terça-feira, 25 de novembro de 2014

Notas ao uso da Capa (Praxe Traçada com praxismos)



O que não falta por aí são versões, lendas e romanceadas ideias de como se deve usar uma capa com o traje académico.
Assim, temos ditames que determinam que se usa desta ou daquela maneira, em função de inúmeras variáveis que rivalizam entre si em ignorância e autismo.
Ele é em função da hierarquia, de praxes com caloiros, de estar na praxe, de praxismo, do "disse que disse"...... uma caterva de razões que os códigos respectivos consagram a modos que registo de idiotices.
 
 
A capa tem uma função primordial e existe por uma única razão: AGASALHAR.
 
Porque parte de um uniforme, segue, para um conjunto muito restrito de situações, aquilo que é a etiqueta e protocolo próprios do uso do traje (Praxe), a saber:
 
 
- TRAÇADA: APENAS E UNICAMENTE (como próprio da etiqueta/praxis académica) em serenatas (Monumentais) e em trupe;
 
- DESCAÍDA PELOS OMBROS (sem quaisquer dobras): APENAS E UNICAMENTE (como próprio da etiqueta/praxis académica) em momentos solenes ou perante autoridades;
 
 
Assim, meus caros leitores, nem mesmo para praxar é imperativo traçar a capa, como alguns preconizam. Muitos menos por ser noite.

Fora estas situações específicas em que a capa se tem de usar como acima mencionámos, a mesma usa-se como cada um bem entender, seja caloiro ou veterano.

A essas maneiras informais e comuns de usar a capa, se dão várias designações, conforme o modo como a mesma é transportada (à tricana [1], também apelidada de "à senador", ou seja com a capa passando por baixo do braço direito; à ninja, pelos ombros, ao ombro, ao braço, à cabeça........), que não passam disso mesmo: designações correntes e em jeito de cognomes, atribuídas com a época em que se tornaram moda.
 
Nisso não há Praxe alguma, precisamente porque esses usos não são nem obrigatórios nem proibidos (salvo nas únicas situações que atrás citámos).

Nota: Como referimos em nota de rodapé, a designação do "traçar à tricana" poderá não ter propriamente origem nas mesmas e no modo como usavam o lenço em torno do tronco, pois que já os estudantes usavam a capa desse modo, ainda antes das tricanas o fazerem, além de que dificilmente se explica que, no país vizinho, estudantes e tunas já o fizessem também.
 
 
Mas é proibido usar capa traçada numa praxe ou descaída sem dobras noutras situações do dia-a-dia? NÃO!
Pode-se, então, usar? PODE!
Mas sou obrigado a usar? NÃO!!
 
Existe, recordemos, uma diferença enorme entre aquilo que é obrigatório, secundum praxis, e aquilo que é permitido fora dessa obrigatoriedade

Porque não existe proibição ou restrições a nenhum modo de usar a capa fora dos casos previstos, cada qual usa como lhe der jeito e lhe for confortável.

Não há obrigatoriedades que não as acima mencionadas, sendo que não há igualmente restrições fora das situações referidas.

E muito menos existe qualquer fundamentação para não estar afastado da capa mais que X distância. Isso não tem qualquer base histórica ou tradicional. E quem acha que tem, prove-o documental e historicamente, e não com recurso ao produto dos seus intestinos ou com aquilo que emprenhou pelos ouvidos.

Estar demasiado afastado da sua capa, seja por que razão for (cada um sabe de si), pode é implicar alguém no la roubar, tal como deixar a carteira ou o telemóvel, nada mais [2].

As únicas situações em que é imperativo estar correctamente trajado é nas actividades em que, por tradição, o estudante se deve apresentar rigorosamente uniformizado.
Obviamente que, fora estas situações, o estudante tem apenas o dever moral, e brio pessoal, de saber dignificar o traje que enverga, sem contudo que tal implique ortodoxias  e papismos fundamentalistas de medições de distâncias ou contagem de peças que se traz no corpo, especialmente em situações em que o bom-senso e a etiqueta mandam que não se esteja vestido como se estivéssemos em noite gélida.

Não passa pela cabeça de alguém inteligente que se muda um pneu furado totalmente trajado ou que é crime de lesa praxis estar numa esplanada de café sem o poder fazer em colete. Do mesmo modo que almoçar sem casaca (batina) é não apenas conveniente como nada tem a ver com praxe.
E mesmo, por exemplo, em eventos académicos como Baile de Gala, mandam os bons costumes que o estudante dance sem capa, e não deixa de estar "fora da praxe" por isso.


Estar na Praxe é saber obedecer ao que a etiqueta e protocolo académicos determinam para certas situações e não para todas só porque se está trajado.

Pasme-se que, até no que concerne ao traçar da capa em serenatas não havia inicialmente qualquer codificação que obrigasse a taparem-se os colarinhos brancos (quanto mais a estupidez de arregaçar as mangas - más há gente idiota que o faz pensando que é obrigatório, que é da praxe).
Isso de "tapar os brancos" (e apenas os colarinhos) foi uma convenção mais tardia, tanto que Alberto Lamy nada refere quando fala das Serenatas Monumentais (nem quando fala de Trupes), o que por si só é suficientemente esclarecedor:

"A Serenata Monumental, ao cimo das escadarias que conduzem à entrada principal da Sé Velha, o altar do Fado de Coimbra, marca o início das festas da Queima das Fitas.
Integrada nas festas da Queima, pela primeira vez em 1949, a Serenata Monumental é a consagração dos guitarristas e cantores que nela actual.
(...)
É praxe, na Serenata Monumental, não se baterem palmas e os assistentes manterem-se em silêncio até ao final. Os estudantes devem ter a capa traçada e as insígnias pessoais recolhidas.
Após a restauração das tradições (1980), voltou a ser praxe a realização, em seguida à Serenata Monumental, da Ceia dos Boémios (actualmente na cava do Departamento de Química)." [3].

Nota: nas demais serenatas, não existia, em épocas mais recuadas, qualquer codificação em sequer se traçar a capa. Algumas fotos esclarecedoras disso são prova no artigo que anteriormente dedicámos à praxis da Serenata (ver AQUI).

Como se pode verificar, nem mesmo essa obsessão pelos "brancos proibidos" merece tão devota ortodoxia, especialmente no que concerne às mangas, as quais, quando trajado a rigor (momentos formais), secundum praxis, devem estar abotoadas, porque assim é educação e etiqueta, como a Praxe preconiza. Fora isso, cada qual arregace à vontade.

Usa-se a capa como dá jeito, sabendo que há ocasiões muito específicas (e são tão poucas que não há que enganar) em que ela se usa de determinada maneira.

Tudo o que vá para além disso, esteja num código ou em papel higiénico usado (muitas vezes são sinónimos) é excesso de zelo movido por fantasias romanceadas pela ignorância, pelo gosto da picuinhice e promover farisaicos preceitos que obstruem as mentes, asfixiam a Tradição e cobrem de ridículo quem assim pavoneia a sua ignorância.
Ficam alguns clichés suficientemente claros.
Estudante de Coimbra no séc. XVIII
 com capa traçada descaída sobre o peito.


Estudante de Coimbra no séc. XVIII


Estudante espanhol, no séc. XIX


Antigo estudante espanhol. do séc. XIX
(Museo Internacional del Estudiante)
Julgamento do caloiro (1940) com o mesmo trajado com a capa pelo ombro
e os demais usando a capa de diversas formas (sem obrigatoriedade de estar traçada).


Pintura mural de uma trupe, na qual podemos ver o uso da
traçada ou até enrolada ao pescoço.
(Real República Rás-Teparta)
Trupe (cliché tirado para postal ilustrado - por isso foto diurna)
em que alguns elementos usam a capa pela cabeça e o caloiro a tem descaída.
(1940)

Trupe em foto de estúdio (para postal ilustrado) com o
caloiro a usar a capa no braço.
Estudante da UC em 1891

Manuel Louzã Henriques, dia de formatura,
com os sineiros da Torre da Universidade (p.189) em 1961.

Quintanistas de Coimbra em Récita, onde podemos ver alguns
estudantes disfarçados de tricanas (e usando o lenço traçado sobre o peito).
Ilustração Portugueza, 1ª Ano, Nº 23, de 11 de Abril de 1904, p. 359
 (Hemeroteca Municipal de Lisboa).

Os Estudantes Portugueses em Paris, onde podemos ver
 diversas formas de usar a capa.
 Illustração Portugueza, 2ª série, Nº 11, de 7 de Maio de 1906, p. 341.
Liceu Alexandre Herculano, do Porto, no ano lectivo de 1905-1906.
Foto de Padre Moreira das Neves, -o Cardeal Cerejeira, Lisboa, ProDomo, 1948
Benção das Pastas na capital, a qual se realizou em 1933
 (na Igreja dos Mártires), para os "quintanistas católicos de direito e medicina.
Por se tratar de cerimónia solene, a capa está descaída sobre os ombros.
(Ilustração, 8º Ano, Nº 6 (174), de 16 Março 1933, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
Tuna Porto 1897, com os elementos usando capa de várias maneiras
 O Tripeiro, V série, ano VII, n.º 10 (Setembro de 1951), pág. 99
Pequena BD onde se retratam estudantes na praxe,
usando a capa de várias formas (pelos ombros, à tricana e ao braço)
O Caspa e Batina - Jornal da Mocidade Portuguesa da 1ª série, 1938, p.4
Serenata Monumental em Coimbra, com o uso da capa traçada.
Queima do grelo (que dá o nome à Queima das Fitas) na UC,
onde podemos ver o estudante de capa ao ombro.




[1] Por, segundo certas correntes, imitar a forma como as tricanas de Coimbra usavam o lenço em torno do tronco (algo que não consegue explicar como a mesma moda ocorria no ps estudantes do país vizinho). Uma forma de usar a capa muito comum no séc. XIX e (até à década de 1960), como dezenas de clichés da época o comprovam, tunas portuguesas e espanholas inclusive.
[2] E se é para praxar ou participar de uma actividade formal, então a questão não se coloca, porque obrigatório trajar a rigor.
[3] LAMY, Alberto Sousa, A Academia de Coimbra, 1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos Académicos. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª edição, 1990,p. 673

sábado, 25 de outubro de 2014

Praxe - semente de democracia, igualitarismo e meritocracia



Na maré de disparates que se têm dito no debate actual sobre a Praxe Académica, impõe-se uma reflexão mais ou menos séria sobre os princípios sobre os quais assenta a Praxe.

Importa fazer desde já uma ressalva. Na presente reflexão,  entraremos em linha de conta apenas com a noção de Praxe Académica tal como foi cristalizada pela vivência académica em Coimbra, tendo sido posteriormente transmitida ao Porto e, em certa medida, a Lisboa (até aos anos 1930), a partir da formação de institutos e escolas de ensino médio e superior nestas duas cidades.

É o que designaremos, para efeitos da presente reflexão, por "praxe de matriz coimbrã" ou simplesmente "Praxe".



No presente artigo, "Praxe" será sempre usada no sentido de "conjunto de normas que regulamentam as relações entre estudantes" - nunca "gozo ao caloiro" ou "sanção".

CRÍTICAS À PRAXE

A crítica à Praxe assenta essencialmente no seguinte:

  • a Praxe promove a desigualdade entre os estudantes;
  • a Praxe assenta numa hierarquia rígida que privilegia o número de matrículas (a burrice) em detrimento do mérito;
  • a Praxe promove a violência e a coacção.


Com muita pena, teremos de concordar que assim tem sido.

Para sermos isentos, temos de admitir que o discurso e a prática dos praxistas autorizam estas observações.


Lamentavelmente, a maioria dos críticos e um número demasiadamente grande de praxistas estão convencidos de que assim é, ignorando quer os contextos históricos e sociais, quer a evolução e os mecanismos de consolidação e cristalização de práticas quotidianas em tradições. Não só ignoram como desprezam olimpicamente qualquer reflexão sobre o passado.


Quando abordamos a Praxe, é importante fugir das definições de dicionários e pseudo-dicionários, e analisar não só o conteúdo dos códigos de Praxe, mas, e acima de tudo, os relatos de antigos estudantes (como o Palito Métrico, o In Illo Tempore ou O Livro do Doutor Assis).

É igualmente importante ter em conta a massa humana que nos tempos mais recuados frequentava a Universidade. É preciso ter ainda em conta o ordenamento jurídico nacional até pelo menos meados do século XIX.

Comecemos por este último ponto.

Até às grandes reformas jurídicas promovidas pelo Liberalismo vintista, com Mouzinho da Silveira à cabeça, ao longo do chamado Antigo Regime, havia leis diferenciadas, de acordo com o estatuto social (ou Estado) a que os cidadãos pertenciam. Eram os chamados "foros". Podemos afirmar, sem risco de estarmos muito errados, que havia uma lei para ricos e outra para pobres. Se nos nossos dias existe essa percepção, em tempos passados era uma realidade.

A população universitária era constituída essencialmente por aqueles que tivessem posses para pagar as propinas: filhos de nobres, filhos de mercadores ricos ou filhos de lavradores abastados, para além de membros das ordens religiosas e militares.

Encontravam-se, assim, reunidos num mesmo espaço jovens oriundos de diferentes Estados ou Ordens sociais: Clero, Nobreza e Povo, cada qual sujeito a (ou usufruindo de) foros especiais.

Na rígida hierarquia social vigente, os diferentes elementos teriam de tratar-se de acordo com fórmulas extremamente elaboradas - de "Vossa Senhoria" a "tu", de acordo com o "degrau social" em que se encontrassem.


Os regulamentos universitários encontraram formas de esbatimento destas diferenças. Uma delas foi a introdução de um uniforme académico, que acabou por ter uma dupla função: por um lado, distinguir os universitários face à população em geral, permitindo a identificação dos que usufruíam do Foro Académico; esta intenção teve um outro efeito: produzir uma igualdade a nível horizontal, entre os estudantes, uma vez que as diferenças de nascimento e condição não se faziam sentir por via da forma de vestir.


Para além dos regulamentos institucionais e paralelamente a estes, os estudantes desenvolveram eles mesmos formas de nivelamento entre si.


Ao chegar à universidade, o estudante era "Novato", não o filho do sr. Conde ou o sobrinho do pároco. No 2.º ano, era um pé-de-banco; no 3.º, um candeeiro - e por aí adiante.



Sujeitos à mesma lei comum, os estudantes desenvolveram e vivenciaram, muito antes da lei civil, o princípio democrático da isonomia: a igualdade perante a lei.



Assim, em épocas de profundas desigualdades, os estudantes cultivaram e mantiveram uma tradição democrática e - no contexto do Antigo Regime - revolucionária.

Na "micro-sociedade" académica, todos eram iguais perante essa lei. O estudante era sujeito, por assim dizer, a um "banho" de democracia e igualdade pelo menos durante o tempo que frequentava Coimbra. Assim se compreende que a Praxe só tenha validade dentro dos limites da cidade (tal como previsto no Código da Praxe de Coimbra e no Projecto de Código da Praxe Académica do Porto de 1983): havia a consciência de que as regras aplicáveis no meio universitário eram diferentes das que se aplicavam fora.

É, portanto, falso que, na sua essência e origem, a Praxe seja anti-democrática e promova desigualdades. Muito pelo contrário. As práticas e costumes que estão na base daquilo a que actualmente se dá o nome de Praxe foram precursores na aplicação do princípio da isonomia, que, criado na democracia ateniense e enunciado pelos teóricos da Revolução Francesa, haveria de demorar mais de um século a entrar na ordem jurídica portuguesa. Repare-se, por exemplo, na atitude provocatóriados antigos estudantes ao darem o nome de "república" - em tempos de monarquia - às suas casa comuns.

É um facto que a Praxe impõe uma hierarquia rígida entre os estudantes: os do 2.º ano têm mais direitos que os do 1.º; os do 3.º mais direitos do que os do 2.º - e por aí adiante. Além disso, quem tem mais matrículas tem um grau mais alto na hierarquia.

Os detractores da Praxe dizem que esta hierarquização promove os que menos estudam - os "mais burros", portanto.

Têm, de certa forma, razão - e mais uma vez foram os praxistas quem lhes deu razão.





No entanto, estão redondamente enganados - eles e quem lhes deu razão.

Nas últimas décadas, assistiu-se à valorização do número de matrículas como critério absoluto e que se sobrepõe a qualquer outro na "mobilidade social" académica.

Na verdade, os "direitos" em Praxe vão-se conquistando à medida que se progride no curso, não com a simples acumulação de matrículas. Este critério só serve de factor de desempate e critério de precedência entre estudantes que se encontram no mesmo ano curricular.

Segundo a Praxe, só se atinge o grau de Veterano quando se usou o grelo. Isto significa que se passou de metade do curso. Por mais matrículas que tenha, um aluno a quem não tenha sido imposto o grelo não pode ser veterano. E mesmo que um aluno grelado seja veterano, não está acima de um aluno fitado que o não seja - por exemplo, num tribunal de Praxe.

O número de matrículas não é, por si só, um "mérito": acima disto está o progresso escolar do aluno.

É falso, por isso, que a Praxe promova a incompetência e a burrice.  A Praxe é, na sua essência, meritocrática.

O abuso de certas "habilidades" (como a dos veteranos por mérito académico) perverteu a lógica do sistema. De facto - e contra a própria história e tradição - a prática actual acaba por promover a incompetência, a repressão e a subordinação acriterial.

Os costumes que se vieram a condensar em "Praxe Académica", têm, por isso, fundamento em valores de democraticidade, igualitarismo e meritocracia.


Lamentavelmente, aquilo a que actualmentese assiste em muitos casos constitui uma inversão dos valores basilares: uma hierarquia imposta e mantida em nome de uma ignorância e prepotência gratuitas, ao arrepio da própria tradição que tantas vezes - e até com boas intenções - se pretende defender.

Notas ao conceito de Praxista


Alunos grelados da UC, em 1950
Foto do acervo de Rui Pato
Há já algum tempo que me assaltava esta questão da noção de “praxista”, fruto de uma enorme confusão de conceitos e definições, de competências e direitos que iam baralhando de tal modo as coisas, a ponto de se confundir a estrada da Beira com a beira da estrada (ou rabo com as calças, como diz o povo).
E tal é assunto tanto mais pertinente que, a determinada altura, parecemos todos estar a falar idiomas diferentes ou estarmos literalmente numa aceso debate de uma tertúlia de cegos-surdos.
Naturalmente, este artigo vem no seguimento de outro (ver AQUI), dedicado à compreensão do conceito erróneo atribuído aos designados “anti-praxe” (que convirá ler, para não se perder o fio à meada).
O termo “praxista” é hoje frugal componente do menu da gíria estudantil, utilizado para identificar um conjunto, nem sempre bem objectivo e inequívoco, de estudantes possuidores de determinadas premissas, protagonistas de determinadas condutas ou detentores de determinado estatuto, conferidos pela praxe.
 
Decidimos analisar a significância sob 3 prismas - e, bviamente que entendemos que por praxista se concebe, à partida aquele que está na/em Praxe[1]:
 
a) Praxista - aquele que foi praxado.
b) Praxista - aquele que praxa.
c) Praxista - aquele que respeita e cumpre a Praxe (a lei).
 
·         Olhemos ao caso A:
 
Se nos tornamos praxistas pelo simples facto de termos sido praxados, perguntamos que graça espiritual foi concedida ao caloiro que, por ter sido praxado, se tornou praxista.
Dizemos tal, porque em muitos meios se afirma que não é praxista quem não foi praxado. Por isso, se foi praxado, consequentemente é praxista.
Mas quem foi praxado teve alguma epifania ou viveu algum momento pentecostal para ficar a saber de Praxe e, tal os apóstolos reunidos no cenáculo, sair a anunciar a praxe, a conseguir evangelizar praxisticamente os “pagãos”?
É que, em muitos meios, se diz que só quem foi praxado compreende, entende e está em condições de estar na praxe, de praxar, de trajar, de participar na Tradição......ser praxista,
Colocamos, obviamente, fortes reservas a tal entendimento. Aliás, é mais "conversa da treta produzida por praxistas da treta".
Por outro lado, que dizer daquele que, tendo sido praxado, opta por não praxar nenhum caloiro, ou mesmo não participar senão anonima e pontualmente nas celebrações, marcando apenas presença?
 
Certamente que quem assim fizer não será tido como “praxista” de facto, comparativamente com aqueles verdadeiramente “praxistas dos 7 costados”, mas uma espécie de “praxista não-praticante” (que é o mesmo que alguém afirmar-se futebolista, mas não jogar à bola, apenas ir assistir aos jogos).
É isso?
Mas ainda se levanta outra questão, nomeadamente no que concerne a caloiros:

se os caloiros são praxados, é porque “aderiram” à Praxe (e aqui incluímos, naturalmente, as “praxes”), logo têm de estar na/em Praxe, mesmo se a quase totalidade é praxado antes sequer de conhecer as regras do jogo (o código) para poder optar.
É exercício algo complexo o de conceber que alguém adere àquilo que, no fundo, desconhece e que os demais aceitem quem nem as regras sabe, de facto.


As praxes tornam-se, assim, uma espécie de 2 em 1: o acto de praxar não apenas cumpre a função de gozo, mas serve de curso milagroso que permite uma integração plena do aluno que nesse momento aprende tudo o que há para saber para estar na/em Praxe. Milagre, ouviríamos, então, clamar!
 
Pois, mas o facto é que aquilo que caloiros fazem, isso sim, é o papel de praxados, que é diferente daqueles que fazem o papel de praxadores. São ambos praxistas?
E quem opta por não ser praxador, é também praxista?
 
·         Atentemos, agora, para a opção B:
 
Se é praxista aquele que praxa, perguntamos, então, se ser praxista é ser capaz de berrar, dar ordens e mandar fazer X ou Y.
É que se for esse o caso, naturalmente que não é preciso ter sido praxado para conseguir fazer tudo isso, mas apenas vestir o papel de sargento e/ou ter ideias criativas para inventar gozos para o caloiro (e quanto a um vasto leque de “brincadeiras” que conhecemos como mais usuais nas praxes, nada como copiar o que os escuteiros, os jogos tradicionais ou os grupos de jovens em acampamentos e campos de férias não façam já com enorme mestria).

Em alguns casos, basta igualmente deixar livre expressão a exageros, à boçalidade ou mesmo à falta de civismo (aliás, parece tal ser assim a modos que "operações especiais" da praxe).
Tanto é assim que para aprender nem sempre é preciso propriamente experienciar, principalmente com a facilidade em sair-se de casa e assistir a “praxes” ou ficar comodamente a ver as publicações que surgem aos milhares na net.
Só que praxar caloiros é sazonal. A recepção e ritos de iniciação apenas ocorrem (ou devem ocorrer, segundo a Tradição), nos primeiros dias/semanas de aulas. E nos demais eventos e datas expressivas do calendário académico em que não há praxes com caloiros, como é ser-se praxista (quando não se está a praxar)?
 E como tratamos os muitos praxistas (que foram praxados e praxam) que cometem abusos ou exageros?
Designamo-los apenas por “maus praxistas”?
 
Se esses “maus praxistas” são “consentidos”, não haverá lugar a que, nessa designação possam igualmente entrar os que nunca foram praxados?
Qual o pior resultado: um praxista (que foi praxado) que comete abusos ou aquele estudante que nunca foi praxado?
Qual preferimos: o praxista que exagera e protagoniza erros ou aquele estudante que, embora não tenha sido praxado, decide praxar sem cometer exageros e sem desrespeitar ninguém?
Então ao prevaricador continuamos a tratar por praxista (mesmo que “mau”) e ao segundo designamos de “anti-praxe”?

E será assim tão lesivo que quem não tenha sido praxado pretenda participar da Tradição, conquanto o faça bem e segundo as regras? Prejudica alguém a não se  o ego daqueles que se acham eleitos praxísticos?

Não é objectivo de todos que todo e qualquer estudante traje e cumpra devidamente o que está estipulado para os actos académicos, ou o objectivo centra-se apenas em castigar e gozar e, depois, já o que cada um faz pouco importa?
Um estudante que nunca tenha sido praxado, e até nem praxe, que se comporte com qualidade e rigor na sua vida académica lesa quem?

Ser praxista adquire-se por merecimento ou por mérito? É que são coisas distintas. E como se processa tal avaliação e valoração (ocorre-nos a ridícula questão das avaliações praxísticas, que em algumas casas ridiculamente se fazem -ver AQUI).
Afonso Lopes Vieira em Caloiro, 1894
Merecimento é entendido nos meios praxísticos como aquele que sofreu nas praxes e, só por isso, merece poder praxar.
Mérito, contudo é aquilo que distingue a pessoa que é capaz de fazer bem as coisas, independentemente daquilo que passou nas praxes ou nem sequer passou.

O mérito está bem presente na Tradição, precisamente porque as insígnias pessoais (que muitos acham que são condecorações pelo praxismo de cada um) existem não em função de matrículas ou participação em praxes (nem de maior ou menor praxismo), mas do ano frequentado (e o percurso que o estudante vai fazendo nos estudos).
Pois é. Desculpem a decepção, mas as coisas são assim, secundum praxis.
Isto faz lembrar um pouco aquela questão os alunos indignados que se esfarfelaram o ano inteiro para conseguir bons resultados, não faltando a nenhuma aula, fazendo todos os trabalhos, tendo sebentas exemplares…..e depois vem um tipo que nunca pôs lá os pés, mas estudou para o exame e tira melhor nota. E toda a gente acha injusto, mesmo se ele demonstrou que foi mais capaz, sem precisar de passar pelo mesmo, porque há muitas estradas para ir dar a Roma.
 
·         Tratemos agora da opção C:
 
Praxista sendo aquele que observa e cumpre a Praxe, ou seja a lei académica; lei académica essa que é a transposição  da Tradição (parte dela, convém sublinhar, pois nem toda a Tradição Académica está sob alçada da Praxe[2]) num “formato legislativo”.
Ora se a Praxe decorre daquilo que lhe dá legitimidade, ou seja a Tradição, desde logo dizer que a Praxe não determina, nem pode determinar.que deva haver um qualquer regime de precedência que não o do mérito escolar, ou seja, não determina que é preciso ter sido praxado para ser-se praxista.
 Então o que é ser-se Praxista, de facto?
 
Tomemos o seguinte exemplo: um aluno que nunca foi praxado, decide, no ano seguinte praxar.
Para o fazer apenas basta que respeite o que está consagrado: saber os limites impostos pela Praxe (lei académica) para que o acto de praxar seja regular.

Deverá saber que existem regras que determinam quando o pode fazer e em que moldes (quem pode mobilizar, o que não é de todo permitido fazer,  por exemplo); saber que existem protecções; saber que deve estar trajado secundum praxis e, naturalmente, obedecer a essas determinações (sem esquecer o respeito pela integridade do indivíduo, usar de linguagem apropriada, ter uma conduta digna, etc.).

Do mesmo modo que um caloiro deve, antes de ser praxado, conhecer as regras do jogo, conhecer a lei académica, a Tradição.

Quase estaríamos tentados em dizer que isso se resume a conhecer o código (muitas academias não o fornecem ou permitem acesso aos caloiros antecipadamente), contudo, olhando ao conteúdo de muitos códigos, o preferível é dizermos que devem, antes de mais, assegurar a preservação dos seus direitos civis (que um código decente não legisla contra os direitos civis).
 Assim, praxista é aquele que, mesmo não tendo sido praxado, observa e espeita a lei quando pretende participar da Tradição Académica.
- Praxista é aquele que, mesmo não tendo sido praxado, veste correctamente o traje; é aquele que segue o que está determinado, por exemplo, quanto à forma de usar insígnias; é aquele que faz silêncio na Serenata Monumental, usando o seu traje conforme a ocasião exige; é aquele que sabe que numa igreja ou acto solene usa a capa descaída pelos ombros; é aquele que conhece e respeita a hierarquia, quando aceita essa forma de enquadramento……………
 - Praxista, de facto, meus caros leitores, é o exercício da cidadania académica no que toca a um conjunto de regras que norteiam a etiqueta, o protocolo e as regras sociais convencionadas para o conjunto estrito de actos e manifestações que pertencem à Tradição Académica.
- Praxista é aquele que respeita a Tradição sempre que nela participa e enquadra, porque aquele que praxa é “praxador” e quem é alvo de praxes é “praxado”, mas ambos são praxistas.
 
Do mesmo modo, somos cidadãos de um país porque nele nascemos (ou pedimos naturalização após X anos de vivermos nele) e não porque fomos sujeitos a uma qualquer recruta ou curso de cidadania (e não é mais cidadão quem foi á tropa do que quem não foi, só para deixar este exemplo).
Temos o direito a votar quando atingimos uma determinada idade, e não em razão de termos tirado um curso de ciências políticas (ou mesmo pelo simples facto de sabermos ler e escrever – embora no passado, o sufrágio fosse discriminatório nesse sentido).
 
Podemos candidatar-nos para cargos políticos em razão de termos determinada idade (além de outros atributos e qualidades pessoais), e não exclusivamente por termos militado numa “Jota” qualquer (aliás o problema da praxe é até similar ao que temos na política: somos governados por pessoas oriundas de aparelhos partidário, maioritariamente incompetentes).
 
São algumas comparações algo rudimentares, bem sei, mas servem apenas de leitmotiv ao processo que urge de reflectir e fazer uma analepse às fontes da genuina Tradição e ao necessário bom-senso que deveria presidir a estas questões praxísticas.
Existirá, igualmente, um outro empréstimo ao significado: o de ser a favor da Praxe.
Refutamos tal porque nos parece que apenas promove mais confusão, tendo em conta que uma coisa é ser a favor da Praxe (como expressão do usos e costumes codificados) e outra é ser a favor das praxes (gozo ao caloiro).
Pensarão alguns incautos que se trata da mesma coisa, mais nada mais falso, pois é plausível ser a favor da Tradição Académica (nomeadamente aquela que está na esfera da Praxe) e ser-se contra as praxes (que são apenas uma parte - não essencial - dos usos e costumes estudantis).

Aliás, se há algo que nos parece claro é que ser anti-praxeS não equivale a ser contra a Praxe ou contra a Tradição Académica, pelo que praxista não é propriamente antónimo de "anti-praxe".
Uma nota mais:pode qualquer um ser praxista sendo anti-praxeS[3], ou seja, não concordando com quaisquer actos que impliquem gozo com caloiros, tal como se pode ser adepto de um clube, sem que isso implique concordar em ser-se contra outro clube, indo para os estádios insultar os adversários.
 

[1] Partimos sempre da ideia de que todos eles estão na/em Praxe (seja qual for, depois, o entendimento que o “estar em/na” possa ter – ver AQUI).
[2] E tão pouco Tradição Académica e Praxe significam, de facto, o mesmo. O exemplo das tunas estudantis (que são uma expressão de tradição académica) é disso cabal prova, pois elas não são Praxe, tal como o não são os grupos de fado, o próprio fado, os coros académicos, etc.
[3] Como já o referimos neste blogue, no artigo dedicado aos “anti-praxe”, ser anti-praxe não tem sido, por parte dos próprios caloiros, assumido como ser contra a Tradição, mas apenas contra o ser-se praxado ou contra as praxes (gozo ao caloiro), apesar dos organismos de Praxe imporem outro entendimento.