação para com quem faz o pedido.

Resumindo: não é Praxe exigir a um caloiro que apresente o seu pedido desta ou daquela maneira. Também não é lícito induzir os caloiros, sugerir-lhes, dar-lhes a entender que os pedidos se fazem mediante apresentação de algo criativo, deixando-lhes a ideia que é da praxe fazer-se desse modo.


 
Protecções

No que toca a protecções, as mesmas são tradicionalmente para com as trupes, pois a partir do baptismo cessam os ritos de recepção e as praxes.
Por vezes sucede que antes do baptismo o caloiro já tenha padrinho (ainda não oficializado, apenas um apadrinhamento "de facto", tal como as uniões). Nada muda com isso.
O padrinho ou madrinha, querendo proteger pode fazê-lo,
 conquanto a protecção se faça segundo a Tradição[9], sabendo-se que as mesmas seguem uma hierarquia de quem pode proteger, como e em que condições isso ocorre.

A ter em conta:


Temos vindo a observar que, em alguns locais, se municiam conceitos algo estranhos, como os de "família de Praxe", estabelecendo, por via dos apadrinhamentos, como que uma relação de parentesco, usando-se designações como "avó" ou "avô" para designar, por exemplo, o padrinho do padrinho (ou madrinha da madrinha).
Tal é totalmente descabido e pernicioso. De Praxe nada tem, e seria importante travar quanto antes essa moda, porque é precisamente assim, a partir de coisas que parecem inofensivas, que se deturpa a Tradição. E como em tantos casos conhecidos, só se está a alimentar que, de futuro, tal venha também a ser propalado como sendo Praxe (e pior ainda, poder vir a integrar alguns códigos).
Evitem-se esse papismos e verdadeiros non-sense.
O Padrinho ou madrinha não é um laço de parentesco, pelo que não se percebe que se queira estabelecer tal relação na Praxe, quando dela isso nunca fez parte.
Haja discernimento, mesmo para com aquilo que parece inofensivo.

Ficam estes dados que, esperamos, possam esclarecer e ajudar.



[1] Um estudo que, em alguns casos, ganha tal qualidade e reconhecimento que alguns colégios serão integrados na própria Universidade, como foi o caso do Colégio Fonseca, em Santigado de Compostela, ou mesmo do colégio da Sorbonne – que dará o seu nome à actual Universidade de Paris. Em Coimbra, isso sucederá com o Colégio Pontifício de S. Pedro, por exemplo.
[2] COELHO, Eduardo; SILVA, Jean-Pierre; SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVIDTVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. -  Euedito, Porto, 2011, pp.49-50
[3] Em Coimbra, no séc. XVI, foram fundados 2 colégios: uma para os nobres, o de S. Miguel; e outro para os estudantes “honrados pobres”, conhecido como o “de Todos os Santos”
[4] RIBEIRO, Artur – Repúblicas de Coimbra, Edição do Diário de Coimbra. Coimbra,
[5] CASTRO, Amílcar Ferreira de – A Gíria dos Estudantes de Coimbra – Coimbra: Fac. De Letras, 1947 (suplemento de Biblos), pp.99-100.
[6] Op. Cit, pp. 57-58
[7] A emancipação, por via oral ou registo documental (carta de alforria) determinava que o caloiro ficava isento de quaisquer futuras praxes, pois tinha, em razão da sua graça, de algum feito ou comportamento tido como meritório, sido isento, gozando de total imunidade praxística, embora continuando caloiro.
[8] ABRUNHOSA, Octávio – Coimbra…ontem. Memórias de um estudante (1945-1951). Almedina, Coimbra, 2001, pp. 13-14
[9] No Código de Praxe de Coimbra, de 1957, tais condições estão consagradas no Título XI, artigos 144ª 149.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Notas à Saia e Meias do Traje Académico Feminino

O presente artigo pretende trazer alguma reflexão e esclarecimentos sobre duas questões ligadas ao traje académico feminino: o tamanho da saia e a cor das meias em uso.
No primeiro caso, a questão suscita alguma controvérsia e, no segundo, reveste-se de curiosidade e em trazer a lume alguns dados que possam ajudar a perceber a transição de cor, quando comparamos o que actualmente vemos e o que no passado se fazia.
 

 
O Tamanho da Saia do Traje Feminino
 
 
São muitos os acesos debates que ocorrem em torno da questão do tamanho da saia do traje académico feminino que, temos de convir, releva mais de moda e gostos temporais do que outra coisa.
Para uns será acima do joelho, para outras abaixo e, no meio desta questão de centímetros e milímetros, acaba por reinar uma verdadeira confusão capaz de por os alfinetes de qualquer modista de pé.
Umas gostam de destilar sensualidade, achando que mostrar mais uns centímetros de perna não apenas é mais chique, como não fere os olhos de uma sociedade há muito despojada de puritanismos fundamentalistas; outras preferem o discretismo assente, ainda, numa noção de decoro e de feição mais clássica.
E escusamos perguntar à facção masculina o que prefere ver, porque adivinhamos, jocosamente, a resposta.
Os códigos de praxe, esses, como de costume, não são fonte fiável, quase sempre reproduzindo a partir da cópia de outros, eles próprios expressão consagrada da ignorância (sobre a questão, em Praxe, da cópia copiada, repetidamente reproduzida sem critério nos códigos, ver AQUI).
 
Mas, afinal, em que ficamos?
 
Como o leitor certamente sabe, o traje feminino foi criado pelos anos 1914-1915, em contexto liceal, respondendo à inércia das autoridades académicas e estudantis em formularem um traje feminino discente.
Com efeito, e ao contrário do que sucedeu nas demais nações, Portugal, e especificamente Coimbra, mantiveram uma tónica paternalista, retrógrada e sectária no que concerne aos trajes discentes, sendo que  a passagem do traje talar para o da "abatina" e, deste, para o actual modelo burguês apenas se operou nas vestes masculinas.
Na UC, até á década de 1940, as mulheres seriam liminarmente ignoradas quer na sua participação associativa e cultural quer no acesso a um traje próprio da sua condição.
Enquanto isso, noutras universidades europeias (e não só), os trajes talares há muito tinham evoluído para um traje unisexo (dissso são prova os uniformes de tipo colegial, tornados famosos em muitas séries e filmes, ou ainda a famosa cap and gown), coisa que no caso português não se registou.



Com efeito:
 
"Alunos, alunas e docentes da UC não mostraram particular interesse pelas iniciativas vestimentárias liceais, documentadas para os anos que vão de 1915 a 1924. Tampouco os alunos e alunas confessadamente republicanos da Academia de Coimbra viram o tailleur/capa como potencial instrumento de inclusão da mulher e de afirmação de uma nova identidade da UC junto da opinião pública. O "hermafroditismo" parecia ficar muito bem nas enfermarias das frentes de guerra, mas não no interior da UC.
Não deixa de ser curioso assinalar estas inércias, carregadas de preconceitos de género pelo que insinuam mas não chegam a afirmar, quando na mesma altura (dezembro de 1915) os lentes da UC adoptavam como traje reformado uma sobrecasaca, idêntica à que estava a ser usada pelos capelães militares dos exércitos envolvidos na Grande Guerra, também ela tributárias dos valores "rational dress" e pelos bispos e arcebispos nos países escandinavos.
Nos liceus, o tailleur/capa testemunhava a emancipação da mulher nos anos da Grande Guerra, pese embora insinuando um visual masculinizado e austero, para tanto recorrendo a um uniforme já testado pelas enfermeiras integradas em corporações militares. Na UC, como se verá, a identidade feminina era assumida sem recurso a fardas e o tailleur não parecia talhado para vingar num ambiente onde só podia se entendido como uniforme das funcionárias." 1
 
Foi precisamente para colmatar essa falha que surgem as primárias formas de traje feminino, nascidas nos liceus de Lisboa  e (depois) Porto, segundo a etiqueta da época, à base de capa e tailleur pretos: casaquinho feminino de três quartos, cintado; saia de funil pela meia perna (e meia calça que seria da cor da pele - isto quando utilizavam meias), sapatos pretos, blusa branca, ausência de gravata, e capa preta. No que concerne à cobertura, sabemos que o "tachinho 2" era comumente usado nos liceus de Lisboa e Évora.
 
Foto da capa de um libreto-partitura do "Fado Serenata da Revista 1916"
(Revista portuguesa), da Casa Sassetti & Cª (Lisboa),
com as actrizes/coristas vestidas de estudantas.
com traje, pasta com fitas e tachinho na cabeça 1916
(Acervo de J.Pierre Silva)

 
Esta influência está claramente assente no uniforme envergado pelos corpos de enfermeiras da marinha, nos EUA (em azul marinho, com capote e chapéu de abas), e em certos hospitais europeus pela mesma época (em cinzento), conforme determina o Decreto nº 4:136, de 24-04-1918, que o manda aplicar às enfermeiras militares portuguesas.
Mas sublinhamos que a criação do traje académico feminino é de cariz espontâneo, um movimento que, aliás, como nos diz A. Nunes (2008), passou completamente ao lado dos ministros da Instrução Pública e dos reitores dos liceus.
Com efeito, quando o Ministério da Instrução/Educação decide regulamentar o traje estudantil, versão feminina, fá-lo tardiamente (1924) e, segundo o autor, "...em artigos péssimos que revelam completo desconhecimento da função, importância, características e morfologia dos trajes corporativos."
 
Pelas fotos de época, contrastadas com a investigação feita a clichés de uniformes corporativos femininos da época, não restam dúvidas que a saia cobria o joelho, segundo a concepção de decoro e rigor associados ao uniforme como instrumento de trabalho e não como roupagem de lazer.
Claro está que, bem sabemos, com o tempo, muitos desses uniformes sofreram algumas variações quanto ao desenho e tamanho, sendo que é sobretudo no corpo das hospedeiras do ar que a saia regista uma redução de tamanho, quando a política das companhias aéreas aposta no perfil da hospedeira simultaneamente prestável e agradável aos olhos (passando os critérios de selecção - verdadeiros concursos de beleza, nomeadamente nos EUA -  a dar enorme atenção à beleza e aspecto físico e vestindo as suas funcionárias com um toque de discreta sensualidade, de que a subida da saia é expressão evidente).
 
Seguindo, contudo, o paradigma dos uniformes corporativos femininos da época, a saia do traje feminino, sendo pela meia perna, cobria, naturalmente o joelho.
O que criou enorme confusão nos últimos anos foi a omissão desse pormenor, quando os legisladores se ficaram por indicar que o tamanho a observar era "pelo joelho".
 
Usar essa expressão ("pelo joelho") permitia, desde logo, como está fácil de perceber, e comprovar, múltiplas interpretações, sendo que "pelo joelho" era tanto a saia abaixo ou acima deste.
Por outro lado, a questão tornou-se tanto mais complicada de suster, quando muitas meninas pareciam ter o joelho em locais anatomicamente improváveis.
Uma vez mais, estranha-se que tantos códigos de praxe sejam tão "picuinhas" e "miudinhos" com aspectos secundários e "papismos" sem nexo, mas depois não sejam capazes de esclarecer , e fundamentar, devidamente esta questão de tamanho.
 
E embora a moda da mini-saia fosse muito posterior à implementação do traje feminino nos liceus e, depois, nas universidades do Porto, Coimbra e Lisboa, a geração pós 1980, cedo preferiu, em muitos casos, esticar a interpretação para medidas ad hoc, traduzidas no "acima do joelho um palmo", "meia mão travessa acima do joelho", "5 dedos acima do joelho (que, a gosto, tanto podiam estar juntos como afastados)", etc., de modo a que a saia seguisse mais a moda e apetite pessoal do que o normativo que a regulava como parte integrante de um uniforme.
 
Feito este ponto de situação, e apenas para terminar a contextualização do traje feminino nas universidades, pegamos no que sobre isto nos relata A. Nunes (2009):
 
"...o processo de criação deste traje liceal (em meados da década de 1940 passará a universitário graças ao Orfeão da UP, quando o seu uso já estava generalizado na maior parte dos liceus portugueses) está perfeitamente inserido no contexto ocidental da época, coincidindo com as fardas desenhadas expressamente para as mulheres que exerceram tarefas colaborativas nas forças militares dos USA, Canadá, Grã-Bretanha e França durante a Grande Guerra (carteiro, enfermeira, condutora de ambulância, Cruz-Vermelha)."
 
Assim, sabemos que o traje feminino, rapidamente se divulgou a partir dos liceus de Lisboa e do Porto aos restantes liceus (1914-15 e seguintes), passando a sua adopção universitária a ser primeiramente feita pelas universitárias do Orfeão Universitário do Porto (posteriormente imitadas pelas demais colegas portuenses).


Estudantes finalistas do Liceu de Évora com Florbela Espanca (1917)

Estudantes Liceais do Porto


 
Mais tarde, estender-se-ia a Coimbra:
 
"Ia adiantado o séc. XX quando se acendeu a discussão sobre a necessidade de as alunas da UC tirarem benefícios práticos do uso de um traje de tipo uniforme. Não ter traje académico fazia parte da identidade das académicas da UC
desde 1891, ano em que contemporaneamente se matriculou a primeira aluna.
A não participação feminina na vida associativa, a ausência de organismos culturais mistos até 1938 e a omissão da cerimónias de formatura de bacharéis e licenciados desde 1910 foram justificando a inércia observada em Coimbra. A nível dos liceus locais, mesmo considerando o Liceu Infanta D. Maria, nada consta quanto a um hipotético uso de farda, se considerarmos que a bata branca não era propriamente um uniforme escolar
 
As alunas da UC tinham o privilégio do uso de pasta com fitas de seda e capa preta sem uniforme [o mesmo sucedia em Lisboa e Porto], costume que na década de 1980 ainda era praticado por quintanistas que iam ao Baile de Gala das Faculdades durantes os festejos da Queima das Fitas. Era o equivalente aos trajes cosmopolitas de ir à ópera e ao teatro, usados até á década de 1950 em Nova York, Paris, Londres, Milão e Lisboa.
Nos finais da década de 1940 este estado de coisas começou a mudar quase imperceptivelmente.
 
Orfeonistas do OUP, 1946-1947, Acervo do Dr. Álvaro Andrade
As universitárias de Coimbra estavam a par do uso do tailleur nos liceus e no Orfeão Universitário do Porto (ca. 1946).
O tailleur tinha vindo a conhecer crescente popularização no Ocidente graças às enfermeiras da Segunda Guerra Mundial e aos corpos de hospedeiras das companhias de aviação civil. As divas de Hollywood exibiam tailleur, e estilistas como Christian Dior apostaram na apropriação  pela indústria da Alta-Costura.
O peso crescentemente atribuído desde meados da década de 40 às latadas de começo de ano escolar e às cerimónias de imposição de insígnias (grelos no 4º ano, fitas no 5º ano), começaram a suscitar em alunas da Faculdade de Letras vontade de adopção de um traje académico.  
(...)
No primeiro dia de aulas de 1948, as estudantes de Direito Ilda Pedroso e Mariado Céu Soares atravessaram o que restava da Rua Larga e dirigiram-se ao Paço das Escolas para assistir às aulas com capa e batina. No dia da imposição de insígnias às novas greladas e novas fitadas de Medicina e Farmácia, a 19 de Novembro de 1949, as referidas estudantes desfilaram com um conjunto saia/batina/capa, acontecimento muito comentado no "millieu", mas muito bem acolhido segundo os relatos recolhidos 3.
(...)
Parecia encontrada a solução, numa instituição onde a cultura histórica não legitimava de ânimo leve nem o tailleur, nem uma distinção formal entre modelo masculino e modelo feminino. A breve trecho, a evolução seria bem outra.
(...)
Em 1951 as alunas do Teatro dos Estudantes (TEUC) preparam uma digressão ao Brasil, tendo decidido levar um conjunto prático que substituísse os custos e os incómodos habitualmente havidos com os vestidos de gala. Ficou decidido levar nas bagagens o tailleur preto conforme modelo em voga na alta-costura e no pronto-a-vestir. [traje que em diferentes padrões cromáticos era então usado no Ocidente por enfermeiras militares e hospedeiras de aeronáutica civil.]."4
 
Como mais adiante veremos, quando falarmos da cor das meias, perceberemos que a implementação do traje feminino em Coimbra não foi propriamente pacífica.
 
Até aos anos 1970, a saia do traje feminino parece não sofrer com o efeito do calor que dilata os corpos e mingua as roupas.
Porventura a moda da mini-saia 5, que se fará sentir em Portugal sobretudo a partir dos anos 1970, poderá ter influenciado a forma como a saia do traje feminino passa a sofrer uma subida gradual, quando os trajes académicos são reintroduzidos a partir de 1980 e a sua confecção entregue a grandes cadeias de pronto-a-vestir especializadas, mais importadas com critérios comerciais (sobre a influência negativa dessas cadeias na Praxe, ver AQUI) e de moda.
Os clichés que, contudo, ainda antes, mostram algumas saias mais subidas do que o costume ocorrem na mesma tendência irreverente daquilo que as colegiais fazem às saias dos uniformes em uso: puxando-as um pouco para cima na cintura.
 
Como procurámos explicar, o tamanho tradicionalmente definido e observado ao longo de décadas foi o da saia pelo joelho cobrindo o mesmo.

Na falta da indicação "cobrindo o mesmo", é natural que se registassem variações, logo fundamentadas em justificações para todos os gostos - precisamente ao gosto de quem trajava e para si criava o seu próprio código e norma vestimentários (que ocorrem na mesmíssima proporção das desculpas para meter na capa o que cada um bem quer, fazer nós e rasgões como cada um bem entende, meter colheres de café na lapela ou gravata, encher-se de pins........).
 
A saia pelo joelho, cobrindo o mesmo, apresenta a ideia do porte clássico e austero próprios a um uniforme concebido dentro dos parâmetros da época.
O tamanho da saia, assim estipulado, permitia que a mulher, ao sentar-se, traçando a perna ou não, mantivesse um figurino de elegância discreta e aprumo formal, segundo a etiqueta das boas maneiras.
 
Naturalmente que os tempos mudam e longe vão os tempos da imposição da saia pelo tornozelo a pretexto do recato que era devido à mulher.
Mas, tal como sucede com o traje masculino, ambos se fixaram no modelo que conhecemos há muito, mantendo os seus traços, precisamente porque mais do que uma roupagem sujeita a modas e estilos que cada época expressa, configuram uma espécie de memória patrimonial e representam não uma filosofia, uma tendência ou uma moda sazonal, mas a condição e estatuto estudantil, cristalizados nessa etnografia académica.
Não é pois, neste caso, o estudante que faz o traje, mas o traje que "faz" o estudante, que o apresenta como tal.
 
 
A cor das meias do Traje Académico Feminino
 
 

Como se pode verificar, ainda nos anos 60 (e até ao luto académico de 1969),
era usança a meia cor da pele ou simplesmente não usar meia alguma. 

Foi no seio do OUP que o traje  académico feminino ingressou no ensino
superior nacional. Ainda hoje, é com meia da cor da pele que se traja.

Nos liceus, de norte a sul do país (com excepção do Liceu de Coimbra), e até finais
da  década de 1960, as meninas trajavam ou sem meias ou com elas cor da pele
 
 
Cremos que a observação de alguns clichés acima apresentados, permitem, desde logo, ao leitor, perceber que o uso de meias pretas não foi assim tão generalizado como hoje se constata.
Pois não.
 
Mas por que razão é hoje ponto assente que o uso do traje feminino se faz com meias de cor preta, quando temos provas de que nem sempre foi assim?
Afinal, de onde vem essa determinação que já todos os códigos estipulam (por cópia uns dos outros)?
 
É facto que durante muito tempo as meias em uso eram, tradicionalmente, da cor da pele, isto quando as mulheres não preferiam, antes, não usar meia alguma.
Foi essa a escolha e convenção adoptada pela generalidade das estudantes dos liceus e universidades portuguesas, seguindo exactamente, como já mencionámos, os paradigma dos uniformes corporativos femininos (sendo que, no caso das enfermeiras, as meias eram até, em alguns casos, brancas).
Uma convenção, portanto, quiçá associada a uma ideia de limpeza, conjecturamos nós.


 
Mas por que razão passam a ser pretas?
 
 
Para explicar tal, temos de dar um pulo a Coimbra e recuar até ao tempo em que o uniforme estudantil feminino passa a ser consagrado em código.
Estamos, pois, nos anos 1950  e a TEUC torna-se pioneira no uso do tailleur e capa preta em Coimbra, seguindo as colegas do Orfeão do Porto e a generalidade das colegas dos liceus.
 
Como já referimos, a sociedade académica conimbricense sempre omitira o papel das mulheres na cultura e associativismo estudantis, pelo que a implementação de um traje feminino para as colegas estudantes nunca fora prioritário.
Dessa inércia resultou que as mulheres, de forma emancipada e autónoma, começaram a usar o dito tailleur sem passar cartão a ninguém.
E perante tal, nada se moveu um milímetro. Era assunto que continuava a passar ao lado de um certo machismo fechado em si mesmo e para quem estas "aventuras femininas" despertavam mais curiosidade e graça do que algum tipo de preocupação.
Recordaremos, a título informativo, que na delegação da TEUC que se desloca ao Brasil, em 1951, vai também o Dux Veteranorum da época, Francisco Barrigas de Carvalho e o Reitor, Maximino Correia, os quais não colocam quaisquer entraves ao tailleur/capa pretos.
 
Poderemos pensar que o traje feminino recebeu forte adesão após o passo dado pelas meninas do TEUC, mas tal não é verdade.
 
A verdade é que o modelo que conhecemos foi imposto por decreto, sem consulta de qualquer mulher, num gesto algo surpreendente, como que a tentar não ficar atrás do combóio que já partira bem cedo em 1915 e levava já as estudantes do OUP desde os anos 40.
Atentemos a estas informações preciosas:
 
"Pouco antes da Queima das Fitas de Maio de 1954, o Magno Conselho de Veteranos da academia de Coimbra (MCVAC), após decisão exclusivamente masculina, deliberou impor por "decretus" o tailleur preto à base de casaco preto curto/saia como traje discente feminino.

Ficou determinado que nas latadas das Faculdades e imposições de insígnias de Novembro desse ano as novas greladas e novas fitadas não pudessem usar pasta com grelos ou fitas sem o tailleur preto.
Entre Setembro e Novembro de 1954, Coimbra viveu dias de corrida ao "fato", abrindo desde então as portas ao pronto-a-vestir. A imprensa periódica que efectuou a cobertura dos eventos relatou que a quase totalidade das novas greladas e novas fitadas usava tailleur. O concentrar das atenções da comunicação social em Coimbra fez esquecer que a mesma indumentária era usada ia para 39 anos nos liceus portugueses e pelo menos desde há 8 anos no Orfeão Universitário do Porto.
 
A medida decretada em meados de 1954 gerou uma onda de descontentamento entre as alunas que não se sentiam agradadas com o modelo escolhido, ou que liam a obrigatoriedade como um atropelo masculino à sua tradicional prerrogativa de não uso de uniforme académico.
Outro pomo de discórdia residiu na imposição de meias latas pretas, quando as estudantes preferiam não vestir meias ou usá-las na cor da pele.
 
Ao longo da segunda metade da década de 1950, as alunas pintarão riscos pretos na parte de trás das pernas. Não vestindo meias, na verdade pareciam estar a usá-las graças ao artifício do risco pintado na pele, o qual imitava a costura posterior vertical que as meias altas femininas da época comportavam.
 
Procurando suavizar descontentamentos, o MCVAC integrou o tailleur no "Código de Praxe de 1957" e manteve a velha prerrogativa do uso de capa preta com vestido de gala.
 
O primeiro grande utilizador e divulgador do tailleur terá sido o Coral dos Estudantes da Faculdade de Letras (CELUC), que se apresentara em público no mês de Abril de 1954." 6
 
Não subscrevermos totalmente a ideia de que o corpo discente feminino ficasse aborrecido com a implementação de um traje que era ansiado por muitas estudantes. Mas estamos em crer que o facto de terem ficado à margem dessa decisão, de não terem sido consultadas quanto à escolha, de tal ter sido decidido de forma "apressada" e sem qualquer período de transição, juntamente com serem obrigadas ao seu uso até nos bailes de gala, terão sido razões o bastante para despolotar uma forte contestação, apesar da adesão verificada ao tailleur, sob pena de não poderem usar insígnias.
 
Painel de azulejos que se encontra nos jardins da AAC,
no qual as raparigas são retratadas com meias pretas.

 
Se atentarmos à letra do código de 1957, percebemos claramente que o Conselho de Veteranos, na hora de legislar e passar para a forma escrita o património oral da Praxis, pega no decreto de 1954 e o inclui como "parente pobre", indiciando uma ausência de debate e reflexão aberta (nomeadamente às mulheres - uma vez mais arredadas do processo).
 
Tal é evidente ao verificarmos que o artigo que consagra o traje feminino (Art.º 253º) não vem a par com o que estipula e define o traje estudantil masculino (Art.º 73º), mas 180 artigos depois.
Como está bom de ler, a denominada "praxe das raparigas" (consagrado em título único ,que se inicia com o art.º 249º) surge praticamente no fim do código, o que, por si só, denota a posição ainda secundária que a mulher tinha em matéria de Praxe aos olhos dos rapazes.
Participante, já, em diversos grupos, nunca houve uma verdadeira inclusão das mesmas nos órgãos decisores da Praxe. Se hoje as veteranas podem comparecer livremente, continua o MCV a ser quase exclusivamente uma "cave man", e ainda não parece ser para breve a possibilidade de alguma mulher vir a tornar-se Dux 7.
 
O Conselho de Veteranos da UC da época, acaba, pois, por imprimir no código, de forma muito ligeira e epidérmica (nota-se, e bem, a falta de ponderação sustentada) aquilo que já era observável, segundo a imposição de 1954: tailleur preto à base de casaca e de saia preta não rodada, camisa branca, gravata ou laço pretos, sapatos pretos e capa.
A questão de meia preta parece ser, em nosso entender, é uma espécie de "desvio à la Coimbra".
Estamos fortemente em crer que, neste ponto, o CV quis dar uma alfinetada e sobrepor-se.
Coimbra, que sempre fora o farol, sempre fora a matriz, a "Alma Mater", não podia passar a ter, no tocante ao traje feminino, um papel secundário, de quem vai atrás dos outros (leia-se os liceus e Universidade do Porto), pelo que impor meias pretas era como que marcar uma diferença e vincar uma identidade.

Como pudemos ler acima, e como os clichés abaixo demonstram, a imposição da meia preta encontrará resistência em muitas mulheres, ainda pelos anos 60 adentro.
 

Apesar do "Decretus" de 1954, e da "corrida ao fato", podemos neste cliché verificar que
ainda na Serenata da Queima de 1955, havia quem continuasse a não aderir à meia preta.

 
Transcrevemos o artigo 252º do Código de 1957 8:
 
"As raparigas só podem usar as suas insígnias pessoais estando de capa e batina, devendo esta ser constituída por:
- Sapato preto, de qualquer modelo;
- Meia alta, preta;
- Fato, saia casaco, preto de modelo simples;
- Camisa branca;
- laço ou gravata;
- Capa.
§ 1º O casaco pode ter ou não bandas de seda, mas não ter a gola de pele.
4 2º A saia não pode ser rodada.
§ 3º Fica suspensa a exigência deste artigo quando as greladas ou fitadas se proponham assistir às reuniões dançantes 9 das Festas da Queima das Fitas."
 
Estranhamente, ainda nos anos 1960, se podem ver
raparigas que não usam meias pretas.


 
Fica explicada a questão das meias pretas que se começam a usar em Coimbra, e apenas em Coimbra (liceu incluído), por imposição do MCV, que decreta de forma contrária ao uso e costume, e vontade, das estudantes.
Nas demais academias, continua-se a usar a meia da cor da pele, até ao fatídico luto académico de 1969 com o qual são suspensas a Praxe e actividades académicas e, naturalmente, o porte do traje.
 
Quando as mesmas são retomadas (década de 1980), os liceus não acompanham e, seguindo a academia líder, ou seja Coimbra, todas as demais, ao invés de recuperarem a sua identidade (naquilo que lhes era próprio), (re)copiam Coimbra e, ignorantemente, as meias pretas.


Ainda na transição da década de 70 para as seguinte, e durante os anos 1980,
se pode verificar que, no Porto, o uso das meias pretas não está generalizado.


 
Apenas estranhamos que, no caso da Tuna do liceu de Évora, não se tenha mantido o uso das meias cor da pele, trocando-as pelos ditames conimbricenses ainda nos anos 1960 (pelos clichés que pudemos observar da Tuna do liceu de Évora, já mista, vemos meninas com meias cor de pele e outras com meias pretas, mas depois, a partir dos anos 70 já só meias pretas).
 
Assim sendo, e se quisermos seguir à letra a Tradição, apenas Coimbra deveria seguir o uso das meias pretas, e, mesmo assim, colocamos fortes reservas a tal (se quisermos ser fiéis á Tradição genuína, até Coimbra deveria abolir a meia preta nas senhoras).
As demais academias onde o Traje Nacional está em uso não têm qualquer obrigatoriedade de tal, perante a Tradição.
 
Esperamos ter conseguido esclarecer.
Nestas questões, contudo, cremos que a mulher deveria ter um papel de relevo quanto a decisões desta natureza, sendo ouvida e auscultando a sensibilidade da mesma, em futuras revisões de códigos de praxe, a par com argumentos documentados como aqui apresentámos.


[1] NUNES, António Manuel - Identidade(s) e moda, Percursos Contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses. Bubok Publishing Ldª, 2013, p. 113.
[2] Também conhecido por "barretina", era igual ao dos alunos do Colégio Militar, que tanto foi usado por alunos como por alunas. Este elemento, resulta de uma transformação do barrete islâmico do magrebe, o "chéchia" ou "kufix", que também era usado desde 1859 em escolas militares britânicas de formação de cadetes ("pillbox hat"). Antes de ter feito a sua entrada triunfal nos liceus de Lisboa, Porto e Évora ("tacho"), em versão unissexo, o "pillbox" já era largamente usado em Portugal por militares e impedidos de oficial.
[3] Diário de Coimbra, edições de 20-26 de Novembro de 1949.
[4] NUNES, António Manuel, Op. Cit. pp.113-115.
[5] Definida como o símbolo da moda "Swinging London" na década de 1960, e atribuída à estilista Mary Quant (1966), embora o designer francês André Courrèges também seja frequentemente citado como um pioneiro da mesma.
[6] NUNES, António Manuel, Op. Cit. pp.115-116.
[7] E quem diz em Coimbra, diz no Porto e outras academias.
[8] ANDRADE, Mário Saraiva e BARROS, Victor Dias - Código da Praxe Académica de Coimbra (Revisão de Américo Patrão). Coimbra Editora Lda., 1957, p. 101.
[9] As alunas da UC tinham o privilégio do uso de pasta com fitas e capa preta sem uniforme, costume que na década de 1980 ainda era praticado por quintanistas que iam ao Baile de Gala das Faculdades.