quinta-feira, 24 de abril de 2014

Notas sobre o Traje Académico e Traje de Tuna

Alguma tinta tem corrido sobre o assunto, pese o facto de ele ser, ainda em muitos casos, mais tratado “off record”, em “meias palavras”, ou no fácil exercício de conjecturar.
Escrever sobre o assunto obriga a urdir o pensamento com alguns cuidados redobrados, quanto mais não seja apresentando argumentos, e factos, objectivos e idóneos.
Actualmente, torna-se, cada vez mais, difícil falar-se em “Traje de Tuna”, pelo menos da Tuna Portuguesa, tendo em conta a cada vez maior multiplicidade de panos e indumentárias.
Numa clara fuga à capa e batina, por motivos que aludirei mais à frente, constata-se o crescendo instalar de uma descaracterização total da identidade Tuna, no que respeita ao aspecto estético da mesma, dos seus componentes, dos seus tunos.

Pelo contrário, no país vizinho, a estandardização de um padrão comum criou, em torno da Tuna Espanhola, uma imagem inequívoca e imediatamente reconhecível, tal como o é, ainda, por cá (mesmo se parece votado ao contrário), a capa e batina que prefigura o estudante universitário.
Por terras lusas, o ressurgimento das tunas na década de 80 do século passado coincidiu, grosso modo, com o reavivar das tradições académicas, em plena época, também, de profusa expansão do ensino superior.
Já disso falei neste blogue: a emancipação e pseudo-auto-determinação académica, ocorrida em muitos pontos, levou a uma clara reinterpretação da tradição e desejo, na maior parte das vezes néscio e acéfalo, de “ser diferente”.
Com muita ignorância à mistura, uma boa dose de desrespeito e falta de dois dedos de testa, levou à adopção de novos panos académicos, ditos “trajes académicos”, com o "amen" das respectivas instituições de ensino, ávidas de publicidade e tudo quanto as tornasse "únicas".
Subtil, e maliciosamente por vezes, se registaram espantosos argumentos de história ficcionada para justificar a necessidade ou plausibilidade de um traço próprio; próprio, segundo muitos, mas que mais não foi do que querer distanciar-se da “sombra” de Coimbra como se, para isso, tudo se remediasse na adopção de nova indumentária com selo de origem controlada (razões da etnografia local, etc. de que não se conhece nem um estudo publicado, pasme-se - nem sequer nos respectivos códigos de praxe, mostrando a seriedade da coisa).
E já não falo no ridículo de muitos desses códigos de praxe, repletos de invenções que enfeitam, mas nada trazem de substancial (isto quando não promovem atentados ao bom senso, educação e civismo).
Seja como for, pegou moda a “mania” e toca de fazer trajes novos a metro, quanto mais diferentes e espalhafatosos melhor, para dar uma ”identidade” própria a cada academia e, principalmente, não se confundir com Coimbra. Todos esqueceram algo fundamental: a etnografia não cabe num uniforme estudantil, precisamente porque a sua razão de existir foi precisamente distinguir-se dos demais mesteres,profissões e classes, criando um fro próprio. Aliás, nem a etnografia nem o folclore contemplam a figura do estudante. Está bom de ver, pois, que qualquer argumento etnográfico cai por terra.

Resultado?
Bem, ele está á vista: só quem traja capa e batina é, de facto, identificado, e bem, com o estudante universitário, todos os demais……. ou têm de dar explicações adicionais ou são confundidos com tudo menos com aquilo a que o pano, supostamente, deveria servir (há trajes que parecem o fato domingueiro que vejo em alguns ranchos, só para dar um exemplo).
Temos mais diversidade, mais criatividade estilística, panos para todos os gostos, cujo resultado final é uma enorme confusão, a ponto de, neste momento, dificilmente de identificar quem quer que seja, tal a quantidade e diversidade.
Salvo um ou outro caso de sucesso (que não significa que  esteja correcto), a maioria das invenções não resultou, chegando-se ao caricsato de termos academias com 6 trajes diferentes, como sucede em Castelo Branco.
Alguns dos usuários desses ditos panos académicos terão, em algum momento, ter tido de explicar o seu vestuário (eu já assisti pessoalmente a isso) a algum transeunte, algum curioso ou turista....... pelo que não vejo qual a diferença entre um estudante de capa e batina de Leiria, por exemplo, dizer que é de Leiria, apesar de trajar com um traje conotado com Coimbra. Pelo menos é identificado como estudante universitário nacional, jáque o Traje Nacional assim foi reconhecido.
Já a questão geográfica quanto à localidade, é mero pormenor que rapidamente se ultrapassa com “sou estudante de Lisboa” (Viseu, Santarém, Beja etc.). Mas mais: em tempo algum um uniforme teve por objectivo a identificação geográfica do seu portador, mas a expressão do seu estatuto: estudante.

A capa e batina, no seu actual modelo (com pouco mais de 100 anos) NÃO É DE COIMBRA!
Quem o enverga deveria ter a obrigação de conhecer a sua história, sabendo, por isso, que ele não é “de Coimbra”, pois traje de Coimbra só na etnografia, no folclore local (que os Ranchos tão gratamente preservam e divulgam).
O grande erro começa logo pelo chauvinismo de alguns (muitos?) estudantes conimbricenses que apregoam que o traje é deles (ainda há pouco, num fórum sobre Praxe de Coimbra, assisti a essa lenga-lenga), que a tradição do seu uso é deles, quando isso não corresponde aos factos.
A capa e batina, no seu actual modelo, resulta do movimento laico anti-clerical que, para cortar com o traje talar (de natureza eclesiástica) impõe o modelo do fato burguês, sucedendo à "abatina", logo disseminado no Porto, Coimbra, Lisboa e liceus nacionais (capitais de distrito).
Por isso, o traje não é de uma cidade, mas nacional (como viria a ser formalmente reconhecido, aliás, por decreto governamental). O que herda de Coimbra é a designação "capa e batina" (que é o nome pelo qual o traje é conhecido na gíria estudantil).


Esta falta de rigor é que levou a tantas decisões erradas que fizeram escola, desde logo pela tontice de tantos novos "trajes académicos" só par aser diferente de Coimbra. Veja-se agora a argolada monumental. E não podemso esquecer que em qualquer cidade ou vila com ensino, o traje nacional era usado. E muito menso esquecer que todos os estabelecimentos onde nasceram "novos trajes" usaram antes capa e batina.


A “Capa e Batina” é, e assim designada,  o Traje Nacional do Estudante Universitário Português.
Depois da extinção do seu uso obrigatório por decreto do governo provisório da república a 23 de Outubro de 1910 ou seja, “a partir de 1911, o Traje Talar deixou de ser um simples uniforme para significar valor cultural, património da Comunidade Académica, sublimado pelo espírito de Coimbra”. (in, Qvid Praxis). Em 1918, mais precisamente a 6 de Julho, são estipulados os Estatutos Universitários, os quais contemplam o traje, mas não o impõem.Mas se a obrigatoriedade do seu uso foi extinta, é facto que só a partir daí é que o traje assume maior divulgação no foro liceal, com a nacionalização do Traje Académico para todas as universidades, liceus e escolas superiores, definida no decreto n.º 10290, de 1924, do então Ministro da Instrução Pública, Teixeira Gomes, no qual se refere, também, a punição para todo aquele que traje indevidamente.
Assim, temos um traje nacional, devidamente reconhecido como o do estudante universitário, ponto final.
Tudo o mais me parece fogacho.

Mais informações pormenorizadas sobre a origem do traje: AQUI e AQUI


O caso do Minho, onde é reabilitada uma indumentária (O “Tricórnio”) usada nos tempos em que lá teria havido Estudos Gerais (que não devem ser confundidos com Universidade, já que no séc. XVIII esses estudos eram reportados à formação eclesiástica e não à noção de universidade, como existia em Coimbra), não foi, também, mais do que aproveitar um facto passado, que carece de estudos mais aprofundados, para justificar o “corte” com Coimbra.
Pesquisei algo sobre o assunto e parece-me que o resultado final do traje lá usado é uma adaptação ou recriação, não totalmente fidedigna (nem de longe nem de perto), parecendo-me haver uma propositada sinédoque: tomando, “convenientemente” uma parte pelo todo, umas pinturas ou ilustrações como sendo traje académico.

Uma coisa me parece certa, não se pode afirmar ter havido um traje universitário diferente em Braga no séc. XVIII, tido como tal, como sucedia em Coimbra que pudesse "justificar" o reabilitar de um "traje antigo dos estudantes". O Tricórnio é uma cobertura (chapéu) usada pelos civis e militares no séc. XVIII, cuja verdadeira “tradição” é militar e/ou aristocrática (e nem é portuguesa sequer). No dobrar desse mesmo séc., a partir de 1760, sensivelmente os bicórneos ou chapéus de dois bicos, já se tinham imposto, vendo-se de tamanhos diversos, sendo alguns enormes e com as pontas exageradamente grandes e descaídas até aos ombros, acairelados de penas, com grandes penachos; as borlas, as presilhas e os botões enriquecidos de pedrarias valiosas e bordados a fio de ouro ou prata! (de que conhecemos a moda do “chapéu à Napoleão).

Justificar a existência de estudos Gerais em Braga no séc. XVIII é ficcionar e fazer uma interpretação ad hoc da noção de Universidade, até porque se os responsáveis pela criação do traje “Tricórnio” fazem referência aos Jesuítas, há que relembrar que os jesuítas portugueses, quando expulsos de Portugal, em 1759, dirigiam vinte e oito colégios de ensino secundário, em Portugal, e a Universidade de Évora (que lhes foi oferecida em 1559 pelo cardeal D. Henrique), não constando que dirigissem qualquer Universidade em Braga (voltariam a Braga, é verdade, mas em 1875, ou seja finais do século XIX, mais dedicados ao apostolado do que ao ensino, sendo preciso esperar pela década de 40 do séc. XX, depois de terem sido novamente expulsos em 1910 e regressarem em 1934, para se falar, então sim, de universidade em Braga: em 1942 o Curso Superior de Ciências Filosóficas" e, em 1947, a Faculdade Pontifícia).
Nessa altura, em 1875, o traje usado no Liceu Nacional de Braga era a Capa e Batina!

Cai por terra, pois, a justificação de ter existido uma universidade propriamente dita, com praxis enraizada e materializada num traje académico (o que ocorreria, isso sim era que os escolares desses estudos, a maioria eclesiásticos, vestiriam conforme a sua condição e posses, um pouco como sucedia nos primórdios do traje em Coimbra, séculos antes).

Reclamar a história do Colégio de S. Paulo, em Braga, como tendo tido privilégios de graus e traje, parece pouco fundamentado para legitimar a ideia de ter havido um traje académico bracarense, quando não podemos cair no erro de confundir Colégios com Universidades.
Mas, e se quisessemos atalhar, bastaria lembrar que em Braga, antes do Tricórnio, se usou, na própria UM, e antes dela, por exemplo, no liceu nacional (desde o séc. XIX), como ainda há pouco aludi, capa e batina. Por isso, se algum traje tinha sentido em Braga, certamente que era o Traje Nacional - esse sim por ter uso geral e reiterado pela larga maioria dos seus estudantes. O único traje estudantil com tradição secular em Braga sempre foi a capa e batina.
Não foi essa a opção posterior, mas não se queira apagar aquilo que é uma tradição bem mais antiga e histórica com pseudo-estudos nunca legitimados cientificamente, para justificar a validade do tricórnio, que só a tem em si mesmo, e a partir do momento em que foi generalizado nestas quase 3 décadas que leva.

Sobre o assunto clique AQUI

Tomei o exemplo da UM, mas poderia ter sido outro.


O facto é que a tradição do Tricórnio foi imposta (impostura, diga-se) com base em algo artificial, uma intrujice histórica, num pseudo-estudo etnológico feito por quem não apenas não tinha competência para o efeito, mas por quem não se coibiu de inventar tradição. Nem se percebe como tanta gente foi na cantiga, mas deve ter dado jeito aos bolsos de alguns, no início.
Hoje é essa a herança. Nada a obstar, conquanto saibam conviver com esse facto, reconhecendo o mesmo, ao invés de propalar "virtudes históricas" que são inexistentes.


Importa é dizer que a capa e batina tem sido o pano oficial da praxis e não vejo grandes vantagens em termo-nos desfeito do seu valor congregador e unificador, identificativo e histórico para quem, mais do que ser do sítio A, B ou C é estudante universitário.
Apostou-se mais em parecer do que em ser e, agora, verifica-se que o pano não ajudou, em nada, a promover uma praxis e espírito académicos dignos desse nome, pelo menos não verifico que houvesse melhorias depois de tantos gritos de “Ipiranga” que se fizeram ouvir um pouco por todo o lado.
Continuamos a ser uma manta de retalhos onde se torna, cada vez mais, difícil discernir e encontrar o que é genuíno, verdadeiramente tradição e identificativo, até, da nossa cidadania académica, da nossa nacionalidade estudantil.

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Trazendo isso à realidade tunante, o que assistimos é uma profusa moda de trajes avulso, pelo precedente criado pela sucessiva delapidação da identidade académica nacional, transformando a nossa comunidade estudantil numa mosaico mais rico que a regionalização preconizada, há uns anos pelo governo.
Aí, detenhamo-nos para observar duas ordens de razão para tantos trajes de tuna, que não a capa e batina: a primeira respeita àquelas tunas que, pela sua natureza, englobam alunos provindos de diversas instituições de ensino de uma mesma cidade ou área metropolitana. Neste caso, no intuito de evitar a colisão estética de panos díspares e regulamentação própria (nem sempre comum entre instituições) de cada traje, foi necessário adoptar-se um traje que esbatesse essas diferenças. “Obrigadas” a correr atrás do prejuízo, este tipo de tunas (que são poucas, diga-se), não tiveram outro remédio senão ter um traje próprio, criando um entendimento onde ele não existia.
A inspiração deste está normalmente ou numa cópia do traje espanhol, com uma ou outra peça que evoca mais particularmente uma figura da região, ou então um traje que faz o compromisso entre a capa e batina e o traje espanhol.
No segundo caso, as razões giram em torno de ideias, mais ou menos peregrinas, invenções puras e, em alguns casos, num total rejeitar do traje académico em vigor na sua academia (algo que constitui, já, outro tipo de desvio).
Se no primeiro caso se compreende essa necessidade forçada, já no segundo me parece forçado, quando o não é ridículo.


Temos tunas com fatiotas parecidas com as tunas espanholas, o que me parece, ainda assim, menos gravoso do que trajes e capas azuis ou cor de vinho, já que a cópia se faz directamente do nascente tunante (mesmo se o actual traje espanhol é produto recente, embora inspirado em panos anteriores).
Já o que também me parece não ajudar muito é o ridículo do “condomínionismo” que ocorre num já existente precedente bairrista.
Já não bastando determinada academia ter um traje académico diferente (e digo diferente em relação ao traje nacional: capa e batina), registam-se subdivisões muito interessantes e de uma criatividade ímpar. Se determinada academia tiver 5 tunas, pois todas trajarão de forma diferente, mudando ou a cor das meias, dos botões, da gravata, da lapela ou o que quer que seja (cor de curso, cor da cidade, cor disto e daquilo, tudo servindo de justificação). Não apenas se regista desvio do traje em vigor nessa academia, como se dão nuances de quantas maneiras for possível, consoante o nº de tunas que surgirem.
Por que diabo essa necessidade de aparentar?
Também não se percebe, por isso, que Tunas que representem especificament euma academia com um só traje, passem a poder envergar dele apenas partes, como o caso da UBI onde uma das suas tunas troca as calças do traje por uns calções às bolinhas brancas que também devem ter alguma explicação de natureza etnográfica.
Não se entende essa necessidade de aparentar, de mostrar que se pertence à Tuna  com isso pondo em causa a própria imagem e a imagem de todos em geral.
E já nem cito o Kilt do IADE porque aquilo nem é traje sequer, ao retakhar a capa e batina e coser-lhe peças escocesas que nada têm de académicas e muito menos a ver com a nossa cultura.

Criou-se uma tal multiplicidade de cores, ornamentos, detalhes e afins, que é preciso já um livro ou código iconográfico para se identificar uma larga fatia de tunas deste nosso rectângulo multicolor.
Já não bastando ter de decorar as cores dos cursos , ainda temos de o fazer com as tunas.
Perde-se, com isto, até, a própria noção de traje/uniforme, seu objectivo, e, a espaços, a sua credibilidade.
Aproveito esta longa reflexão para relembrar um aspecto que merece atenção: tenho lido e ouvido dizer à boca cheia que o a capa e batina foram assim criados para esbater as diferenças sociais. Até poderá ter esse efeito (que não a causa), mas nunca vi isso justificado em qualquer documento histórico. Sempre me deparei nas minhas pesquisas com capas e batinas para todas as carteiras, umas de pano mais nobre, outras menos, coletes de cores diversas (antes de ficar tudo a preto). Aliás já no tempo do traje talar vestia-se segundo as posses, a ordem eclesiástica, chegando a ser castanho,  pardo o traje de muitos estudantes...... .
O traje académico existe como modo de estandardização e padronização, mas por motivos identificativos, como imagem e identidade da condição universitária, não tanto para esbater fossos sociais, antes para diferenciar os estudantes de outras profissões ou mesteres.


No actual quadro de vazio e entendimento académico nacional, não vejo solução para a questão dos trajes académicos, o que obriga as tunas, também, a fazerem jogo de cintura e correrem, em muitos casos, atrás do prejuízo. Contudo, também estou ciente de que muitas inventaram a aparência Tuna sem qualquer outro suporte que não as sua veia estilística, algo que poderá merecer alguma atenção numa outra configuração desta comunidade, num futuro próximo.


Se não sabemos inventar decentemente, olhemos o exemplo do país vizinho e que ele nos inspire, pelo menos, o desejo de urdir um fato de tuna transversal e único em Portugal, E se este tiver de ser outro que não a capa e batina (mas que atenha como referência e inspiração, ao menos), que seja algo que identifique e dignifique inequivocamente a Tuna Portuguesa, contribuindo para a sua união, ao invés deste “carnaval tunante”.

Notas sobre a Tuna e a Praxe

Já, por diversas vezes, foi o assunto tocado em variados sites e portais, mas porque, volta e meia, o Notas&Melodias recebe mails a perguntar da relação entre Tunas e Praxe, julguei oportuno voltar a ocupar algumas linhas sobre o assunto.
Ainda assim, informo que o assunto foi já referido neste blogue.

Para evitar a redundância e repetição, dizer que a Tuna, ao contrário do que muitos por aí apregoam, não é uma manifestação da Praxe, da Praxis Universitária.
São realidades que se tocam, por vezes cruzam e colaboram estreitamente, mas distintas.
A Tuna é, isso sim, uma das muitas maneiras em que ela se manifesta (quiçá a mais apetecível); não por ser tuna, mas pelo facto dos seus elementos serem, ou terem sido, estudantes universitários ligados à praxe.

Em muitos casos, pelos mais diversos motivos e com mais, ou menos, consentimento de ambas as partes, Praxe e Tunos chegam a confundir-se, contudo a Tuna é distinta e bastaria tomar o exemplo das muitas que não estão directamente ligadas a uma instituição de ensino, seja no passado seja na actualidade.
Se olharmos para o país vizinho, a diferença, então, é notória. Com a abolição do porte do traje universitário, acabou por ser a tuna espanhola o único resquício da memória das tradições estudantis, algo que, por cá, não sucedeu, como sabem.

O que sucedeu, isso sim, foi que a praxe, os seus protagonistas, se apropriaram, nem sempre de maneira consciente mas, contudo, de forma bem intencionada (obviamente) dessa "arma" de promoção e divulgação poderosa  que era Tuna, para potenciar e exponenciar as tradições académicas.
Num primeiro momento, pois, foi a praxe o suporte para o lançamento de muitas tunas, pejadas de praxistas que viam na Tuna um meio privilegiado de vivência académica.
Com maior ou menor grau de subservência, a Tuna cooperou com a praxe e definiu (ou definiram-lhe) o seu posicionamento perante a lei académica (vulgo Código).
Com o passar do tempo, cresceu a folga nos laços e nós que ligavam ambas as realidades, tendendo as coisas a assumirem o seu lugar devido.

Mas existem, certamente que sim, aspectos que ligam estas duas realidades, sendo que o Traje Académico, quando o adoptado é o da faculdade que se representa, implica um lugar comum em que se partilham regras, também elas comuns.
O Traje Académico pertence à praxe; é o traje do estudante universitário, foi assim ainda bem antes de existirem tunas por cá. O Traje Académico não é, por isso, traje de tuna, mas sim o traje que os tunos usam por serem, ou terem sido, estudantes do ensino superior, e é esse um dos traços mais característicos e identifictivos das tunas de cariz académico/universitário: o seu património académico que partilham em tuna.

Nesta relação, a tuna encontra-se a juzante.
O respeito e normativos que são devidos ao traje provêm da praxis académica que a tuna adopta.
Acaba aqui, quase sempre, a relação entre estas duas realidades, no que respeita ao cumprimento de regras comuns.
Quando o traje adoptado é traje apenas de tuna, a relação com a praxe, neste caso, vive mais numa prática romântica do que em efeitos práticos (que nem existem) de observação de um qualquer código de praxe.

O estudante universitário, em termos legais (de cumprimento de leis académicas) tem um primeiro dever para com a praxe e só depois, para com a tuna (seja ela qual for); assim se estabelece a hierarquia.
Apesar da tuna, por norma, não se subordinar às instâncias da praxe, não deixa de estar "obrigada" a reconhecer-lhes jurisdição, para com os tunos que ainda são praxistas.
Algo natural, já que são primeiramente académicos antes de serem tunos (aliás, não fosse essa condição, não seriam tunos) em condições que, obviamente, devem estar bem desenhadas e acordadas.

Em assuntos exclusivamente de praxe, a tuna não pode gozar de imunidade diplomática/tunante, pelo que os lugares comuns devem estar muito claros, tal como as fronteiras, de modo a evitar colisões indesejadas.
Na face oposta a esta moeda, devem os organismos que regem a praxe, perceber a natureza singular da tuna, deixando-lhe o seu espaço próprio.

Se a Tuna e a Praxe são, por natureza, coisas distintas, tal não impede que cada um, de acordo com o contexto em causa, estabeleça as relações que achar pertinentes, sejam elas de mera cooperação, de subservência, coloque-se a tuna sob alçada da praxe ou autónoma desta...........importa é que a tuna seja, antes de mais, Tuna e saiba respeitar todo o património histórico que lhe diz respeito.

Notas aos Emblemas nas Capas

Não é de hoje que a questão dos emblemas (que também se chamam "escudos"), que os estudantes colocam nas suas capas, tem sucitado vários debates, muitas dúvidas e muitas mais patetices.
Basta passar os olhos nos muitos fóruns sobre Praxe e Tradição Académica, para se verificar aquilo que é, hoje, uma enorme profusão de confusões, invenções e mitos, todos eles geradores de interpretações ad hoc e de uma "terra de ninguém" onde reina uma certa anarquia e a
crescente moda do "na minha capa meto o que bem me apetece", sob a desculpa esfarrapada do "a capa é minha" ou daqueles ridículos argumentos que alguns usam de que colocaram este ou aquele emblema porque tem um determinado significado (mesmo que nada tenham a ver com a praxis), como é o caso daqueles emblemas abonecados do "Tio", da "Avó" (onde se esquece/desconhece, que a capa não é montra de homenagens - e que a capa só tem essa função  - homenagem/agraciamento -  quando deitada no chão, e em condições bem definidas) ou aqueles simpáticos escudos que dizem, por exemplo "Sou de Engenharia", para só citar alguns.

Isto, caros leitores, para não falar, depois, nos denominados "emblemas obrigatórios", outra patetice, pois uma coisa é indicar os que são permitidos, outra é obrigar a colocar este ou aquele, quando se pretende meter emblema na capa. Coitado do pobre que só pretende ter 3 ou 4 emblemas na capa e se vê, de repente, na obrigação de meter mais 4, 5 ou 6 que os que desejava, só porque o código manda (e quem esfrega, naturalmente, as mãos de contente são as lojas que comercializam os emblemas).

SITUAÇÃO/PROBLEMA

Reveste-se, assim, tantas vezes de verdadeiro autismo, arrogante teimosia, e outras tantas de argumentação patéticos, o pensar-se que sendo a capa de cada um isso lhe confere o direito de fazer o que bem lhe dá na real gana ou a presunção que por estar em código significa estar correcto.
Mostra esse exercício não apenas ignorância, mas uma jactância  repleta de incoerência.
 
Para umas coisas segue-se a Praxe e o código à risca, para outras segue-se o umbigo, a própria vontade, a interpretação pessoal.....as conveniências.
Resume essa atitude que muitos estudantes não são, de facto, praxistas, querendo 2 pesos e 2 medidas: o genérico e o pessoal, defendendo a praxe com unhas e dentes, excepto quando isso melindra o seu espaço e comodismo, quando impede o pedestal da montra, da vaidade, do querer diferença e regime de excepção.
Outras vezes, defende-se a letra da lei que resulta não de uma base assente em tradição, mas do desvirtuar das coisas, normalmente por desconhecimento.

OS CÓDIGOS
Muitos dos actuais códigos legislam sobre a colocação dos emblemas, mas demonstram que os
seus autores desconheciam (ou fizeram vista grossa)  a real origem desse costume, abrindo portas à invenção e à profusão de um verdadeiro desfile de carnaval. Uma vez mais, o desconhecimento levou à interpretação sem critério e, consequentemente, à ficção, ao mito........ao erro.
Um dos grandes erros, pois, dos códigos, foi quererem legislar ao centímetro, burocratizando, complicando, tornando miudinho o que sempre se quis, e foi, simples e pragmático, que sempre foi prático e directo.
 
A Praxe em Portugal, esta mais recente, invencionada e baralhada nestes últimos anos, tornou-se mais papista que o Papa e pormenorizou exaustivamente sobre coisas e matérias sem real interesse, que não eram, nem são, essência - traduzindo-se tal em quantidades de artigos e mais artigos que tem tanto de inútil e pesado, quanto, muitas vezes, de ridículo (e de errado), em detrimento de questões bem mais importantes. Por outro lado, legislam sem explicar coisa nenhuma, o que é outra coisa que não se entende.

Veja-se, por exemplo, que, em certos casos, os códigos obrigam à colocação de certos emblemas, depois misturando os que são próprios da vida académica com disparates como o emblema da terra da mãe e o emblema da terra do pai.
Justificação para tal? Nenhuma que não seja a invenção de quem decidiu que era assim, porque sim, porque lhe pareceu. Explicação preto no branco do porquê e origem dos emblemas e adequação das práticas e regras à Tradição?  Nenhuma, claro está.

Obviamente que quando se desconhece, mais facilmente se inventa e, na cópia da cópia, no "acrescentar pontos ao conto", se vai delapidando, desvirtuando o paradigma e o que é genuino na Tradição.

COMPRA/OFERTA
 
Outro mito, resultante desse desconhecimento é, em diversos casos, a ideia propalada de que os emblemas não se compram, mas são recebidos por oferta, ou seja que os estudantes só podem colocar na capa os que lhes forem oferecidos (comprados por outrém), coisa que, além de errada, se reveste de algum ridículo.
Com efeito, não há, segundo a Tradição, qualquer determinação que limite a forma como os emblemas se adquirem, tanto podendo ser comprados ou ofertados.
Muito menos a questão de terem de se colocar em nº ímpar (regra que aplicada a botões e afins, se quis estender a tudo, sem muitos sequer perceberem que simbologia/superstição encerra).
Que o valor do nº ímpar tenha a sua razão (que aqui não importa discutir, mas sobre o qual pode o leitor AQUI procurar o artigo respectivo), pois assim seja, mas que se queira meter a questão dos emblemas, parece-me artificialismo, quando nunca isso foi determinação do uso, do costume, da praxis original.


A ORIGEM, A PRAXIS
 
O uso de emblema na capa  remonta, grosso modo, aos anos 30/40, mas restringia-se quase só ao monograma da Briosa (datado de 1929) que os jogadores usavam no equipamento. Sendo eles quase todos alunos da UC, passaram a cosê-lo também nas suas capas.
Rapidamente os adeptos e simpatizantes fizeram igual.
Na década de 1940 ,os orfeonistas também o começam a coser na capa o emblema do Orfeão, por dentro da capa. Nos anos 50 aparecem o Coro Misto e o Coral das Letras, que replicam as práticas anotadas para os anos 30 e 40.

Será essencialmente com a influência das Tunas espanholas (por contágio da “moda mochilera” e dos inter-rails, nos anos 60-70 e seguintes) que, a partir dos anos 80 do séc. XX (boom das tunas e das tradições académicas em Portugal), se generaliza o uso de emblemas nas capas.

Com efeito, era costume os jovens viajantes colocaram nas malas ou mesmo nas caixas de instrumentos (e até nos próprios), autocolantes com os emblemas das cidades/instituições visitadas (e/ou países).
É esta a origem dos emblemas no contexto da recuperação das tradições académicas, operado a partir dos anos 80 do séc. XX; um costume rapidamente aculturado pelos estudantes portugueses, com especial incidência nos tunos.
 
Os tunos compravam nas lojas de "souvenirs" os emblemas locais (cidade, país) e, muitas vezes, também, os recebiam das tunas congéneres ou instituições visitadas os respectivos escudos/emblemas (ou também os compravam na loja associativa, na reprografia ou secretaria caso existisse).
Uma vez mais, se verificou, e verifica, a contínua troca de usos e costumes que, entre Tunas e Praxe se foi operando, sendo, neste caso, a Praxe a (re)inspirar-se na tradição das Tunas (neste caso das do país vizinho).


Sobre esta questão dos emblemas, recupero, ainda, o avançado pelo historiador António M. Nunes, o maior especialista em questõesde trajes e etiqueta académica que temos em Portugal, e que colabora muitas vezes com o N&M:

"A UC tem heráldica e cores institucionais consagradas nos vários estatutos. A par da heráldica oficial (faculdades, cursos, cadeiras), os estudantes de Coimbra inventaram no século XX inúmeros selos e emblemas para a sua associação de estudantes, grupos corais, tunas, etc. Estes últimos são em geral bicolores (apenas admitem preto e branco) e podem estampar-se em crachás e pines. O motivo mais comum em todos eles é a Torre da Universidade. O mais antigo é o da Académica, Equipa de Futebol, desenhado por 1929 (se não me falha a memória), que das camisolas dos atletas passou poucos anos depois para a bandeira e papel timbrado da AAC.

 O emblema da Académica/Equipa de Futebol começou a ser usado primeiramente nas camisolas. Como a maior parte dos futebolistas da Académica estudavam na UC, estes começaram a usar o emblema futebolístico no canto interior direito e ao fundo da capa. Na segunda metade da década de 1930 criaram-se em Coimbra várias claques de apoio à Académica e estes grupos de adeptos também começaram a coser na capa, por dentro, o emblema da Académica, sempre em tecido estampado preto e branco.

 Na década de 1940 afirma-se o emblema do Orfeon e os orfeonistas também o começam a coser na capa, por dentro. Nos anos 50 aparecem o Coro Misto e o Coral das Letras, que replicam as práticas anotadas para os anos 30 e 40.

 Após 1974, com a fundação da Estudantina aí por 1984 tudo muda. Os emblemas passam a ser multicolores e abrangem um universo ilimitado de representações: escudo de Portugal, clube de futebol, município, curso, cidade visitada em digressão...

 Cheguei a Coimbra em 1985 e por essa altura havia uma "guerra" de palavras entre os praxistas que condenavam o uso abusivo de emblemas e os que defendiam a liberdade de uso de emblemas. A matéria chegou a ser regulada pelo Conselho de Veteranos, mas a corrida aos emblemas continuou.

 A par dos emblemas que acabo de referir há ainda os distintivos oficiais que decorrem dos estatutos e da cultura greco-latina. A Reitoria tem selo próprio e cor oficial (verde). Cada Faculdade tem cor própria e distintivo. O distintivo de uma Faculdade é sempre um deus ou uma deusa greco-romano, com determinados atributos. Dentro de cada Faculdade, cursos há que têm representação autónoma como Música, Geometria ou Astronomia.
A partir das insígnias da alegoria masculina ou feminina a tradição autoriza criar distintivos que a UC representou em pinturas de tectos, paredes, e os alunos podem usar em crachás, pines, alfinetes e emblemas. Por exemplo, num crachá alusivo à Faculdade de Direito, não se figura a deusa Justitia, mas apenas a espada e a balança no interior de uma moldura oval ou circular de folhas de louro. Esta matéria não tem sido alvo de estudos e a própria UC não tem publicado um manual ou regulamento de haráldica, símbolos e alegorias.
Os códigos de praxe também não regulam a matéria. Na prática o que acontece é que os cursos inventam pseudo distintivos kitsch que não obedecem às normas heraldísticas. Há muitos exemplos. Posso citar emblemas com uma língua humana a sair de um medalhão circular, que supostamente quereria significar um curso de línguas e literatura. Ou uma serpente enrolada numa palmeira, que supostamente representaria Farmácia, quando na verdade representa uma farmácia de venda de remédios. Ou o escudo/euro que supostamente representaria Economia.

Em suma, 50% dos distintivos de curso, mesmo os que existem na UC, são puras invenções kitsch sem fundamento heraldístico nem suporte na cultura greco-romana."


NA CAPA

A Tradição manda, pois, que o estudante, que assim o deseje, e sem haver nº mínimo ou obrigatório, nem ordem de colocação, coloque na sua capa (seja à sua conta ou também por oferta):
 
- os emblemas/escudos da cidade/país de origem;
- cidade/país onde se cursa (União Europeia, também);
- instituição e/ou faculdade frequentada;
- curso em que se está/esteve (pois há quem mude de curso);
- instituições a que se pertença, no estrito âmbito académico (nada de colocar o da associação cultural lá da terra só porque se foi, ou é, vogal da direcção ou mero sócio);
- emblemas das cidades/países e instituições/grupos visitados/contactados em representação oficial académica (visita da de estudo, Erasmus, digressões da Tuna ou de outro grupo ou associação de índole académica).


Relembramos, uma vez mais, que não existe nenhuma obrigatoriedade em pôr todos estes emblemas, seguir uma determinada ordem (por norma, é cronológica apenas) ou pôr um nº X mínimo. O que dita a Tradição é que seja este o âmbito da colocação, seja este o princípio basilar. Quem só quiser colocar 1 emblema põe apenas um; quem quiser colocar 3, põe 3 e quem quiser colocar 50 (acontece muito com os tunos) mete 50. Deve é a colocação obedecer ao princípio acima enumerado, dentro do estrito âmbito académico e tradicional.

Também, se verifica, em muitos casos, o uso do emblema do clube do coração, embora seja, concedamos, um despropósito (pois nada tem a ver com a vida académica - tal como o não são as questões de preferência religiosa ou política).
Contudo, há que diferenciar, por exemplo, a ligação existente, formal, entre academia e desporto (extra-académico), quando, por exemplo, o clube local está fortemente ligado aos estudantes, como é o caso da Briosa em Coimbra (que é organismo pertencente à AAC).
Exceptuaremos, a título de exemplo, o caso dos alunos que joguem numa equipa desportiva da Associação Académica e que, naturalmente, podem colocar esse emblema, caso exista.

Todos os demais emblemas, que não representem formalmente a actividade académica do estudante (no associativismo/organismos académicos oficiais ou em âmbito pedagógico - as referidas visitas de estudo ou intercâmbios científicos/culturais) são circo, carnaval, invenção. Assim, emblemas da terra dos pais e outros tantos não têm âmbito ou precedente académico que justifique constarem numa capa estudantil (ou outra peça do traje, chame-se ela como chamar).
O mesmo dizer dos emblemas que dizem "Praxe" ou com bonecos alusivos à praxe, ou os que identificam o "Finalista" (a identificação do finalista faz-se através das insígnias pessoais e não com um rótulo na capa), salvo o monograma do organismo de Praxe a que se pertence ou está ligado.

Em suma,

Sejam eles 3 ou 30, comprados ou oferecidos, importa é que eles traduzam o real exercício da cidadania académica e não carnavalescas desculpas para enfeitar a capa (que ela não é árvore de Natal ou a parede lá do quarto de um qualquer imberbe teenager).

Quem quiser respeitar a Tradição, observará a mesma. Quem preferir outros caminhos, mesmo que consignados em código, fá-lo-á, ciente de que está a seguir invenções.
Não é por um erro estar consagrado num código, disfarçado, assim, de lei, que tal o legitima ou o torna numa virtude (e muito menos numa tradição).
E é pena que os legisladores, os praxis-makers, nunca se tenham dado ao trabalho de pesquisar a origem dos emblemas, para adequarem devidamente as regras de uso.

Mas lá está: quando nem os líderes sabem de Praxe e Tradição, o exemplo a seguir pelos demais é quase sempre o que sabemos.

Notas ConCSiliares

O título é estranho, até da forma como é escrito, mas como fui recentemente contactado sobre isso, via mail, achei por bem aqui deixar umas notas.

Todos estamos, certamente, faliarizados com a terminologia que designa os organismos de Praxe: Conselho de Veteranos, Magno Conselho da Praxe........
Mas a dúvida que me foi colocada prende-se com o uso dessa nomenclatura em latim.

Afinal é Consilium (com S) ou Concilium (com C)?
Se atentarmos aos termos Conselho (grupo, reunião, recomendação) e  Concelho (referente a uma área geográfica adminsitrativa), logo se desfazem as dúvidas - ou deveriam desfazer: a usar-se é Conselho - Consilium (quer linguisticamente, quer no uso do latim macarrónico).

Mas, como bem me interpelaram, existem inúmeras citações em latim que ora usam uma ou outra grafia, instalando-se a dúvida, nomeadamente porque a larga maioria dos praxistas não sabe patavina de latim.

Para evitar grandes considerandos, fica esta sucinta explicação:

Consílio e concílio são palavras diferentes. A grafia, a origem e o significado o mostram.

Consílio provém do latim consiliu(m) que significa:
a) consulta, exame, deliberação, decreto;
b) determinação, resolução, expediente, projecto, desígnio, plano;
c) conselho: parecer, opinião, sentimento, voto;
d) conselho: assembleia consultiva ou deliberativa.

Em português significa conselho, reunião, assembleia.


Concílio provém do latim conciliu(m), que significa:
a) ajuntamento, ligação, união;
b) assembleia, reunião, sociedade, círculo (de pessoas), conselho (em sentido concreto), reunião de conselheiros, assembleia deliberativa;
c) concílio, assembleia de bispos.

Em português significa conjunto das pessoas da hierarquia eclesiástica, que têm voto em matéria de dogma, moral evangélica e disciplina, presidida pelo bispo, arcebispo, patriarca, papa ou seus legados.
Significa também as actas, cânones, decisões do consílio.
A grande diferença entre as duas palavras é a seguinte: concílio pertence à linguagem da Igreja Católica; consílio pertence à linguagem fora das actividades da Igreja Católica.
Como vemos, a significação de concílio provém da significação C) do latim consilium
Como a Praxe não é da esfera eclesiástica (e tao pouco faz sentido qualquer romântica ou histórica ligação ao tempo em que a Igreja detinha o poder sobre as Universidades), tanto que quando se organiza, de facto (com conselhos de veteranos, comissões, etc.), há já muito tempo que a separação entre Igreja e Estado se fez (o 1º Conselho de Veteranos é formalmente criado pelo código de 1957 - e de cujo Decretus consta o termo Consilium bem escrito - não se percebe por que razão, actualmente, o CV de Coimbra o escreve mal).
Embora perdurem termos e resquícios dos tempos eclesiais, convém separar as coisas.
Neste caso, o termo a ser utilizado em Praxe é Consilium, com S: Magnum Consilium Praxis ou Magnum Consilium Veteranorum (entre outras designações), seja no rigor linguístico, seja no uso do Latim Macarrónico ("aportuguesando" o termo Conselho).
Fica esta pequena nota.

Notas ao Foro Académico




Muito se ouve falar em “Foro Académico”, mas muitas vezes não se percebe muito bem o que tal é, nem o que implicava.
Já disso aqui se falou a propósito do Traje Académico que, como aqui explicado, foi “criado” para distinguir, precisamente, o “foro académico”, ou seja, aqui, com o sentido de classe laboral/social diferenciada de outras profissões e mesteres.


Mas o “Foro Académico” era bem mais do que isso.

De facto, os sucessivos regimentos, criados por determinação régia, tinham por finalidade, entre outras, dotar a Universidade (Estudos Gerais) de uma “lei orgânica” própria que facilitasse aos seus dirigentes a coordenar e supervisionar o funcionamento institucional em todas as suas facetas e aspectos.
Para tal, foram ao longo dos anos, atribuídas diversas regalias e benefícios que visavam defender e promover os Estudos Gerais. Nas palavras de Joaquim de Carvalho,


“Dentre estes privilégios um se destaca: o foro académico, cível e criminal. O que até então havia sido costume tacitamente aceite e porventura impreciso, tornou-se lei categórica pela carta régia de 4 de Maio de 1408, na qual D. João I, fixando o poder jurisdicional do conservador da Universidade, ordenava «a todallas Justiças, quaeesquer q sejam destes Regnos, que daqui emdiante nom conheçades de feito nenhilu crime nem çiuell de nenliú scollar q seja do corpo da dita universidade, mais que como forê achados em alg-üu malleficio, ou delles for dada querela ou denunciaçom, e forem presos per noso mandado em nossas prissões, ou vos forem demandados per o dito conservador, que logo os entreguedes ou mãdedes entregar ao dito sseu conservador, q hora he, ou pellos tempos adiante forem, que ouçã e desembargê, assi os ditos ffectos crimes como çivees, de quaees quer scollares, e os livre como achar q he dereito, dando nos fectos crimes appellaçam pera nos, e nos fectos çivees agravo; e se por vemtura algútis scollares teemdes presos, mandamos vos q emtreguedes ou mandedes emtregar logo pera o dicto conservador veer sseus ffectos, e os livrar com sseu dereyto, como dito he [...]» (apud Dr. António de Vasconcelos, Origem e evolução do foro académico privativo da antiga Universidade portuguesa).
Como no passado, os privilégios e foros universitários, essenciais para a vida e progresso da Universidade, encontravam a resistência das justiças reais, quando não do próprio conservador da Universidade. Os escolares, sobretudo, foram os mais queixosos, ora contra os almotacés, ora contra os conservadores, ora contra as limitações das suas regalias tradicionais, ora contra o pagamento das coletas aos lentes e ao bedel.”
[1]


Claro está que o facto de, a coberto de certas regalias e isenções, e nomeadamente pelo facto da justiça académica ser mais branda que a civil, excepção feita aos denominados “crimes de sangue”, cujo exemplo mais conhecido é o da personagem Simão Botelho, no clássico “Amor de Perdição” de Camilo Castelo Branco ou em casos excepcionais que obrigavam a derogar o privilégio do foro privativo, como este, ocorrido em idos de 1721:


"(…)sendo-me presente que na ocasião dos touros que houve no mosteiro de Santa Clara, extra-muros da cidade de Coimbra, se mascararam alguns estudantes, que juntos foram em um dia insultar o juiz de fora e em outro o corregedor da comarca, que vendo o excesso dos ditos mascarados e intentando prendê-los, estes lhe resistiram com armas de fogo, e lhe feriram um alcaide, e que, não obstante a resistência, o dito corregedor prendera nove dos mascarados; fui servido resolver que o corregedor tirasse logo uma exacta devassa e que, sem embargo dos mascarados serem estudantes, não remetesse os presos nem as culpas ao conservador seu privativo, derogando por esta vez os privilégios dos ditos estudantes, como protector que sou da mesma Universidade (…)” [2].


Resumindo, e parafraseando Paulo Drumond Braga [3]"(...) salvo em raríssimas excepções, os professores, estudantes e funcionários eram julgados pela própria academia, ficando isentos das demais justiças existentes no reino. Nesse ponto, a universidade era comparável à Igreja.".


Assim,

"A Universidade gozava de grandes privilégios, que lhe foram dados por D. Diniz e confirmados pelos reis seus sucessores. Um deles era a isenção do foro comum, concedida a professores, estudantes e todas as pessoas da Universidade. A princípio estiveram sujeitos ao foro eclesiástico; mais tarde, a um foro privativo (foro académico )exercido por juízes ou conservadores próprios, tanto para as causas crimes, como para as cíveis. Este foro especial só acabou com a implantação do regime liberal.” [4]

Ora, um dos aspectos que mais revoltava a população era o facto de os estudantes, muitas vezes a coberto das suas capas (embuçados), cometerem diversos crimes, desde o roubo a diversos ajustes de conta por honra.
Eram comuns os espancamentos e a zaragatas que passavam impunes, pois que as populações nada podiam fazer.A violêncisa era, aliás, uma das características mais identitárias das relações inter e extra estudantis:

"A sociedade da época apresentava um elevado teor de violência e a vida estudantil não era excepção. Não admira, pois, que surjam na amostragem em estudo numerosas agressões físicas.
Os estudantes feriam mulheres, mas sobretudo homens, maioritariamente outros estudantes, fosse
por que motivo fosse, até mesmo por acidente, recorrendo a diversos tipos de armas, desde simples paus e pedras a facas e punhais. Faziam-no de dia e de noite, sozinhos ou em bandos, deixando ou não sequelas físicas na vítima. Para além dos colegas, os estudantes agrediam outro tipo de pessoas, até mesmo mulheres. Agiam sozinhos ou em grupo. Faziam as clássicas emboscadas: "o forão esperar na Rua dos sapateiros da dita cydade e com armas ofensiuas e defensiuas como erão punhaes facas e paus lhe derão hua ferida na cabeça e outras pancadas pelo corpo".
Assim aconteceu com um estudante, vítima de um grupo de que fazia parte Jorge Pinto, perdoado em 1621. Feriam de dia e de noite. O leque de motivos para as agressões era vasto, desde o alegadamente acidental até à troca de palavras."
[5]


Proibidos que estavam os estudantes do uso e porte de armas, mesmo as “armas brancas” – especialmente mencionadas nas disposições régias de D. João III (1538), onde se determinava [6], que os estudantes “não tragam punhal nem adaga” e nos Estatutos de D. Manuel, de 1591 [7],


“Nenhum estudante trará armas ofensivas e defensivas, de qualquer sorte que sejam, ainda que seja faca ou canivete, de dia nem de noite, nas escolas, nem fora delas, pela cidade e seus arrabaldes, e quem o contrário fizer, pela primeira vez perderá as armas para o meirinho ou guarda das escolas, qual primeiro o acusar, e pela segunda vez, alem de as perder, estará preso oito dias”.

 Muitos eram os que para gozar do foro académico se inscreviam como estudantes (durante muitos anos a frequência foi livre e, até muito tarde, não havia sequer exames). Segundo Soror Águeda María Rodríguez Cruz,


“Houve épocas, sobretudo nos primeiros séculos, em que se matriculavam também pessoas alheias ao estudo, com vista apenas a gozarem do foro académico, como os boticários, arrieiros, artesãos, donos de pousadas e provedores de estudantes, etc., até a Coroa acabar com este abuso” [8]

Muitos estudantes só o eram mesmo de nome, pois que se dedicavam, especialmente, a actividades criminosas ou ilícitas, à sombra da protecção do seu estatuto estudantil. Diz-nos Teixeira Bastos [9], acerca desses bandos:

“A que maior celebridade adquiriu foi o Rancho da Carqueja que cometeu as maiores tropelias em 1720 e 1721, sendo reitor o Dr. Sanches de Baena.
Um dos seus fins era raptar donzelas, levando a audácia a ponto de pretenderem raptar uma sobrinha do próprio reitor.
Uma das suas proezas foi fazer despir um novato e açoitá-lo com disciplinas, depois de palmatoadas e corte rente do cabelo.
Foi preciso vir a Coimbra força armada para o conter.
Chegada a força (regimento de Fevereiro de 1721), foram presos trinta e tantos estudantes e conduzidos algemados para Lis- boa. D. João V mandou-os degredados para a índia, e o seu chefe, o estudante canonista, Francisco Jorge Aires, da Vila da Feira, acusado dum assassinato, foi degolado
[no pelourinho, a 20 de Junho de 1722], sendo a sua cabeça remetida para Coimbra, e aqui exposta na Praça de S. Bartolomeu (desde 1 de Julho de 1722).
Apesar deste rigor, aparece outro rancho
[Chamado Rancho dos Doijfe], poucos anos depois, em 1737, composto de doze estudantes, que armados percorriam as ruas de noite, fazendo esperas a outros estudantes e cometendo as maiores tropelias.
Em 1803 existiu em Coimbra um Novo Rancho de cinquenta a sessenta estudantes libertinos: tinham uma casa, onde à noite se juntavam a comer e beber, a dançar com meretrizes, e donde saíam armados a infestar a cidade.
Foram presos os principais (uns dezoito), e o rancho desfez-se.”



Era, muitas vezes, armados de navalhas e pequenas facas, mas também do varapau (arma de eleição) e, por vezes, moca que se cometiam as piores atrocidades, especialmente contra caloiros [10], conhecidas por "Investidas" e, mais tarde, por "Troças" ou "Assuadas", muitas vezes encapuzados ou com máscaras, mas também contra os próprios professores (em artigo anterior demos conta de um desses casos, embora mais recente e, pelos vistos, menos grave).




A abolição do Foro Académico e 
criação da Polícia Académica
 



O juízo privativo da UC é extinto por força do art.º 145º, alínea16, da Carta Constitucional de 1826, sendo tal abolição reforçada pelo art.º 38º do decreto de 16 de Maio de 1832 e pela portaria de 23 de Maio de 1834 (ano em que, em Espanha, também o foro é abolido e o traje estudantil proíbido).
Só as forças armadas continuaram a possuir juízo privativo, castigos físicos, código de justiça e corpo  de magistrados próprio.
Com a extinção do Foro Académico (também designado pro Juízo da Conservatória da UC), os delitos extra-disciplinares passam a correr nos tribunais civis (Juízo Criminal da Comarca de Coimbra).
Mas porque se verificou a necessidade, urgente, de dotar a UC de meios e poderes mais amplos, e autónomos,de acção disciplinar, foi publicado no Diário do Governo de 25 de Novembro de 1839, o "Regulamento da Polícia Académico", chancelado pelas assinaturas de D. Maria II e Júlio Gomes da Silva Sanches.
Nascia, assim, a Polícia Académica.
 
Conhecido por "Decreto Sanches", tratava-se, afinal, do verdadeiro Regulamento Disciplinar da UC.
Foi a este regulamento que se continuou a chamar de "Foro Académico", um erro que duraria por mais 71 anos.
Este regulamento possuía poderes mais amplos que os comuns regulamentos disciplinares em vigor nos liceus, seminários ou colégios particulares, servindo de instrumento de enquadramento disciplinar e social.
Este regulamento dotava a UC, das seguintes prerrogativas (que a Polícia Académica se encarregava de executar):
 
  • Vigilância e manutenção da ordem em todos os espaços do Paço das Escolas Gerais e suas dependências;
  • Inspecção dos uniformes docentes e discentes e dos oficiais administrativos;
  • Policiamento nocturno das ruas, casas d ejogo clandestino, prostíbulos e tascas;
  • Instauração de processos disciplinares por desrespeito, agressão, roubo e homicídio;
  • Aplicação de penas através de acórdãos ratificados pelo Conselho de Decanos.
 As penas que os estudantes mais detestavam (odiavam, mesmo) era a o encarrecramento na prisão académica ou a expulsão, temporária ou definitiva, da UC.
 
E muito trabalho tinha a polícia académica, numa sociedade cultural  socialmente violenta.

Com efeito, e a título de exemplo, um dos grupos organizados mais violento era proveniente da Republica do Carmo, composta de estudantes que residiam na Sofia, no antigo colégio do Carmo, e deles se dizia que

 “Até de dia andavam armados de punhais, e cometera'm vários crimes. No começo do ano lectivo de 1838- 1839 foi assassinado o Dr. Serafim, professor do Colégio das Artes; em 20 e 21 de Maio daquele ano houve facadas, tiros, arrombamentos, completa anarquia em toda a cidade. Um lente de Medicina, o Dr. Cesário Pereira, foi gravemente ferido com dois tiros, na noite de 3o de Junho de 1839; dois lentes de Filosofia, os drs. Pinto de Almeida e Pereira de Sena, foram insultados e ameaçados.
Em 1841, na noite de 26 de Dezembro, foi morto pela força pública, agredida, um dos da quadrilha.
Esta desfez-se pouco depois, em Janeiro do ano seguinte.”
[11]




Não é alheia a toda esta febril violência a influência dos conflitos entre liberais e absolutistas dentro de uma academia fortemente politizada, mas desengane-se que pense que Portugal era brando de costumes, como disso se faz propaganda. Muito pelo contrário. No caso do universo estudantil coimbrão, temos verdadeiros grupos de bandoleiros e uma cultura de opressão e humilhação que eram, na verdade, actos criminosos puros e duros.
A casa reitoral considerava os ritos iniciático-punitivos de caloiros como sendo condutas que transgrediam dolosamente o regulamento disciplinar, agindo contra os alunso prevaricadores com maior ou menor severidade, conforme os meios de que também dispunham, e que não eram muitos.
Com efeito, os levantamentos estudantis provam a incpacidade da Polícia Académica perante situações de maior proporção. Lembramos, por exemplo o levantamento estudantil de maio-junho de 1846 , com os estudantes a formarem um batalhão (Maria da Fonte) e a deambularem entre Coimbra e Lisboa (e novamente para Coimbra) espalhando o pânico entre a população; ou ainda aquele que teve lugar entre Outubro de 1846 e Junho de 1847, com os estudantes em surtidas violentas entre Coimbra, Porto e Setúbal (Patuleia), ou ainda a de 1853, a que só como recurso ao exército se conseguiu por fim a tal sublevação.
Já aqui relatámos o caso de um caloiro que foi batido até à morte porque se virou contra os veteranos que o queriam rapar.

Outras vezes, eram os veteranos a terem menos sorte, como relata o periódico o Conimbricense, de 1877, falando de um episódio violento ocorrido anos antes:

“(…) no dia 3 de Maio de 1873, pelas 8 da noite, junto do Castelo, foi cortado o cabelo, à força, a um estudante. Este, logo que se viu livre dos agressores, atirou contra o grupo uma pedra, que feriu mortalmente um deles.” [12]





Sabemos que, conforme os "ventos reitorais" (o feitio do reitor) ou os caprichos da instabilidade da conjuntura política, archeiros e guarda-mor eram mais ou menso tolerantes e permissivos. Se, como diz António Nunes (2013, p.74-76), cujo trabalho nos serve de guia neste capítulo, havia advertências mais irritantes (como a proibição do uso de bigode, ou de fumar no recinto universitário - quanto à proibição de fumar, muito contestada e tida como autoritária e reaccionária, ela resulta do pãnico em que vivia a reitoria por não possuir corpo de Bombeiros que pudesse acudir a um incêncio que resultaria, na certa, dadas as condições dos edifícios,  na perda irreparável do património arquitectónico e do acervo da UC) resultantes de preconceitos morais ou da moda em voga, já outras advertências e penalizações eram propensas a que os estudantes sentissem, por vezes, um certo desafogo, multiplicando-se, depois, as caçoadas e demais partidas.
 
Em 1843, procurando normalizar a situação de profunda instabilidade que reinava na UC, é dada ao reitor da UC, através da Portaria de 27 de Setembro, o poder de reprimir os abusos observados, nomeadamente em grupos mais ou menos identificados, que afrontavam a autoridade usando bigodes, lobas curtas, que ostensivamente fumavam nos edifícios históricos, e que criavam desacatos na Via Latina e nos Gerais.
Naturalmente que todas as acções disciplinares incendiavam os ânimos e cavavam um cad avez maior distanciamento entre a UC e os próprios estudantes (cujo traje usado na época acabaria por ser um dos "bodes expiatórios" e levaria a uma mudança no figurino vestimentário -aliás é em 1843 que pela última vez o termo "loba" aparece na documentação académica como vocábulo corrente).

Os sucessivos abusos, quase sempre na esfera do crime, o crescente descontentamento das pessoas e os ventos do liberalismo, começaram a fervilhar no caldo do anti -lericalismo (onde os “velhos costumes”, a começar pelo traje talar, eram tidos como sinais de uma Igreja decadente e de uma ordem instituída que já não funcionava).


Novas mentalidades exigiam que Portugal acompanhasse a modernidade, olhando, por isso, de soslaio, para as velhas lobas, os enraizados privilégios, as isenções em favor do foro como sendo impeditivas do progresso e de uma sociedade mais justa.


Natural, pois, que se começasse a assistir, a partir da década de 1880 (a 1ª proposta de lei é de 1883), a movimentações contra a manutenção do designado " foro estudantil" e se levantassem as primeiras vozes reacionárias, utilizando, precisamente, a imprensa para dar eco a tais pretensões.
 


Aqui ficam alguns artigos bastante elucidativos (clique nas imagens, para ver com mais definição).

 






 O Commercio de Vizeu, 05 Fevereiro 1888, III Anno, Nº 166



O Commercio de Vizeu, 01 Março 1888, III Anno, Nº 17



O Comércio do Porto, 26 Março 1888 p. 1



Claro está que, como acima referimos, o Foro Académico há muito fora, de facto abolido, contudo mantinha-se a disciplina (Regulamento da Polícia Académica) com um aperto nem sempre severo, conforme a magnanimidade das autoridades académicas, por norma mais propensas na defesa "dos seus".
Fartos de sentirem na pele a injustiça que era a futura elite social comportar-se como bárbaros e ainda por cima gozarem de uma inadequada condescendência (na óptica da sociedade, já se tinha chegado ao ponto de ruptura), as vozes fizeram-se  ouvir cada vez mais fortes contra o regime permissivo que gozavam os estudantes da UC.
Um eco que teve foret acolhimento junto dos republicanos que, chegados ao poder, trataram de imediato de reformar o ensino universitário e acabar de vez com o status quo ainda reinante na comunidade discente.



A Extinção da Polícia Académica



Com um discurso propangandístico que pudesse ser melhor absorvido, António José de Almeida, então Ministro do Interior do Governo Provisório da República, anuncia, perante o novo reitor da UC, Manuel de Arriaga -(colocado pelo governo, como forma de "renovar a Universidade)  o fim do odiado "foro medieval", na verdade não está, de todo a extinguir esse foro, porque o mesmo já não existia.
O que na prática sucedia era a extinção do Regulamento da Polícia Académica, assim abolida pelo Decreto de 23 de Outubro de 1910.
Do discurso fazia parte à menção de que o fim de tais prerrogativas eram sinal d emodernidade, até porque, segundo os próprios "libertadores", em enhum país civilizado se concebia a existência, por exemplo, de uma cadeia académica (esquecendo-se que na Alemanha, por exemplo, elas existiam em grande número, e que só com a Grande Guerra este tipo de cárcere iniciará o seu declínio).









[1] CARVALHO, Joaquim - Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI) Colóquio integrado no Projeto "Delfim Santos e a Filosofia da Ciência em Portugal", Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa ,  14 Set 2012.
[2] Provisão de 24 de Julho de 1721.

[3] BRAGA, Paulo Drumond - Aspectos do quotidiano Universitário no período Filipino - Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 313-320.
[4] BASTOS, H. Teixeira - A vida do estudante de Coimbra : antiga e moderna : duas conferências na Associação Cristã de Estudantes, nos dias 29 e 30 de abril de 1920. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1920.

[5] BRAGA, Paulo Drumond - Aspectos do quotidiano Universitário no período Filipino - Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 313-320.
[6]
Por alvará de 26 de Agosto.
[7] Os “Estatutos Velhos” (de 1612), que vigoraram até Pombal, estabeleciam em casos de reincidência uma multa de 2.000 reis, isto além da pena de prisão por oito dias.
[8] RODRÍGUEZ Cruz, Águeda M. – Vida Estudiantil en la Hispanidad de Ayer, citado por “QVID TUNAE? A Tuna Estudantil em Portugal”. Euedito, Porto 2012, p.48
[9] Op.Cit.
[10] D. João V viu-se obrigado a publicar a carta régia de 7 de Janeiro de 1727, mandando riscar (expulsar) dos seus cursos o estudante que por palavras ou obras ofender outro, com o pretexto de novato (caloiro), ainda que seja levemente (ou seja ainda que seja uma ofensa leve), tal era a violência verbal e física entre estudantes, nomeadamente entre veteranos e novatos.
[11] O Conimbricense, 1878, nº 3:199
[12] O Conimbricense, 1877, nº 3:161


Ver também


CORREIA, António – “Caloiros-Novatos”, Rua Larga, de 15 de Abril a 25 de Novembro de 1958.
CRUZEIRO, Maria Eduarda – “Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, Volume XV (60), 1979.
FRIAS, Aníbal - Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias in Revista Crítica de Ciências Sociais, 66, Outubro 2003: 81-116
NUNES, M. António - As Praxes Académicas de Coimbra. Uma interpelação histórico-antropológica, in Cadernos do Noroeste, Série Sociologia, Volume 22 (1-2), 2004.
MOTA, R. C. Margarida - Subsídios para o estudo da delinquência estudantil em Coimbra, 1871-1886, Universidade(s), História, Memória,Perspectivas, vols. III, Congresso História da Universidade, 7º Centenário, Coimbra, 1991 pp.321-330.
RODRIGUES, A. Manuel - Notas sobre a Universidade de Coimbra desde as origens (1290) até à fixação definitiva em Coimbra (1537). Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

VASCONCELOS, António de - Origem e evolução do fôro académico privativo da antiga Universidade portuguesa : breves apontamentos históricos. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917.


Artigo actualizado em Junho de 2013 com base em NUNES, António - Identidade(s) e moda, Percursos contemporâneos da capa e batina e da sinsígnias dos conimbricenses. Bubok, 2013, p.134







Notas aos Rasgões na Capa - Origens e significados


Capas rasgadas são hoje tidas como expressão máxima da veterania e vivência académicas, pejadas, dessa forma, de significâncias, testemunho de amores, amizades, beijos…….. “and so on”.

 De onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa ou mesmo do grande rasgão a meio desta?

 Não sabemos qual a ideia que presidiu ao início desse costume, mas não enjeitamos que possa ser, uma vez mais, o romantismo histórico (muitas vezes cheio de clichés e falsos mitos) a repescar a ideia dos antigos veteranos e seus trajes puídos e rotos, na longa tradição do sopistas (daí derivará, entre outros, o mito de não se lavar a capa, por exemplo, de que já falámos anteriormente).

 Nos anos 80, essa ideia era muito cultivada, sendo esse saudosismo que esteve na origem do interesse e reabilitação das antigas tradições que tinham sido particamente esquecidas após o Maio de 1969. Veja-se que até no Brasil a ideia do rasgão carrega esse simbolismo:

 "Ele seguiu a velha tradição universitária— que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade!"[1]

Bem sabemos que, ainda hoje, existe essa ideia e tendência, nos mais jovens, de aparentar mais idade, maturidade e experiência, como que para conferir um qualquer status quo, um ascendente social ou apenas impressionar as caloiras.
Aliás, nem é preciso ir mais longe que basta atentarmos no que nos diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira:

 "(...) tanto mais que o uso consagrou como mais digno de apreço e mais graciosa a capa ou a batina com mais rasgões e remendos, mais velha e menos elegante, caprichando assim, precisamente, os estudantes, num pecado de aparência boémia descuidada ..."[2]

Esse saudosismo pela “res antiqua” não foi um exclusivo dos praxistas dos anos 80 e 90. Ainda na esteira do romantismo do séc. XIX, desse gosto pela história, temos os estudantes de início do séc. XX, em plena 1ª República (muito avessa às praxes, diga-se) que pretendem reabilitar as velhas tradições entretanto interrompidas com a greve académica de 1907 e, depois, fortemente cerceadas pelas autoridades, pouco dadas àquilo que, em muitos círculos, era tido como prova de retrocesso civilizacional.

Contudo, a aurea em torno do imaginário do estudante boémio e aventureiro, herdeiro dos antigos goliardos, a irreverência característica de quem está sempre, de alguma forma, contra o status quo social, dita o ensejo de recuperar a mística de outrora, reclamar para si a defesa de uma cultura própria, secular tradição, inalienável direito de governarem os seus destinos:

 "E quando aparece este desejo de ressurgimento? Precisamente quando se tinha chegado ao extremo oposto, de se haverem desprezado tanto aquelas velharias que ate a capa e batina quasi a ser abolidas e com elas ridícula preocupação de se considerarem tanto mais honrosas para quem as vestia, quanto mais rasgões tinham mais sêbo as enodava"[3]

 Mas até onde recua a origem dos rasgões na capa?
Não é fácil responder inequivocamente, mas alguma luz podemos lançar sobre essa prática a que sistematicamente se fizeram alterações ou upgrades.

Pensávamos, inicialmente, que o costume teria origem pelos anos 50, pois, segundo os dados colhidos e a falta de testemunhos e documentos anteriores a essa década, apontavam para tal.
O amigo Zé Veloso, no blogue “Penedo d@ Saudade”, dizia a esse respeito o seguinte:

 “(…) e ter-se-ão inspirado no franjado do xaile para começar a rasgar as suas capas? Eu vou por aí! Como dizia o poeta, "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar".
No meu tempo de Coimbra – onde as colegas tinham tomado já o lugar que antes fora das tricanas – dizia-se que cada franja da capa correspondia a uma conquista, ainda que de um fugaz beijo se tratasse. E os mais gabarolas retalhavam as desgraças capas, quais pistoleiros do Oeste enchendo de mossas as coronhas dos revólveres.
Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro.
Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…”. [4]

 Vemos, pois, por este testemunho, de quem trajava capa e batina, ainda no liceu, nos anos 50, que nessa época os rasgões eram conotados a conquistas amorosas, contudo não existia a tradição do rasgão a meio da capa, tanto que tal é tido como sendo um “estranho costume”.

Não é fácil encontrar a origem exacta da prática dos rasgões, mas podemos balizar com recurso a testemunhos e documentos que vamos retirando do anonimato.
Não confundamos, é preciso sublinhar, com as referências existentes a rasgões feitos como resultado de agressões (onde os caloiros erram sovados e suas roupas saíam muito mal tratadas das caçoadas mais ferozes. Existem relatos de capas e batinas rasgadas em resultado dos "encontros" com as trupes, mas não podemso mistura ro rasgão feito de livre e espontânea vontade com os que são consequência de agressões sobre o indivíduo e sua indumentária ou do desgaste natural do traje (e alguma traça, diga-se também).
Segundo o Zé Veloso, era já comum, nos anos 60, verem-se, nomeadamente os rapazes, alguns cortes na capa, com efeito, diz-nos que "Não era vulgar ver-se uma capa completamente franjada – que as havia – mas uma capa com meia dúzia de rasgos era perfeitamente banal, rasgos que teriam um comprimento de 5 a 15 cm, sendo feitos à mão".

Atentemos, por exemplo, no que a propósito deste assunto (que colocámos na facebookiana “Tertúlia do Penedo d@ Saudade”) que respondeu João Portugal Vieira:

  O meu avô que era dos Paxás no início dos anos 50 embirra solenenemente com os rasgões, tanto ele como o meu tio Beça dos anos 30 e o Dr. Virgílio dos anos 20/30 não percebiam de onde tinha surgido a coisa. Parece-me que surgiu de forma muito minoritária algures nos anos sessenta, e foi popularizada nos anos 70 quando apareceu num álbum da série francesa de banda desenhada Michell Vaillant. Quando entrei ainda todos usavam os rasgões de namoradas, noivas, e amizades, até que o Conselho de Veteranos (ou no tempo do Gama ou do Cabral, já não me lembro) fez um panfleto em que dizia que não havia nenhum fundamento para esta tradição, e cada um começou a fazer como lhe apetecia.[5]

 Segundo este testemunho, parecia credível avançar que os rasgões nas capas não existiriam antes dos anos 50, contudo parece ser este testemunho expressivo daquele tipo de estudantes que não achavam grande piada à forma, por vezes exagerada, com que certas capas apareceriam cortadas.
Também significará, porventura, que, conforme as épocas, se aderiam mais ou menos a esse costume ou que só certas franjas e grupos estudantis o praticavam.

O que sabemos é que esse costume é citado no Código da Praxe de 1957, cujo art.º 73 refere, a certa altura "(...) capa preta, com ou sem cortes na parte inferior...", conferindo-lhe lugar como sendo da Praxe, ou seja da Tradição.
Mas podemos regressar mais (e fá-lo-emos até ao séc. XIX) no tempo.

Como inicialmente disséramos, julgávamos serem os anos 50 o alfobre desse costume, mas afinal não é bem assim.
Segundo o que escreveu José Anjos Carvalho, transcrito por Octávio Sérgio, no seu blogue “Guitarra de Coimbra, sobre os costumes estudantis do Liceu de Évora:

 “Na década de 40, quando por lá andei, havia sempre duas récitas anuais, a do 1º de Dezembro e a das Festas da Primavera, em 9 ou 10 de Junho.(…)
Por vezes havia o seu corte de cabelo, muito pouco e, sobretudo, muito raro. Os rasgões na base da capa eram uma prática bastante habitual..”[6]

Seguindo o que acima se lê, o costume existiria nos anos 40, embora sem sabermos ainda qual o significado na época.

Ainda no que concerne o Liceu de Évora, deparámo-nos com um documento que nos faz recuar para os anos 30, mediante uma foto publicada no blogue “Virtual Memories”, do ilustre historiador António M. Nunes, a qual retrata um grupo de estudantes do Liceu de Évora. Nesse cliché, o rapazinho da esquerda parece apresentar uma capa com muitos cortes.

Não negamos a surpresa, pois anteriores investigações nossas nos tinham levado a observar dezenas de clichés de estudantes de capa e batina (muitos deles como membros de tunas) onde ainda não se vira qualquer capa com rasgões (o que indica que a prática não era um costume massificado, bem pelo contrário).

Escarafunchando mais um pouco, e com recurso ao já citado blogue “Virtual Memories”, encontrámos uma curiosa referência, que veio deitar por terra as nossas iniciais “certezas", quanto à antiguidade da tradição dos rasgões na capa.
Sobre o denominado “pequeno uniforme académico”, instituído na UC (embora sem obrigatoriedade de uso) a partir de 1870, quando descreve como é composto, diz-nos António Nunes, a certa altura que:

 “(…)-capa preta singela, em lã ou sarja, embainhada para os lentes, sem bainha para os estudantes amigos dos rasgões, colarinho raso, dispondo a dos estudantes de alamares, e a dos docentes de cordão de borlas ou de cordão simples.”[7]

 A atestar a existência da prática de rasgões no séc. XIX, temos outro indício, reproduzido nas muitas quadras que se faziam em torno do estudante de capa e batina:

 “Em meados do século XIX, os autores de quadras destinadas às danças das fogueiras do São João de Coimbra já se tinham apropriado da capa estudantil, cantando no “Malhão” (=Estalado): A capa do estudante/É um jardim de flores/Toda cheia de remendos/Cada um de seus amores , copla que na década de 1860 passou a ser cantada no novel Fado dos Estudantes Açorianos”[8]

 Esta referência, saída direitinha do famoso “In Illo Tempore”, de Trindade Coelho(p.259), não oferece dúvidas que o significado emprestado a esses rasgões estava, pois, ligado aos amores do estudante, embora não se consiga precisar se eram namoradas (conquistas consumadas/namoros oficializados) ou paixões não correspondidas (na senda das medievas “coitas de amor”).

 O facto é que se temos indícios do costume já existir em finais do séc. XIX e, depois, a reencontrarmos na década de 30 em diante, outros tantos temos que demonstram a sua ausência, por vezes de forma concomitente, o que nos diz que, e mais uma vez se sublinha tal, a prática não era adoptada por todos. Por outro lado, e citando o amigo Zé Veloso, Um costume pode sempre ser descontinuado e retomado décadas mais tarde; e tal pode muito bem ter acontecido nas conturbadas décadas do início do século XX.”

 "Estudantada" (Pintura/desenho de Faustino Rosa Mendes - artista de Santarém), 
Illustração Portugueza, II Série, Nº 698, de 07 Julho de 1919, p. 15 
(Hemeroteca Municipal de Lisboa)


Sabemos, por exemplo, que muitos costumes caem em desuso, ou cessam simplesmente em inícios do séc. XX. Notemos, por exemplo que o termo “Caloiro” era, ainda em 1899, a designação dada aos alunos de liceu que estavam no seu último ano (antes de ingressarem para a universidade) e que aos alunos do 1º ano se dava o nome de “novatos”. Ora, em 1905, ambos os termos eram sinónimos e atribuídos já ao estudante que frequentava pela primeira vez a faculdade (o 1º ano), segundo avança Manuel Prata.[9]



Certezas temos é que nos anos 60, e até ao luto académico que começa em 1969, a prática dos rasgões era amplamente conhecida e posta em prática, acabando retratado no álbum do Michel Vaillant, "Rali em Portugal", cuja primeira edição é de 1969, publicado em fascículos na revista Tintin e finalmente editado em álbum em de 1971 (sob o título original de "Cinq filles dans la course"), podemos observar, em várias tiras, as ditas capas rasgadas
A obra só chegaria a Portugal, como álbum em português, pela mão da Bertrand, em 1981.

Sobre isso, refere o colega Eduardo Coelho o seguinte:

 “ (…) Jean Graton, no álbum "Rallye de Portugal" (da série Michel Vaillant) põe Steve Warson (se não estou em erro) a perguntar a uma guia portuguesa, durante uma pausa do rally em Coimbra, o que significavam os rasgões na capa de uma estudante (capa bem rasgada, por sinal...), sendo-lhe explicado que cada rasgão correspondia a um desgosto de amor.
Bom, mas isso era um autor de banda desenhada belga, que imortalizou o traje académico nas páginas de uma das personagens mais famosas da escola belga :) E o autor normalmente documentava-se muito bem para a execução das suas obras. A Via Latina, por exemplo, está exemplarmente retratada”.[10]

Sabemos, pois, que a recolha de dados e informações ocorre antes de 1969, data em que se dá o luto académico e que o significado emprestado aos rasgões estava ligado a desgostos amorosos (que outros testemunhos de antigos alunos dessa época confirmam).

Veja-se a diferença entre o que nos anos 50/60 se dizia (que eram conquistas), para o que, anos depois, vigorava (amores frustrados).
Nos anos 70, o seguinte significado podemos observar:

 "A cada amor percorrido enquanto o infinito perdure corresponde um rasgão na bainha da capa negra do estudante."[11]

Contudo é nos anos 80, com a reabilitação das tradições académicas, que a moda se espalha pandemicamente e ganha N significados em simultâneo.

Com a massificação do Ensino Superior, e a invenção (quase sempre sem nexo) de pseudo-tradições e códigos, bastaram menos de 10 anos e já o significado dos rasgões era atribuído às amizades especiais, aos grandes amigos de faculdade, e vida académica, e vigorava já uma nova moda: o rasgão a meio da capa, destinado ao namorado(a) “a sério” (prontamente cosido se a seriedade descambasse em ruptura).

 Voltava, a propósito, a recordar a intervenção do Zé Veloso quando falava dos rasgões cosidos com linha da cor da faculdade, para dizer que, nestas ultimas duas/três décadas o que foi comumente doutrinado é que o rasgão reservado, a meio da capa, à namorada, se tivesse de ser cosido teria de o ser com linha branca.

De onde virá tal determinação?
Será isso uma inspiração na figura do João da Ega, da famosa obra “Os Maias”, de Eça de Queirós, que, como reacionário e contra as praxes, mostrava a sua irreverência, em jeito de provocação, cosendo a branco os rasgões de que ia padecendo, pelo uso, a sua batina?

 "Desde a sua entrada na Universidade, renovara as tradições da antiga Boêmia; trazia os rasgões da batina cosidos à linha branca;"[12]

Será essa a inspiração ou tratar-se-á de uma feliz coincidência?

Parece também estranho que em finais dos anos 80, inícios dos 90, as próprias estruturas da Praxe, na figura do Conselho de Veteranos (segundo testemunhou o João Portugal Vieira que cursou nessa altura), terem considerado essa prática como sem fundamento (chegando-se a distribuir um panfleto onde se dizia precisamente isso), apesar de já mencionada no código de 1957.

Poderemos dizer, se confessos defensores da sobriedade do trajar, que os rasgões não são algo propriamente estético e que não dão boa imagem de aprumo, dado que o Traje Nacional é, antes de mais, um uniforme, mas nem sempre as tradições ocorrem dentro da etiqueta e daquilo que é secundum praxis, havendo muitas vezes contributos que chegam por “via popular” - em oposição a uma “via erudita”, se permitem a analogia da área da linguística.

Mas a prática reiterada, pese embora os significados da mesma mutarem ciclicamente, cristalizou-se e enraizou-se, sendo que conquistou o seu lugar como tradição académica (e muitos códigos mais recentes já contemplam isso, regrando o tamanho e a forma de se fazerem os rasgões).

Obviamente que é um costume ele próprio sujeito a desvios, como são disso exemplo os nós dados com as franjas/tiras resultantes desses cortes, como se observa em algumas latitudes, cujo significado se inventa na exacta medida daquilo que se desvirtua.
Pior então são as tranças que vemos em algumas geografias, e que são um prova fidedigna da tonteria, da ignorância e do desrespeito total pela tradição.

Notemos, por exemplo, que nos anos 90, entre os significados dados aos rasgões, aparece um totalmente novo e divergente do até aí entendido, ou seja que os cortes corresponderiam aos fracassos escolares, aos chumbos:

"É composto desde finais do século passado por calça comprida, colete e sobrecasaca, denominada batina por advir da primitiva ... A capa tem mais uma peculiaridade pois, a cada exame passado, corresponde um rasgão feito na extremidade, apresentando no fim do curso numerosos rasgões. Desta figura ressalta um apego ao valor do estatuto universitário e às praxes seculares da Academia."[13]

 Os rasgões, segundo a tradição, serão feitos com os dentes (num acto mais “personalizado”, se assim quisermos emprestar essa significância) e/ou porque usar a tesoura seria misturar um objecto que, em Praxe, serve para sanções, com um acto que é festivo.

A capa é, pois, guardiã de memórias, representando os tempos de mocidade universitária, cujos rasgões testemunham momentos singulares do exercício da cidadania académica:

"Capa pretas onde revejo
toda a minha mocidade,
cada nódoa é um beijo
cada rasgão uma saudade."[14]

Uma tradição, uma convenção, que perpassou a mera esfera da etiqueta e do protocolo ligados ao traje, chegando a capa rasgada a ser cantada pela própria canção coimbrã:

"A minha capa rasgada,
Espelho do coração,
Por te pedir p'ra seres minha
E dizeres sempre que não.

Lá no alto junto a Deus
Ouvi os anjos rezar
Cá na Terra junto a ti
Passei a vida a penar."

<
Sobre este vídeo disse o Eduardo Coelho, a 3 de Novembro 2012, no anterior artigo (inexistente, já) dedicado aos rasgões na capa:

“Grandes amigos a tocar e cantar. Adelino Miguel, um dos virtuosos portuenses (nacionais, diria eu) da guitarra, aqui a dar os seus primeiros passos... É vê-lo actualmente num projecto interessantíssimo -os "Fado em si bemol".
O Pacheco, o veteraníssimo Pacheco - um dos leões da Praxe e das tradições académicas cá do Douro... o Adalberto, na viola... a voz do Mário... Gente boa, gente boa.
Talvez não leiam esta mensagem, mas aqui lhes deixo um sentido abraço.
Fica este primeiro apontamento, a merecer mais aturada pesquisa, contudo já elucidativo para percebermos um pouco das nossas tradições, as curiosidades da mesma e suas nuances.”

Muito haverá ainda para dizer, pois se algumas questões puderam ser já respondidas, muitas outras carecem de novos dados e descobertas, desde se mantendo a mesma com que se iniciou este artigo: de onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa?
Procuraram-se respostas, encontraram-se, simultaneamente, outras tantas questões.
Esperamos, ainda assim, que seja este artigo útil e um pontapé de saída para novas descobertas e actualizações.


[1] Ministério da Educação e Cultura  - Anuário do Museu imperial, Volume 36. do Brasil. Petrópolis, 1982, p.60.
[2] EDITORIAL ENCICLOPÉDIA - Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XXIII. Editorial Enciclopédia Lda, Lisboa - Rio de Janeiro,1936-1960, pp. 67-67.
[3] Revista - Illustração Portugueza, II Série, nº 558,de 30 Outubro 1916, p. 341.
[4] VELOSO, José - TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA…, in blogue Penedo d@ Saudade, artigo de 7 Abril 2010, [em linha] http://penedosaudade.blogspot.pt/2010/04/tricanas-xailes-e-capas-transforma-se-o.html
[6] [em linha] http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005_09_25_archive.html , artigo de 01 Outubro de 2005.
[7] NUNES, António M. - Património vestimentário... (cont.) Do “talar” ao “casacar”, in blogue Virtual Memories, artigo de 4 de Setembro de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.pt/search?q=rasg%C3%B5es
[8] Idem - III - Património... (Académicos de toga e académicos de espada), in blogue
Virtual Memories, artigo de 28 Agosto de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.com/
[9] PRATA, Manuel Alberto C. - Rituais e Cerimónias, A Praxe na Academia de Coimbra. Revista da História das Ideias 15. Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras. Coimbra, 1993,p. 170, em nota de rodapé nº 37.
[10] Post de 31 Outubro in https://www.facebook.com/#!/groups/penedodasaudade.tertulia/
[11] ALMADA, João - Biblioteca da História 33, Salazar, 1889-1970. Editora Três, Brasil, 1974.Cap. III - Em Coimbra, p. 61.
[12] LAGO, Sylvio - Eça de Queirós, Ensaios e Estudos 1. Biblioteca 24 horas.SP Brasil, 2010, p. 237.
[13] TEIXEIRA, Madalena B. - Trajes míticos da cultura regional portuguesa. Sociedade Lisboa, Lisboa, 1994,  p.105.
[14] PEREIRA, B., Joacil - A Vida e o Tempo. Memórias, Vol. I. União Superintendência de Imprensa e Editora, 1996.
Nota: a 1ª e última fotos são adaptações feitas a partir dos originais patentes em http://lm-sunshine.blogspot.pt/