segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Notas à Saia e Meias do Traje Académico Feminino

O presente artigo pretende trazer alguma reflexão e esclarecimentos sobre duas questões ligadas ao traje académico feminino: o tamanho da saia e a cor das meias em uso.
No primeiro caso, a questão suscita alguma controvérsia e, no segundo, reveste-se de curiosidade e em trazer a lume alguns dados que possam ajudar a perceber a transição de cor, quando comparamos o que actualmente vemos e o que no passado se fazia.
 

 
O Tamanho da Saia do Traje Feminino
 
 
São muitos os acesos debates que ocorrem em torno da questão do tamanho da saia do traje académico feminino que, temos de convir, releva mais de moda e gostos temporais do que outra coisa.
Para uns será acima do joelho, para outras abaixo e, no meio desta questão de centímetros e milímetros, acaba por reinar uma verdadeira confusão capaz de por os alfinetes de qualquer modista de pé.
Umas gostam de destilar sensualidade, achando que mostrar mais uns centímetros de perna não apenas é mais chique, como não fere os olhos de uma sociedade há muito despojada de puritanismos fundamentalistas; outras preferem o discretismo assente, ainda, numa noção de decoro e de feição mais clássica.
E escusamos perguntar à facção masculina o que prefere ver, porque adivinhamos, jocosamente, a resposta.
Os códigos de praxe, esses, como de costume, não são fonte fiável, quase sempre reproduzindo a partir da cópia de outros, eles próprios expressão consagrada da ignorância (sobre a questão, em Praxe, da cópia copiada, repetidamente reproduzida sem critério nos códigos, ver AQUI).
 
Mas, afinal, em que ficamos?
 
Como o leitor certamente sabe, o traje feminino foi criado pelos anos 1914-1915, em contexto liceal, respondendo à inércia das autoridades académicas e estudantis em formularem um traje feminino discente.
Com efeito, e ao contrário do que sucedeu nas demais nações, Portugal, e especificamente Coimbra, mantiveram uma tónica paternalista, retrógrada e sectária no que concerne aos trajes discentes, sendo que  a passagem do traje talar para o da "abatina" e, deste, para o actual modelo burguês apenas se operou nas vestes masculinas.
Na UC, até á década de 1940, as mulheres seriam liminarmente ignoradas quer na sua participação associativa e cultural quer no acesso a um traje próprio da sua condição.
Enquanto isso, noutras universidades europeias (e não só), os trajes talares há muito tinham evoluído para um traje unisexo (dissso são prova os uniformes de tipo colegial, tornados famosos em muitas séries e filmes, ou ainda a famosa cap and gown), coisa que no caso português não se registou.



Com efeito:
 
"Alunos, alunas e docentes da UC não mostraram particular interesse pelas iniciativas vestimentárias liceais, documentadas para os anos que vão de 1915 a 1924. Tampouco os alunos e alunas confessadamente republicanos da Academia de Coimbra viram o tailleur/capa como potencial instrumento de inclusão da mulher e de afirmação de uma nova identidade da UC junto da opinião pública. O "hermafroditismo" parecia ficar muito bem nas enfermarias das frentes de guerra, mas não no interior da UC.
Não deixa de ser curioso assinalar estas inércias, carregadas de preconceitos de género pelo que insinuam mas não chegam a afirmar, quando na mesma altura (dezembro de 1915) os lentes da UC adoptavam como traje reformado uma sobrecasaca, idêntica à que estava a ser usada pelos capelães militares dos exércitos envolvidos na Grande Guerra, também ela tributárias dos valores "rational dress" e pelos bispos e arcebispos nos países escandinavos.
Nos liceus, o tailleur/capa testemunhava a emancipação da mulher nos anos da Grande Guerra, pese embora insinuando um visual masculinizado e austero, para tanto recorrendo a um uniforme já testado pelas enfermeiras integradas em corporações militares. Na UC, como se verá, a identidade feminina era assumida sem recurso a fardas e o tailleur não parecia talhado para vingar num ambiente onde só podia se entendido como uniforme das funcionárias." 1
 
Foi precisamente para colmatar essa falha que surgem as primárias formas de traje feminino, nascidas nos liceus de Lisboa  e (depois) Porto, segundo a etiqueta da época, à base de capa e tailleur pretos: casaquinho feminino de três quartos, cintado; saia de funil pela meia perna (e meia calça que seria da cor da pele - isto quando utilizavam meias), sapatos pretos, blusa branca, ausência de gravata, e capa preta. No que concerne à cobertura, sabemos que o "tachinho 2" era comumente usado nos liceus de Lisboa e Évora.
 
Foto da capa de um libreto-partitura do "Fado Serenata da Revista 1916"
(Revista portuguesa), da Casa Sassetti & Cª (Lisboa),
com as actrizes/coristas vestidas de estudantas.
com traje, pasta com fitas e tachinho na cabeça 1916
(Acervo de J.Pierre Silva)

 
Esta influência está claramente assente no uniforme envergado pelos corpos de enfermeiras da marinha, nos EUA (em azul marinho, com capote e chapéu de abas), e em certos hospitais europeus pela mesma época (em cinzento), conforme determina o Decreto nº 4:136, de 24-04-1918, que o manda aplicar às enfermeiras militares portuguesas.
Mas sublinhamos que a criação do traje académico feminino é de cariz espontâneo, um movimento que, aliás, como nos diz A. Nunes (2008), passou completamente ao lado dos ministros da Instrução Pública e dos reitores dos liceus.
Com efeito, quando o Ministério da Instrução/Educação decide regulamentar o traje estudantil, versão feminina, fá-lo tardiamente (1924) e, segundo o autor, "...em artigos péssimos que revelam completo desconhecimento da função, importância, características e morfologia dos trajes corporativos."
 
Pelas fotos de época, contrastadas com a investigação feita a clichés de uniformes corporativos femininos da época, não restam dúvidas que a saia cobria o joelho, segundo a concepção de decoro e rigor associados ao uniforme como instrumento de trabalho e não como roupagem de lazer.
Claro está que, bem sabemos, com o tempo, muitos desses uniformes sofreram algumas variações quanto ao desenho e tamanho, sendo que é sobretudo no corpo das hospedeiras do ar que a saia regista uma redução de tamanho, quando a política das companhias aéreas aposta no perfil da hospedeira simultaneamente prestável e agradável aos olhos (passando os critérios de selecção - verdadeiros concursos de beleza, nomeadamente nos EUA -  a dar enorme atenção à beleza e aspecto físico e vestindo as suas funcionárias com um toque de discreta sensualidade, de que a subida da saia é expressão evidente).
 
Seguindo, contudo, o paradigma dos uniformes corporativos femininos da época, a saia do traje feminino, sendo pela meia perna, cobria, naturalmente o joelho.
O que criou enorme confusão nos últimos anos foi a omissão desse pormenor, quando os legisladores se ficaram por indicar que o tamanho a observar era "pelo joelho".
 
Usar essa expressão ("pelo joelho") permitia, desde logo, como está fácil de perceber, e comprovar, múltiplas interpretações, sendo que "pelo joelho" era tanto a saia abaixo ou acima deste.
Por outro lado, a questão tornou-se tanto mais complicada de suster, quando muitas meninas pareciam ter o joelho em locais anatomicamente improváveis.
Uma vez mais, estranha-se que tantos códigos de praxe sejam tão "picuinhas" e "miudinhos" com aspectos secundários e "papismos" sem nexo, mas depois não sejam capazes de esclarecer , e fundamentar, devidamente esta questão de tamanho.
 
E embora a moda da mini-saia fosse muito posterior à implementação do traje feminino nos liceus e, depois, nas universidades do Porto, Coimbra e Lisboa, a geração pós 1980, cedo preferiu, em muitos casos, esticar a interpretação para medidas ad hoc, traduzidas no "acima do joelho um palmo", "meia mão travessa acima do joelho", "5 dedos acima do joelho (que, a gosto, tanto podiam estar juntos como afastados)", etc., de modo a que a saia seguisse mais a moda e apetite pessoal do que o normativo que a regulava como parte integrante de um uniforme.
 
Feito este ponto de situação, e apenas para terminar a contextualização do traje feminino nas universidades, pegamos no que sobre isto nos relata A. Nunes (2009):
 
"...o processo de criação deste traje liceal (em meados da década de 1940 passará a universitário graças ao Orfeão da UP, quando o seu uso já estava generalizado na maior parte dos liceus portugueses) está perfeitamente inserido no contexto ocidental da época, coincidindo com as fardas desenhadas expressamente para as mulheres que exerceram tarefas colaborativas nas forças militares dos USA, Canadá, Grã-Bretanha e França durante a Grande Guerra (carteiro, enfermeira, condutora de ambulância, Cruz-Vermelha)."
 
Assim, sabemos que o traje feminino, rapidamente se divulgou a partir dos liceus de Lisboa e do Porto aos restantes liceus (1914-15 e seguintes), passando a sua adopção universitária a ser primeiramente feita pelas universitárias do Orfeão Universitário do Porto (posteriormente imitadas pelas demais colegas portuenses).


Estudantes finalistas do Liceu de Évora com Florbela Espanca (1917)

Estudantes Liceais do Porto


 
Mais tarde, estender-se-ia a Coimbra:
 
"Ia adiantado o séc. XX quando se acendeu a discussão sobre a necessidade de as alunas da UC tirarem benefícios práticos do uso de um traje de tipo uniforme. Não ter traje académico fazia parte da identidade das académicas da UC
desde 1891, ano em que contemporaneamente se matriculou a primeira aluna.
A não participação feminina na vida associativa, a ausência de organismos culturais mistos até 1938 e a omissão da cerimónias de formatura de bacharéis e licenciados desde 1910 foram justificando a inércia observada em Coimbra. A nível dos liceus locais, mesmo considerando o Liceu Infanta D. Maria, nada consta quanto a um hipotético uso de farda, se considerarmos que a bata branca não era propriamente um uniforme escolar
 
As alunas da UC tinham o privilégio do uso de pasta com fitas de seda e capa preta sem uniforme [o mesmo sucedia em Lisboa e Porto], costume que na década de 1980 ainda era praticado por quintanistas que iam ao Baile de Gala das Faculdades durantes os festejos da Queima das Fitas. Era o equivalente aos trajes cosmopolitas de ir à ópera e ao teatro, usados até á década de 1950 em Nova York, Paris, Londres, Milão e Lisboa.
Nos finais da década de 1940 este estado de coisas começou a mudar quase imperceptivelmente.
 
Orfeonistas do OUP, 1946-1947, Acervo do Dr. Álvaro Andrade
As universitárias de Coimbra estavam a par do uso do tailleur nos liceus e no Orfeão Universitário do Porto (ca. 1946).
O tailleur tinha vindo a conhecer crescente popularização no Ocidente graças às enfermeiras da Segunda Guerra Mundial e aos corpos de hospedeiras das companhias de aviação civil. As divas de Hollywood exibiam tailleur, e estilistas como Christian Dior apostaram na apropriação  pela indústria da Alta-Costura.
O peso crescentemente atribuído desde meados da década de 40 às latadas de começo de ano escolar e às cerimónias de imposição de insígnias (grelos no 4º ano, fitas no 5º ano), começaram a suscitar em alunas da Faculdade de Letras vontade de adopção de um traje académico.  
(...)
No primeiro dia de aulas de 1948, as estudantes de Direito Ilda Pedroso e Mariado Céu Soares atravessaram o que restava da Rua Larga e dirigiram-se ao Paço das Escolas para assistir às aulas com capa e batina. No dia da imposição de insígnias às novas greladas e novas fitadas de Medicina e Farmácia, a 19 de Novembro de 1949, as referidas estudantes desfilaram com um conjunto saia/batina/capa, acontecimento muito comentado no "millieu", mas muito bem acolhido segundo os relatos recolhidos 3.
(...)
Parecia encontrada a solução, numa instituição onde a cultura histórica não legitimava de ânimo leve nem o tailleur, nem uma distinção formal entre modelo masculino e modelo feminino. A breve trecho, a evolução seria bem outra.
(...)
Em 1951 as alunas do Teatro dos Estudantes (TEUC) preparam uma digressão ao Brasil, tendo decidido levar um conjunto prático que substituísse os custos e os incómodos habitualmente havidos com os vestidos de gala. Ficou decidido levar nas bagagens o tailleur preto conforme modelo em voga na alta-costura e no pronto-a-vestir. [traje que em diferentes padrões cromáticos era então usado no Ocidente por enfermeiras militares e hospedeiras de aeronáutica civil.]."4
 
Como mais adiante veremos, quando falarmos da cor das meias, perceberemos que a implementação do traje feminino em Coimbra não foi propriamente pacífica.
 
Até aos anos 1970, a saia do traje feminino parece não sofrer com o efeito do calor que dilata os corpos e mingua as roupas.
Porventura a moda da mini-saia 5, que se fará sentir em Portugal sobretudo a partir dos anos 1970, poderá ter influenciado a forma como a saia do traje feminino passa a sofrer uma subida gradual, quando os trajes académicos são reintroduzidos a partir de 1980 e a sua confecção entregue a grandes cadeias de pronto-a-vestir especializadas, mais importadas com critérios comerciais (sobre a influência negativa dessas cadeias na Praxe, ver AQUI) e de moda.
Os clichés que, contudo, ainda antes, mostram algumas saias mais subidas do que o costume ocorrem na mesma tendência irreverente daquilo que as colegiais fazem às saias dos uniformes em uso: puxando-as um pouco para cima na cintura.
 
Como procurámos explicar, o tamanho tradicionalmente definido e observado ao longo de décadas foi o da saia pelo joelho cobrindo o mesmo.

Na falta da indicação "cobrindo o mesmo", é natural que se registassem variações, logo fundamentadas em justificações para todos os gostos - precisamente ao gosto de quem trajava e para si criava o seu próprio código e norma vestimentários (que ocorrem na mesmíssima proporção das desculpas para meter na capa o que cada um bem quer, fazer nós e rasgões como cada um bem entende, meter colheres de café na lapela ou gravata, encher-se de pins........).
 
A saia pelo joelho, cobrindo o mesmo, apresenta a ideia do porte clássico e austero próprios a um uniforme concebido dentro dos parâmetros da época.
O tamanho da saia, assim estipulado, permitia que a mulher, ao sentar-se, traçando a perna ou não, mantivesse um figurino de elegância discreta e aprumo formal, segundo a etiqueta das boas maneiras.
 
Naturalmente que os tempos mudam e longe vão os tempos da imposição da saia pelo tornozelo a pretexto do recato que era devido à mulher.
Mas, tal como sucede com o traje masculino, ambos se fixaram no modelo que conhecemos há muito, mantendo os seus traços, precisamente porque mais do que uma roupagem sujeita a modas e estilos que cada época expressa, configuram uma espécie de memória patrimonial e representam não uma filosofia, uma tendência ou uma moda sazonal, mas a condição e estatuto estudantil, cristalizados nessa etnografia académica.
Não é pois, neste caso, o estudante que faz o traje, mas o traje que "faz" o estudante, que o apresenta como tal.
 
 
A cor das meias do Traje Académico Feminino
 
 

Como se pode verificar, ainda nos anos 60 (e até ao luto académico de 1969),
era usança a meia cor da pele ou simplesmente não usar meia alguma. 

Foi no seio do OUP que o traje  académico feminino ingressou no ensino
superior nacional. Ainda hoje, é com meia da cor da pele que se traja.

Nos liceus, de norte a sul do país (com excepção do Liceu de Coimbra), e até finais
da  década de 1960, as meninas trajavam ou sem meias ou com elas cor da pele
 
 
Cremos que a observação de alguns clichés acima apresentados, permitem, desde logo, ao leitor, perceber que o uso de meias pretas não foi assim tão generalizado como hoje se constata.
Pois não.
 
Mas por que razão é hoje ponto assente que o uso do traje feminino se faz com meias de cor preta, quando temos provas de que nem sempre foi assim?
Afinal, de onde vem essa determinação que já todos os códigos estipulam (por cópia uns dos outros)?
 
É facto que durante muito tempo as meias em uso eram, tradicionalmente, da cor da pele, isto quando as mulheres não preferiam, antes, não usar meia alguma.
Foi essa a escolha e convenção adoptada pela generalidade das estudantes dos liceus e universidades portuguesas, seguindo exactamente, como já mencionámos, os paradigma dos uniformes corporativos femininos (sendo que, no caso das enfermeiras, as meias eram até, em alguns casos, brancas).
Uma convenção, portanto, quiçá associada a uma ideia de limpeza, conjecturamos nós.


 
Mas por que razão passam a ser pretas?
 
 
Para explicar tal, temos de dar um pulo a Coimbra e recuar até ao tempo em que o uniforme estudantil feminino passa a ser consagrado em código.
Estamos, pois, nos anos 1950  e a TEUC torna-se pioneira no uso do tailleur e capa preta em Coimbra, seguindo as colegas do Orfeão do Porto e a generalidade das colegas dos liceus.
 
Como já referimos, a sociedade académica conimbricense sempre omitira o papel das mulheres na cultura e associativismo estudantis, pelo que a implementação de um traje feminino para as colegas estudantes nunca fora prioritário.
Dessa inércia resultou que as mulheres, de forma emancipada e autónoma, começaram a usar o dito tailleur sem passar cartão a ninguém.
E perante tal, nada se moveu um milímetro. Era assunto que continuava a passar ao lado de um certo machismo fechado em si mesmo e para quem estas "aventuras femininas" despertavam mais curiosidade e graça do que algum tipo de preocupação.
Recordaremos, a título informativo, que na delegação da TEUC que se desloca ao Brasil, em 1951, vai também o Dux Veteranorum da época, Francisco Barrigas de Carvalho e o Reitor, Maximino Correia, os quais não colocam quaisquer entraves ao tailleur/capa pretos.
 
Poderemos pensar que o traje feminino recebeu forte adesão após o passo dado pelas meninas do TEUC, mas tal não é verdade.
 
A verdade é que o modelo que conhecemos foi imposto por decreto, sem consulta de qualquer mulher, num gesto algo surpreendente, como que a tentar não ficar atrás do combóio que já partira bem cedo em 1915 e levava já as estudantes do OUP desde os anos 40.
Atentemos a estas informações preciosas:
 
"Pouco antes da Queima das Fitas de Maio de 1954, o Magno Conselho de Veteranos da academia de Coimbra (MCVAC), após decisão exclusivamente masculina, deliberou impor por "decretus" o tailleur preto à base de casaco preto curto/saia como traje discente feminino.

Ficou determinado que nas latadas das Faculdades e imposições de insígnias de Novembro desse ano as novas greladas e novas fitadas não pudessem usar pasta com grelos ou fitas sem o tailleur preto.
Entre Setembro e Novembro de 1954, Coimbra viveu dias de corrida ao "fato", abrindo desde então as portas ao pronto-a-vestir. A imprensa periódica que efectuou a cobertura dos eventos relatou que a quase totalidade das novas greladas e novas fitadas usava tailleur. O concentrar das atenções da comunicação social em Coimbra fez esquecer que a mesma indumentária era usada ia para 39 anos nos liceus portugueses e pelo menos desde há 8 anos no Orfeão Universitário do Porto.
 
A medida decretada em meados de 1954 gerou uma onda de descontentamento entre as alunas que não se sentiam agradadas com o modelo escolhido, ou que liam a obrigatoriedade como um atropelo masculino à sua tradicional prerrogativa de não uso de uniforme académico.
Outro pomo de discórdia residiu na imposição de meias latas pretas, quando as estudantes preferiam não vestir meias ou usá-las na cor da pele.
 
Ao longo da segunda metade da década de 1950, as alunas pintarão riscos pretos na parte de trás das pernas. Não vestindo meias, na verdade pareciam estar a usá-las graças ao artifício do risco pintado na pele, o qual imitava a costura posterior vertical que as meias altas femininas da época comportavam.
 
Procurando suavizar descontentamentos, o MCVAC integrou o tailleur no "Código de Praxe de 1957" e manteve a velha prerrogativa do uso de capa preta com vestido de gala.
 
O primeiro grande utilizador e divulgador do tailleur terá sido o Coral dos Estudantes da Faculdade de Letras (CELUC), que se apresentara em público no mês de Abril de 1954." 6
 
Não subscrevermos totalmente a ideia de que o corpo discente feminino ficasse aborrecido com a implementação de um traje que era ansiado por muitas estudantes. Mas estamos em crer que o facto de terem ficado à margem dessa decisão, de não terem sido consultadas quanto à escolha, de tal ter sido decidido de forma "apressada" e sem qualquer período de transição, juntamente com serem obrigadas ao seu uso até nos bailes de gala, terão sido razões o bastante para despolotar uma forte contestação, apesar da adesão verificada ao tailleur, sob pena de não poderem usar insígnias.
 
Painel de azulejos que se encontra nos jardins da AAC,
no qual as raparigas são retratadas com meias pretas.

 
Se atentarmos à letra do código de 1957, percebemos claramente que o Conselho de Veteranos, na hora de legislar e passar para a forma escrita o património oral da Praxis, pega no decreto de 1954 e o inclui como "parente pobre", indiciando uma ausência de debate e reflexão aberta (nomeadamente às mulheres - uma vez mais arredadas do processo).
 
Tal é evidente ao verificarmos que o artigo que consagra o traje feminino (Art.º 253º) não vem a par com o que estipula e define o traje estudantil masculino (Art.º 73º), mas 180 artigos depois.
Como está bom de ler, a denominada "praxe das raparigas" (consagrado em título único ,que se inicia com o art.º 249º) surge praticamente no fim do código, o que, por si só, denota a posição ainda secundária que a mulher tinha em matéria de Praxe aos olhos dos rapazes.
Participante, já, em diversos grupos, nunca houve uma verdadeira inclusão das mesmas nos órgãos decisores da Praxe. Se hoje as veteranas podem comparecer livremente, continua o MCV a ser quase exclusivamente uma "cave man", e ainda não parece ser para breve a possibilidade de alguma mulher vir a tornar-se Dux 7.
 
O Conselho de Veteranos da UC da época, acaba, pois, por imprimir no código, de forma muito ligeira e epidérmica (nota-se, e bem, a falta de ponderação sustentada) aquilo que já era observável, segundo a imposição de 1954: tailleur preto à base de casaca e de saia preta não rodada, camisa branca, gravata ou laço pretos, sapatos pretos e capa.
A questão de meia preta parece ser, em nosso entender, é uma espécie de "desvio à la Coimbra".
Estamos fortemente em crer que, neste ponto, o CV quis dar uma alfinetada e sobrepor-se.
Coimbra, que sempre fora o farol, sempre fora a matriz, a "Alma Mater", não podia passar a ter, no tocante ao traje feminino, um papel secundário, de quem vai atrás dos outros (leia-se os liceus e Universidade do Porto), pelo que impor meias pretas era como que marcar uma diferença e vincar uma identidade.

Como pudemos ler acima, e como os clichés abaixo demonstram, a imposição da meia preta encontrará resistência em muitas mulheres, ainda pelos anos 60 adentro.
 

Apesar do "Decretus" de 1954, e da "corrida ao fato", podemos neste cliché verificar que
ainda na Serenata da Queima de 1955, havia quem continuasse a não aderir à meia preta.

 
Transcrevemos o artigo 252º do Código de 1957 8:
 
"As raparigas só podem usar as suas insígnias pessoais estando de capa e batina, devendo esta ser constituída por:
- Sapato preto, de qualquer modelo;
- Meia alta, preta;
- Fato, saia casaco, preto de modelo simples;
- Camisa branca;
- laço ou gravata;
- Capa.
§ 1º O casaco pode ter ou não bandas de seda, mas não ter a gola de pele.
4 2º A saia não pode ser rodada.
§ 3º Fica suspensa a exigência deste artigo quando as greladas ou fitadas se proponham assistir às reuniões dançantes 9 das Festas da Queima das Fitas."
 
Estranhamente, ainda nos anos 1960, se podem ver
raparigas que não usam meias pretas.


 
Fica explicada a questão das meias pretas que se começam a usar em Coimbra, e apenas em Coimbra (liceu incluído), por imposição do MCV, que decreta de forma contrária ao uso e costume, e vontade, das estudantes.
Nas demais academias, continua-se a usar a meia da cor da pele, até ao fatídico luto académico de 1969 com o qual são suspensas a Praxe e actividades académicas e, naturalmente, o porte do traje.
 
Quando as mesmas são retomadas (década de 1980), os liceus não acompanham e, seguindo a academia líder, ou seja Coimbra, todas as demais, ao invés de recuperarem a sua identidade (naquilo que lhes era próprio), (re)copiam Coimbra e, ignorantemente, as meias pretas.


Ainda na transição da década de 70 para as seguinte, e durante os anos 1980,
se pode verificar que, no Porto, o uso das meias pretas não está generalizado.


 
Apenas estranhamos que, no caso da Tuna do liceu de Évora, não se tenha mantido o uso das meias cor da pele, trocando-as pelos ditames conimbricenses ainda nos anos 1960 (pelos clichés que pudemos observar da Tuna do liceu de Évora, já mista, vemos meninas com meias cor de pele e outras com meias pretas, mas depois, a partir dos anos 70 já só meias pretas).
 
Assim sendo, e se quisermos seguir à letra a Tradição, apenas Coimbra deveria seguir o uso das meias pretas, e, mesmo assim, colocamos fortes reservas a tal (se quisermos ser fiéis á Tradição genuína, até Coimbra deveria abolir a meia preta nas senhoras).
As demais academias onde o Traje Nacional está em uso não têm qualquer obrigatoriedade de tal, perante a Tradição.
 
Esperamos ter conseguido esclarecer.
Nestas questões, contudo, cremos que a mulher deveria ter um papel de relevo quanto a decisões desta natureza, sendo ouvida e auscultando a sensibilidade da mesma, em futuras revisões de códigos de praxe, a par com argumentos documentados como aqui apresentámos.


[1] NUNES, António Manuel - Identidade(s) e moda, Percursos Contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses. Bubok Publishing Ldª, 2013, p. 113.
[2] Também conhecido por "barretina", era igual ao dos alunos do Colégio Militar, que tanto foi usado por alunos como por alunas. Este elemento, resulta de uma transformação do barrete islâmico do magrebe, o "chéchia" ou "kufix", que também era usado desde 1859 em escolas militares britânicas de formação de cadetes ("pillbox hat"). Antes de ter feito a sua entrada triunfal nos liceus de Lisboa, Porto e Évora ("tacho"), em versão unissexo, o "pillbox" já era largamente usado em Portugal por militares e impedidos de oficial.
[3] Diário de Coimbra, edições de 20-26 de Novembro de 1949.
[4] NUNES, António Manuel, Op. Cit. pp.113-115.
[5] Definida como o símbolo da moda "Swinging London" na década de 1960, e atribuída à estilista Mary Quant (1966), embora o designer francês André Courrèges também seja frequentemente citado como um pioneiro da mesma.
[6] NUNES, António Manuel, Op. Cit. pp.115-116.
[7] E quem diz em Coimbra, diz no Porto e outras academias.
[8] ANDRADE, Mário Saraiva e BARROS, Victor Dias - Código da Praxe Académica de Coimbra (Revisão de Américo Patrão). Coimbra Editora Lda., 1957, p. 101.
[9] As alunas da UC tinham o privilégio do uso de pasta com fitas e capa preta sem uniforme, costume que na década de 1980 ainda era praticado por quintanistas que iam ao Baile de Gala das Faculdades.

Definição de Praxe Académica

 



Noção e definição de Praxe Académica

 
"Por Praxe Académica se entende o conjunto de regras e normas, suportadas na Tradição Académica, que visam enquadrar os procedimentos, protocolo e etiqueta a observar pelo estudante trajado, na sua participação nas várias actividades e manifestações académicas (exercício da sua cidadania académica).
Por Praxe se entende o conjunto legislado que baliza os ritos e práticas estudantis de cariz tradicional, bem como a hierarquia de relações estabelecidas inter-pares. é, pois o conjunto de regras e procedimentos a observar nas actividades académicas e não essas mesmas actividades."

Notas à Definição de Praxe

Não há como negar que, quando ouvimos estudantes a pretenderem, seja num entrevista seja num trabalho, publicação ou numa conversa, definir o que é Praxe, o tipo de respostas deixa quase sempre muito a desejar, quando não é mesmo um resultado doloroso.
As respostas passam quase todas por um confusa mistura de tudo que não é nada.
Quase sempre obtemos os chavões costumeiros de "serve para integrar", "conjunto de ritos", "conjunto das tradições estudantis", entre dezenas de outras que evidenciam que essa noção não apenas não é devidamente conhecida e entendida, como é permeável a uma contínua deturpação e interpretação ad hoc, segundo o entendimento, mais ou menos umbilical, que cada um lhe empresta.
Quer isto dizer que, independentemente daquilo que muitos códigos de praxe apresentam como definição (todos eles errados, por sinal), é o que cada um acha que vai prevalecendo. E como "cada cabeça sua sentença", a Praxe, as praxes e todo esse conjunto cada vez mais confuso se transforma numa terra de ninguém, uma mescla difusa que serve apenas a alimentar o erro.
 
Vamos, pois, e antes de apresentarmos, no final, aquela que será, no nosso entender, a mais adequada definição de Praxe, passar os olhos sobre as sucessivas concepções do termo "praxe", para percebermos, também, as fragilidades de copiar e repetir conceitos acriticamente, sem os tentar, antes, perceber na sua diegese.
 
Existe, segundo 3 grandes grupos, a seguinte definição de Praxe:
 
- a que muitos antigos, e parte dos actuais, estudantes de Coimbra entendem, derivada da noção imposta pelo código de 1957 que, pretendeu, por decreto, colocar todas as manifestações da tradição e cultura estudantil sob a esfera do código e chamar-lhe Praxe Académica. Nasce precisamente aí todo o equívoco.
Sobre isso nos diz  A. Nunes:
 
"Constituem exemplo desse esforço praxizador a Queima das Fitas, a récita dos Quintanistas, as Reuniões de Curso dos Antigos Estudantes da UC, a Festa das Latas e Imposição de Insígnias, [pasta com fitas, tuna, orfeão, cartola e bengala, semana académica, festival de tunas] o "bom" uso da Capa e Batina, a Serenata. especificando melhor, são praxe as normas que regulamentam a boa exercitação cíclica destas tradições, mas estas instituições costumeiras não são Praxe em sentido estrito". [1]
 
 
Uma das maiores incongruências do código de 1957 está bem patente na pretensa sobranceria de que um organismo pode estabelecer tradição por decreto, ou seja que a tradição, ao invés de ser um processo espontâneo cristalizado pelo tempo, pode ser artificialmente criada como tal.

No que respeita ao gozo ao caloiro, este código, na senda dos conceitos primários de praxe, dá um enfoque desproporcionado sobre a relação com caloiros, sendo que mais de metade do documento é a isso dedicado. Estranhamente, para um código que pretende colocar sob a sua esfera todas as tradicionais manifestações académicas, muito pouco lhes dedica em termos de regras de etiqueta e protocolo a observar.
 
- a que os estudantes, posteriores à crise académica de 1969, essencialmente a partir dos anos 90, adoptam fora de Coimbra, recuperando inicialmente a ideia do código da UC de 1957, como "conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes entre os estudantes da cidade de Coimbra [muda, depois, apenas, a referência geográfica] e os que forem decretados pelo Conselho de veteranos"[2].
 
Rapidamente essa noção, por força do impacto do gozo ao caloiro (as "praxes"), se transforma e dá lugar a um conceito em que a Praxe é um processo ao qual se tem obrigatoriamente de aderir como caloiro, sob pena do resto ser vedado ao estudante. Chega-se, aliás, em muitas academias, ao supremo ridículo de proibir o uso do traje a quem não foi alvo de gozo ao caloiro, como se o direito de usar o uniforme estudantil fosse determinado pela Praxe (quando nunca o foi. Ver AQUI).
Para estes, tudo é Praxe, mas paradoxalmente, quase tudo se resume ao gozo ao caloiro e ao exercício da autoridade hierárquica[3].
Diríamos que se assistiu a um extremar de entendimentos, onde tudo passa a estar sob a esfera da Praxe, até mesmo o que nunca o foi (como Tunas, por exemplo).
Praxe torna-se, irremediavelmente, sinónimo quase exclusivo de gozo ao caloiro (e simultaneamente, num segundo plano, de tradições académicas), assim doutrinado no meio estudantil - e assim publicitado fora dele, defendendo-se das acusações de excessos no gozo ao caloiro com a bandeira de que "também é" outras coisas respeitosas (Serenata, Queima......), de modo a atenuar ou menorizar a existência desses mesmos excessos.
 É, neste momento, o conceito mais disseminado e, contudo, o menos defensável e com menos argumentos sólidos  e credíveis que o sustentem.
 
- a que um grupo, ainda reduzido,  coloca não como conjunto de tradições, mas como o conjunto de regras a observar na vivência dessas mesmas tradições e dos ritos associados.
 
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Toda a confusão instalada resulta da tentativa, bem sucedida, diga-se, que os autores do Código da Praxe da UC de 1957 impuseram sobre a colagem e sinonímia estabelecida entre Praxe, praxes e Tradições Académicas, fundindo ambas.
No desejo de controlar, e ter sob sua tutela, todos os aspectos e expressões da cultura estudantil universitária, determinaram que fosse qual fosse a actividade estudantil, desde que implicasse, no mínimo, o uso de traje académico, isso implicaria necessariamente que estivesse dentro do âmbito e jurisdição do código, da Praxe, portanto. E bastou apenas um artigo para tal, o primeiro.
Ou seja, tudo aquilo que antes nunca o fora assunto da Praxe, passava a agora a sê-lo (salvo seja), mesmo se, depois, quase tudo é ignorado no dito código, ficando como que na esfera dos casos omissos, um entendimento de implícito não explicitado.
 
Ora qualquer pessoa com o mínimo senso percebe que um casal de namorados trajados não tem de passar cartão seja a quem for pelos beijos que dá e que o seu namoro não é assunto de Praxe.
Do mesmo modo que o facto de estar trajado a assistir a um concerto de rock não torna nem o concerto, nem o grupo nem o rock matéria de Praxe.
Não passa pela cabeça de ninguém que seja o Dux, ou Conselho de Veteranos, a determinar as regras de funcionamento de grupos de fados ou Tunas, escolhendo quem pode deles fazer parte, que convites pode aceitar ou repertório deve interpretar.
Não passa ou não deveria passar, mas, infelizmente, há acéfalos que acham que sim.
 
Significa isso que a noção corrente sobre o que é a Praxe está inquinada há muitos anos e foi sendo continuamente deturpada para estar ao serviço de "praxes" e de tudo o que gira em torno disso (à cabeça, os organismos de praxe).
Se o código da UC  de 1957, pretendeu, supostamente, grafar a tradição oral existente (na verdade, mais de metade do mesmo é inventado quase de raiz) , a larga maioria dos códigos, surgidos na década de 1990 e seguintes, copiando em parte Coimbra, cedo se apressou a grafar artificialmente para, copiando a inspiração, logo a perverter para dar "ares" de tradição local própria. Pior ainda quando muito daquilo que foi legislado veio introduzir práticas erradas a colidir dolosamente com a Tradição e a própria inspiração que deveria servir de fundamento legitimador.
 
Se inicialmente o termo praxe surge apenas associado aos ritos com caloiros, no sentido das práticas e costumes que na época da sua chegada os mais velhos exercitavam, vindo substituir outro termos caídos em desuso (investidas, caçoadas, assuadas...), não é menos verdade que, quando aparecem as primeiras publicações que pretendem expressar a norma, as regras a observar, o termo Praxe ganha uma nova acepção, necessário que era, também, regular e estabelecer alguns limites e padrões comuns.
Com efeito, e fundamentalmente a partir de finais do séc. XIX e inícios do XX, um conjunto assinalável de regras disciplinares a que estavam sujeitos os estudantes de Coimbra (antes e depois da abolição do foro académico em 1834) e que se foram diluindo a partir do fim do porte obrigatório do traje (1924)[4], sobreviveram e foram coligidas, a par com as regras que estavam oralmente estabelecidas entre estudantes.
 
Assim, a maneira de proceder com caloiros, os direitos, os deveres,  as condições de funcionamento e prática das trupes, as protecções, as relações de hierarquia, as emancipações, certos ritos ..............fundiram-se com o conjunto de normas provenientes do extinto regulamento disciplinar da UC, que regulava o recolher obrigatório, definia os limites geográficos da sua jurisdição, os castigos a aplicar aos estudantes prevaricadores (nomeadamente o encarceramento na prisão académica) e todo o conjunto de normativos e regras de etiqueta protocolar a observar no uso do traje (decoro, limpeza, solenidades, actos, formas de usar a capa...).
 
E foi esse conjunto de regras que definia as relações entre estudantes, passado essencialmente por via oral (a maioria do que é publicado até então é mais descritivo e prescritivo - conselhos, advertências, cuidados a ter quando um aluno chega a Coimbra), que acabou por, em 1957,  se traduzir formalmente num código escrito e posteriormente difundido.
 
 
 Note-se que o código de 1957 foi quase ignorado (passando ao lado da maioria que o desconhecia) nos anos posteriores à sua publicação (os estudantes continuaram a perpetuar o que era a tradição oral) e só parece ter singrado em força, a partir dos anos 80 do séc. XX.
Atente-se, por exemplo, ao lema "Dura PraxisSed Praxis", que aparece décadas antes de 1957 e que traduz precisamente, já, essa ideia de conjunto de regras a observar pelo estudante trajado, num directo paralelismo e transposição do  "Dura Lex, Sed Lex" (a lei é dura, mas é a lei), proveniente do foro jurídico.
Significa exactamente isso que estais a pensar: Praxe como sinónimo de lei, de lei académica neste caso, a que regia o modus operandi do estudante, no exercício da sua cidadania académica.
Nunca por nunca qualquer associação com a dureza do gozo ao caloiro. Contudo, até o lema foi deturpado desse seu sentido oriundo e adaptado do direito, da ideia de código de leis, para justificar abusos nos ritos com caloiros e a própria obrigatoriedade de aderir aos mesmos.
Aliás, a adopção do "Dura Praxis Sed Praxis" pretende, apenas e tão só, deixar claro que a lei, a lei académica (a Praxe, portanto), é igual para todos e por todos deve ser observada; lei perante a qual ninguém goza de imunidade ou regime de excepção, tratando a todos com a mesma equidade e isenção e, acima de tudo, com justiça.
 
Olhemos, agora, para o que Maria Eduarda Cruzeiro refere, a propósito da definição de praxe
"....parece, à primeira vista, constituir o seu núcleo - a relação com caloiros - e o seu âmbito - toda a vida académica coimbrã (...) se retira a impressão de que a praxe, ainda que de facto envolvendo a totalidade da vida académica, se organiza em torno de uma relação fundamental, a de caloiro-doutor"[5]
 
O que na verdade temos é uma enorme mistura e falta de separação entre as práticas e, depois, as leis que as regulam, ou seja entre o que é da esfera da vivência do quotidiano e a observância de procedimentos a ter, das regras que a orientam em circunscritos momentos e eventos.
Não é despiciente, para esta amálgama, o facto do código de 57 e seguintes contemplarem um vasto conjunto de regras e normas a observar na relação com caloiros e darem-lhe uma desproporcionada e exagerada importância (note-se o excesso em que se configura o número de artigos para regular trupes). Nesse ponto, tal como nos códigos que se lhe seguiram, o código da praxe da UC complica o que sempre se quis simples e pragmático.
Maria Eduarda Cruzeiro traduz, nos seus estudos, precisamente o que se foi fixando no imaginário estudantil, nessa representação doutrinada a partir do código de 57:
 
 
 “As praxes são práticas institucionais especiais, cujas funções básicas de conservação de uma originalidade fundada na tradição tendem, no desenrolar da sua história, a cristalizá-las em formas quase rituais. (…) São como uma espécie de lei privativa da comunidade estudantil, regulando estritamente certas práticas em razão da anciania.
(...)
As praxes são práticas institucionais especiais, cujas funções básicas de conservação de uma originalidade fundada na tradição tendem, no desenrolar da sua história, a cristalizá-las em formas quase rituais”[6]
 
 - Então a Serenata, a Queima, o traje, as tunas........isso não é Praxe?

 
- Não, não são Praxe. São, isso sim, manifestações da cultura estudantil, da Tradição Académica e que se desenvolveram - e foram vividos durante décadas - fora da esfera de organismos de Praxe, de códigos e quejandos, antes de serem barbaramente anexados e apropriados, indevida e unilateralmente, por um conselho de veteranos, que embora, porventura, bem intencionado, ajuizou em causa própria e não soube (ou não quis) perceber tal.
 
 
Embora Maria Eduarda Cruzeiro acabe por, também ela, incluir erroneamente no conceito de praxe aquilo que pertence à esfera independente do lato conceito de tradições académicas (acabando precisamente por confundir Praxe com Tradições Académicas), não deixa de ser importante reter o seguinte, ainda sobre o que significa praxe:
 
"Praxe, em sentido etimológico, é apenas designativo de prática, execução de uma acção, sem que nenhuma outra significação secundárias se lhe associe. Termo que se difundiu no português principalmente por via do vocabulário jurídico, para designar as práticas do processo organizadas segundo uma regulamentação determinada, desde logo ao seu sentido primário se veio juntar uma conotação adicional que sublinha o aspecto normativo de tais práticas. Então já não é apenas expressão do modo como se procede, mas sim do modo como se deve proceder.
(...)
Se, em termos gerais, praxe é de facto prática, prática regulada, se ela é o "como" é e mais o "como deve ser", a sua característica específica reside noutros aspectos.
Um deles parece-me decorrer de uma particular acentuação do carácter normativo que certas práticas, ditas praxes, apresentam. Com muita frequência, o termo designa uma prática especialmente regulada (sob forma escrita ou não) aproximando o seu significado do de "etiqueta", "protocolo", "pragmática".
(...)
Enquanto práticas colectivas, fixadas em formas mais ou menos estereotipadas, as praxes realizam-se, se não necessariamente, pelo menos com uma certa frequência, nas condições de um cerimonial ou mesmo nas de um cerimonial particular que é um ritual"[7]
 
Na verdade, se, como adiante clarificaremos, o conceito de Praxe deve apontar o conjunto de regras, de etiqueta e protocolo, não deixa de ser verdade que começou inicialmente por referir-se aos ritos com caloiros e simultaneamente às regras que enquadram esses mesmos ritos.
Mas também não é menos verdade que ao pretenderem os estudantes, já desde as primárias tentativas de codificação (1916 e 1925), englobar na ideia de Praxe a herança do antigo regulamento disciplinar da UC, quanto ao traje essencialmente, o termo tem necessariamente de tomar uma outra significância, porque já não apenas uma espécie de manual de gozo ao caloiro, sendo necessário arrumar âmbitos, distinguir e separar o que é a prática em si e aquilo que a regulamenta.
Só que tal nunca se fez inequivocamente.
 
Portanto, há que fazer uma separação evidente entre o que é legislação e o que são as práticas, a operacionalização de ritos - que englobam quer expressões espontâneas quer práticas já mais cristalizadas, mais ritualizadas, portanto (latada, baptismo...).
Nenhum código pode conter detalhadamente tudo o que são as situações, brincadeiras e actos que se fazem, por exemplo, com caloiros durante o gozo. Deve é estabelecer limites que permitam, depois, saber o que se pode ou não fazer e em que moldes. O mesmo com os demais aspectos da vivência estudantil.
Problema grave foi que tal distinção navegou sempre em áreas cinzentas e permeáveis, especialmente quando se pretendeu praxizar um conjunto de expressões da cultura académica, expressões culturais que nada tinham a ver com o, mais ou menos, circunscrito âmbito da esfera praxística.
Se, durante lato tempo, a adesão aos ritos, às praxes e às respectivas regras não era de todo opcional, paulatinamente, e porque as normas de civilidade também a isso obrigavam, foi crescendo a consciência de que aderir a certas práticas não podia resultar de qualquer tipo de coação, especialmente a de vedar direitos que nunca foram exclusivos de praxistas, mas de qualquer estudante (trajar, participar da vida académica, usar insígnias....).
 
- Mas, então, as praxes não fazem parte da Praxe?
 
 
- As actividades em si não, mas as regras que balizam e enquadram a sua operacionalização, essas, sim.
Ou seja os limites até onde o gozo pode, e deve, ir o protocolo e procedimento a ter num baptismo, as proteções........... fazem parte da Praxe, do que regra e legisla o acto  e âmbito do gozo ao caloiro, portanto.
 
A grande nódoa que recai sobre a Praxe (sobre os códigos, portanto), e com toda a justiça, é decorrente de muitos consagrarem normas que atentam não apenas à inteligência, mas aos mais elementares direitos constitucionais e de civismo.
Ou seja, quando certos abusos têm a cobertura "legal" de um código (da Praxe), é aí acertado falar-se  não apenas contra as praxes (as práticas) erradas, mas contra a Praxe (que erradamente permite, consente ou promove isso). E se os códigos contêm normativos que promovem abusos ou atentam à integridade física e moral das pessoas, sendo Praxe, não é Praxe que valha.
Fora essas situações (que não são assim tão raras, infelizmente), e especificamente no que toca às "praxes", podemos aceitar que "praxes" e Praxe estejam de certa maneira associadas no imaginário, quando são reflexo umas das outras, especialmente em quem está de fora.
Mas se alguém prevarica, comete abusos, sai fora do que é próprio, e tal vai contra o que a Praxe (a lei/código) consagra, então não faz sentido nenhum falar-se de Praxe.
No caso concreto das praxes, se estas estão erradas, assim como as leis que as enquadram, faz sentido clamar a abolição da Praxe, atingindo outras regras que nada têm a ver com o gozo ao caloiro? Ou não fará apenas sentido clamar contra certas "praxes"?

Claro está que, perante a inércia dos organismos de praxe e dos próprios praxistas que, ao invés de alertar, formar e informar (e alterar os códigos para serem mais objectivos e preventivos), é toda a estrutura que fica em causa: a lei, as práticas e os praxistas - neste caso, sim, a Praxe no seu todo.
 
 - Significa, neste caso, que a Praxe deve respeitar as leis do nosso país, certo?
 
 - Correctíssimo.
Mas nem sempre assim foi, bem sabemos.
Contudo, também é sabido que, salvo a questão das trupes em Coimbra, desde os anos 30/40 do séc. XX as práticas tinham perdido quase todo o seu cariz violento. Era impensável, nos anos 50 ou 60, por exemplo (e conforme o atestam antigos estudantes desse tempo) meter um caloiro de quatro, pintá-lo, sujá-lo de tudo e mais alguma coisa e promover imagens degradantes e humilhantes dos colegas, especialmente em público.
Estranhamente, e os sociólogos têm aqui muito por onde estudar, a partir de finais da década de 1980, assistiu-se a uma inexplicável histeria colectiva com a introdução de práticas quase inquisicionais, misturando-lhe simulacros de recruta com outros de cariz sexual, humilhações gratuitas várias, num movimento totalmente inverso e oposto às normas de civismo e educação vigentes.
O que nunca se permitiriam fazer ou consentiriam que se fizesse numa situação normal, ali, naquele espaço onde parecia que parava o tempo e o senso, os estudantes transfiguravam-se.....para pior.
E não se tratou simplesmente de irreverência e da saudável posição juvenil de estar contra o sistema. Lamentavelmente, promoveu-se todo um conjunto de excessos, quase sempre a coberto de códigos que foram escritos precisamente para legitimar essas práticas.
 
- Mas a Praxe não trata apenas de regras sobre "praxes, pois não?
 
 - Pois não. A Praxe, ou seja o conjunto de regras contidas em código, trata de muitas outras matérias.
Com efeito, trata de prescrever como é que o estudante trajado deve agir e fazer em determinados momentos, quase todos eles ligados à celebração de eventos do calendário académico ou momentos solenes (como usar o traje numa serenata, numa cerimónia fúnebre, como, quando e que insígnias se usam, como trajar dentro de um local de culto....) ou, ainda, determinando, segundo a tradição, aspectos protocolares de alguns eventos.
 É exactamente por isso que é erróneo confundir praxes com Praxe ou pretender que eventos tradicionais académicos  são Praxe, quando esta apenas prescreve e orienta o estudante no modo como deve estar e proceder nesses mesmos eventos.
A Praxe é, acima de tudo, um conjunto de regras destinadas ao estudante, per si, individualmente[8]
Assim, e resumindo, segundo uma afirmação publicada no grupo "Tradições Académicas&Praxe", "O que se faz DO traje é Praxe, mas o que se faz DE traje não tem forçosamente de o ser".
 
- Então, a sua adesão é livre?
 
 - Totalmente livre, tal como livre é o estudante de trajar ou não - sabendo que o direito a trajar não é definido pela Praxe, porque a Praxe não tem jurisdição para determinar quem é estudante ou não (e o traje é o uniforme do estudante e não exclusivamente de "praxistas").
 Significa que quando o estudante traja, adere implicitamente a um conjunto de normas sobre como esse traje deve ser usado em determinadas situações. Tal não significa ter de filiar-se em praxes ou estar obrigado a participar seja do que for.
Um aluno não é obrigado a usar insígnias, por exemplo, mas sabe que, para as usar, deve trajar e que o uso de insígnia  obedece a regras que deve respeitar;
O estudante não é obrigado a assistir à Serenata Monumental, mas sabe que, lá estando, trajado, deve guardar respeito e silêncio e traçar a sua capa;
O estudante não é obrigado a ir à Bênção das Pastas (cerimónia religiosa), mas, crente ou não, guardará o respeito pelo momento (e local, se caso disso também), usando a capa descaída pelos ombros, usando a pasta com o número de fitas consagrado pela tradição, etc.;
O estudante trajado não é obrigado a participar do gozo ao caloiro, mas sabe que não pode fazer tudo o que lhe apetece, que há limites e deve guardar respeito pelo caloiro, pelos seus direitos como cidadão e estudante;
Um estudante sabe que não é obrigado a usar emblemas na capa, mas pretendendo usar, deve colocar os que a tradição consagra como próprios.
 
Acima de tudo, o estudante, ao trajar, deve respeito à Tradição que a Praxe deve traduzir (o que poucas vezes acontece, se ajuizarmos pelos códigos que por aí circulam), porque, trajado, não apenas representa uma classe e um património cultural, mas porque só assim se dá, também, ao respeito.
Essas regras de etiqueta, de protocolo, de como proceder estando trajado em determinados momentos (e são, até, bastante reduzidos) é o que nós chamamos de Praxe (de lei académica).
 
- Mas há coisas que os códigos determinam que não coincidem com, nem respeitam, a tradição.
 
- Isso são outros quinhentos.
Infelizmente, a quase totalidade dos códigos existentes estão pejados de erros e invenções.
Ora, o que legitima a Praxe, o código portanto, é estar de acordo com a Tradição (e respeitar as leis do país, não esqueçamos). 



Abrimos apenas um parêntesis, para deixar claro o entendimento de Tradição Académica.


TRADIÇÃO - Quando falamos em "Tradição", não estamos a falar daquela que cada um inventa para si ou que certas academias definem como algo próprio (com base em pseudo historicidades sem qualquer fundamento ou precedente estudantil). Falamos da Tradição Académica que é património nacional, historicamente transversal em todo o país (que encontrávamos não apenas nas universidades, mas nos liceus), de matriz coimbrã, é certo, mas que não é pertença apenas da cidade à beira Mondego plantada. Falamos no que é basilar, no que é essência. Damos disso dois exemplos na questão do traje: se sempre foi uniforme dos estudantes desde o liceu e os caloiros sempre trajaram, não é tradição académica que determinada instituição proíba o seu uso a caloiros.
Do mesmo modo que se sempre foi o uniforme dos estudantes, não é lícito determinar que só que, foi praxado pode trajar.
 


Fechamos os parêntesis e prosseguimos. 
 
 

Quando isso acontece, nem sequer podemos considerar Praxe o que é um erro, pois a Praxe  não pode legislar contra si própria, ou seja contra aquilo que lhe dá sustento e fundamentação. Trona-se um "non sense" absoluto.
 
Seja como for, quando as práticas resultam ou estão associadas a regras que as enquadram como aceitáveis (mas estão erradas), ou seja que espelham a Praxe (o código) é plausível que quem está de fora fale globalmente em Praxe para referir quer as práticas quer leis que as permitem ou consentem.
Nesse contexto, e só nesse, compreendemos, quando alguns que insurgem contra a "Praxe" (quando as práticas e as leis se espelham mutuamente).
 
- Então, em que ficamos sobre o que é Praxe, resumindo e concluindo?
 
- Resumindo e concluindo, diremos o seguinte, em formato de artigo de código:
 
Noção e definição de Praxe Académica
 
"Por Praxe Académica se entende o conjunto de regras e normas, suportadas na Tradição Académica, que visam enquadrar os procedimentos, protocolo e etiqueta a observar pelo estudante trajado, na sua participação nas várias actividades e manifestações académicas (exercício da sua cidadania académica).
Por Praxe se entende o conjunto legislado que baliza os ritos e práticas estudantis de cariz tradicional, bem como a hierarquia de relações estabelecidas inter-pares. é, pois o conjunto de regras e procedimentos a observar nas actividades académicas e não essas mesmas actividades."
 
 
Como é fácil de perceber, é todo um novo olhar sobre o termo Praxe, contrastante com o que se foi generalizando (e degradando) ao longo de anos.
Esta definição separa muito objectivamente a prática da norma que a enquadra (ou não). E importa, de facto, e de uma vez por todas, separar o termo Praxe de "praxes". Aliás, se os estudantes se habituassem, antes, a dizer "gozo ao caloiro" certamente que isso contribuiria, ainda mais eficazmente, para uma correcta distinção e separação de águas já demasiado, e constantemente, poluídas.
E faz toda a diferença, ou deveria fazer.




[1] NUNES, António M. - As Praxes Académicas de Coimbra, Uma interpelação histórico-antropológica, in blogue "Guitarra de Coimbra (Parte I)", artigo de 19 de Novembro de 2005.
[2]Segundo o Código da UC de 1957.
[3]Regressando aos conceitos primários de praxe.
[4]Que, nesse mesmo decreto, também o institui como Traje Nacional do estudante português nos liceus, escolas superiores e universidades.
[5]CRUZEIRO, Maria Eduarda - Costumes estudantis de Coimbra, Análise Social, 1979, pp.797-798.
[6]Idem.
[7][7]Op. cit., p.800
[8] Existem, nomeadamente em Coimbra alguns destinados a grupos de estudantes, como são as trupes. Matéria que há muito precisaria de uma discussão séria e revisão profunda.