segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Notas à Definição de Praxe

Não há como negar que, quando ouvimos estudantes a pretenderem, seja num entrevista seja num trabalho, publicação ou numa conversa, definir o que é Praxe, o tipo de respostas deixa quase sempre muito a desejar, quando não é mesmo um resultado doloroso.
As respostas passam quase todas por um confusa mistura de tudo que não é nada.
Quase sempre obtemos os chavões costumeiros de "serve para integrar", "conjunto de ritos", "conjunto das tradições estudantis", entre dezenas de outras que evidenciam que essa noção não apenas não é devidamente conhecida e entendida, como é permeável a uma contínua deturpação e interpretação ad hoc, segundo o entendimento, mais ou menos umbilical, que cada um lhe empresta.
Quer isto dizer que, independentemente daquilo que muitos códigos de praxe apresentam como definição (todos eles errados, por sinal), é o que cada um acha que vai prevalecendo. E como "cada cabeça sua sentença", a Praxe, as praxes e todo esse conjunto cada vez mais confuso se transforma numa terra de ninguém, uma mescla difusa que serve apenas a alimentar o erro.
 
Vamos, pois, e antes de apresentarmos, no final, aquela que será, no nosso entender, a mais adequada definição de Praxe, passar os olhos sobre as sucessivas concepções do termo "praxe", para percebermos, também, as fragilidades de copiar e repetir conceitos acriticamente, sem os tentar, antes, perceber na sua diegese.
 
Existe, segundo 3 grandes grupos, a seguinte definição de Praxe:
 
- a que muitos antigos, e parte dos actuais, estudantes de Coimbra entendem, derivada da noção imposta pelo código de 1957 que, pretendeu, por decreto, colocar todas as manifestações da tradição e cultura estudantil sob a esfera do código e chamar-lhe Praxe Académica. Nasce precisamente aí todo o equívoco.
Sobre isso nos diz  A. Nunes:
 
"Constituem exemplo desse esforço praxizador a Queima das Fitas, a récita dos Quintanistas, as Reuniões de Curso dos Antigos Estudantes da UC, a Festa das Latas e Imposição de Insígnias, [pasta com fitas, tuna, orfeão, cartola e bengala, semana académica, festival de tunas] o "bom" uso da Capa e Batina, a Serenata. especificando melhor, são praxe as normas que regulamentam a boa exercitação cíclica destas tradições, mas estas instituições costumeiras não são Praxe em sentido estrito". [1]
 
 
Uma das maiores incongruências do código de 1957 está bem patente na pretensa sobranceria de que um organismo pode estabelecer tradição por decreto, ou seja que a tradição, ao invés de ser um processo espontâneo cristalizado pelo tempo, pode ser artificialmente criada como tal.

No que respeita ao gozo ao caloiro, este código, na senda dos conceitos primários de praxe, dá um enfoque desproporcionado sobre a relação com caloiros, sendo que mais de metade do documento é a isso dedicado. Estranhamente, para um código que pretende colocar sob a sua esfera todas as tradicionais manifestações académicas, muito pouco lhes dedica em termos de regras de etiqueta e protocolo a observar.
 
- a que os estudantes, posteriores à crise académica de 1969, essencialmente a partir dos anos 90, adoptam fora de Coimbra, recuperando inicialmente a ideia do código da UC de 1957, como "conjunto de usos e costumes tradicionalmente existentes entre os estudantes da cidade de Coimbra [muda, depois, apenas, a referência geográfica] e os que forem decretados pelo Conselho de veteranos"[2].
 
Rapidamente essa noção, por força do impacto do gozo ao caloiro (as "praxes"), se transforma e dá lugar a um conceito em que a Praxe é um processo ao qual se tem obrigatoriamente de aderir como caloiro, sob pena do resto ser vedado ao estudante. Chega-se, aliás, em muitas academias, ao supremo ridículo de proibir o uso do traje a quem não foi alvo de gozo ao caloiro, como se o direito de usar o uniforme estudantil fosse determinado pela Praxe (quando nunca o foi. Ver AQUI).
Para estes, tudo é Praxe, mas paradoxalmente, quase tudo se resume ao gozo ao caloiro e ao exercício da autoridade hierárquica[3].
Diríamos que se assistiu a um extremar de entendimentos, onde tudo passa a estar sob a esfera da Praxe, até mesmo o que nunca o foi (como Tunas, por exemplo).
Praxe torna-se, irremediavelmente, sinónimo quase exclusivo de gozo ao caloiro (e simultaneamente, num segundo plano, de tradições académicas), assim doutrinado no meio estudantil - e assim publicitado fora dele, defendendo-se das acusações de excessos no gozo ao caloiro com a bandeira de que "também é" outras coisas respeitosas (Serenata, Queima......), de modo a atenuar ou menorizar a existência desses mesmos excessos.
 É, neste momento, o conceito mais disseminado e, contudo, o menos defensável e com menos argumentos sólidos  e credíveis que o sustentem.
 
- a que um grupo, ainda reduzido,  coloca não como conjunto de tradições, mas como o conjunto de regras a observar na vivência dessas mesmas tradições e dos ritos associados.
 
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Toda a confusão instalada resulta da tentativa, bem sucedida, diga-se, que os autores do Código da Praxe da UC de 1957 impuseram sobre a colagem e sinonímia estabelecida entre Praxe, praxes e Tradições Académicas, fundindo ambas.
No desejo de controlar, e ter sob sua tutela, todos os aspectos e expressões da cultura estudantil universitária, determinaram que fosse qual fosse a actividade estudantil, desde que implicasse, no mínimo, o uso de traje académico, isso implicaria necessariamente que estivesse dentro do âmbito e jurisdição do código, da Praxe, portanto. E bastou apenas um artigo para tal, o primeiro.
Ou seja, tudo aquilo que antes nunca o fora assunto da Praxe, passava a agora a sê-lo (salvo seja), mesmo se, depois, quase tudo é ignorado no dito código, ficando como que na esfera dos casos omissos, um entendimento de implícito não explicitado.
 
Ora qualquer pessoa com o mínimo senso percebe que um casal de namorados trajados não tem de passar cartão seja a quem for pelos beijos que dá e que o seu namoro não é assunto de Praxe.
Do mesmo modo que o facto de estar trajado a assistir a um concerto de rock não torna nem o concerto, nem o grupo nem o rock matéria de Praxe.
Não passa pela cabeça de ninguém que seja o Dux, ou Conselho de Veteranos, a determinar as regras de funcionamento de grupos de fados ou Tunas, escolhendo quem pode deles fazer parte, que convites pode aceitar ou repertório deve interpretar.
Não passa ou não deveria passar, mas, infelizmente, há acéfalos que acham que sim.
 
Significa isso que a noção corrente sobre o que é a Praxe está inquinada há muitos anos e foi sendo continuamente deturpada para estar ao serviço de "praxes" e de tudo o que gira em torno disso (à cabeça, os organismos de praxe).
Se o código da UC  de 1957, pretendeu, supostamente, grafar a tradição oral existente (na verdade, mais de metade do mesmo é inventado quase de raiz) , a larga maioria dos códigos, surgidos na década de 1990 e seguintes, copiando em parte Coimbra, cedo se apressou a grafar artificialmente para, copiando a inspiração, logo a perverter para dar "ares" de tradição local própria. Pior ainda quando muito daquilo que foi legislado veio introduzir práticas erradas a colidir dolosamente com a Tradição e a própria inspiração que deveria servir de fundamento legitimador.
 
Se inicialmente o termo praxe surge apenas associado aos ritos com caloiros, no sentido das práticas e costumes que na época da sua chegada os mais velhos exercitavam, vindo substituir outro termos caídos em desuso (investidas, caçoadas, assuadas...), não é menos verdade que, quando aparecem as primeiras publicações que pretendem expressar a norma, as regras a observar, o termo Praxe ganha uma nova acepção, necessário que era, também, regular e estabelecer alguns limites e padrões comuns.
Com efeito, e fundamentalmente a partir de finais do séc. XIX e inícios do XX, um conjunto assinalável de regras disciplinares a que estavam sujeitos os estudantes de Coimbra (antes e depois da abolição do foro académico em 1834) e que se foram diluindo a partir do fim do porte obrigatório do traje (1924)[4], sobreviveram e foram coligidas, a par com as regras que estavam oralmente estabelecidas entre estudantes.
 
Assim, a maneira de proceder com caloiros, os direitos, os deveres,  as condições de funcionamento e prática das trupes, as protecções, as relações de hierarquia, as emancipações, certos ritos ..............fundiram-se com o conjunto de normas provenientes do extinto regulamento disciplinar da UC, que regulava o recolher obrigatório, definia os limites geográficos da sua jurisdição, os castigos a aplicar aos estudantes prevaricadores (nomeadamente o encarceramento na prisão académica) e todo o conjunto de normativos e regras de etiqueta protocolar a observar no uso do traje (decoro, limpeza, solenidades, actos, formas de usar a capa...).
 
E foi esse conjunto de regras que definia as relações entre estudantes, passado essencialmente por via oral (a maioria do que é publicado até então é mais descritivo e prescritivo - conselhos, advertências, cuidados a ter quando um aluno chega a Coimbra), que acabou por, em 1957,  se traduzir formalmente num código escrito e posteriormente difundido.
 
 
 Note-se que o código de 1957 foi quase ignorado (passando ao lado da maioria que o desconhecia) nos anos posteriores à sua publicação (os estudantes continuaram a perpetuar o que era a tradição oral) e só parece ter singrado em força, a partir dos anos 80 do séc. XX.
Atente-se, por exemplo, ao lema "Dura PraxisSed Praxis", que aparece décadas antes de 1957 e que traduz precisamente, já, essa ideia de conjunto de regras a observar pelo estudante trajado, num directo paralelismo e transposição do  "Dura Lex, Sed Lex" (a lei é dura, mas é a lei), proveniente do foro jurídico.
Significa exactamente isso que estais a pensar: Praxe como sinónimo de lei, de lei académica neste caso, a que regia o modus operandi do estudante, no exercício da sua cidadania académica.
Nunca por nunca qualquer associação com a dureza do gozo ao caloiro. Contudo, até o lema foi deturpado desse seu sentido oriundo e adaptado do direito, da ideia de código de leis, para justificar abusos nos ritos com caloiros e a própria obrigatoriedade de aderir aos mesmos.
Aliás, a adopção do "Dura Praxis Sed Praxis" pretende, apenas e tão só, deixar claro que a lei, a lei académica (a Praxe, portanto), é igual para todos e por todos deve ser observada; lei perante a qual ninguém goza de imunidade ou regime de excepção, tratando a todos com a mesma equidade e isenção e, acima de tudo, com justiça.
 
Olhemos, agora, para o que Maria Eduarda Cruzeiro refere, a propósito da definição de praxe
"....parece, à primeira vista, constituir o seu núcleo - a relação com caloiros - e o seu âmbito - toda a vida académica coimbrã (...) se retira a impressão de que a praxe, ainda que de facto envolvendo a totalidade da vida académica, se organiza em torno de uma relação fundamental, a de caloiro-doutor"[5]
 
O que na verdade temos é uma enorme mistura e falta de separação entre as práticas e, depois, as leis que as regulam, ou seja entre o que é da esfera da vivência do quotidiano e a observância de procedimentos a ter, das regras que a orientam em circunscritos momentos e eventos.
Não é despiciente, para esta amálgama, o facto do código de 57 e seguintes contemplarem um vasto conjunto de regras e normas a observar na relação com caloiros e darem-lhe uma desproporcionada e exagerada importância (note-se o excesso em que se configura o número de artigos para regular trupes). Nesse ponto, tal como nos códigos que se lhe seguiram, o código da praxe da UC complica o que sempre se quis simples e pragmático.
Maria Eduarda Cruzeiro traduz, nos seus estudos, precisamente o que se foi fixando no imaginário estudantil, nessa representação doutrinada a partir do código de 57:
 
 
 “As praxes são práticas institucionais especiais, cujas funções básicas de conservação de uma originalidade fundada na tradição tendem, no desenrolar da sua história, a cristalizá-las em formas quase rituais. (…) São como uma espécie de lei privativa da comunidade estudantil, regulando estritamente certas práticas em razão da anciania.
(...)
As praxes são práticas institucionais especiais, cujas funções básicas de conservação de uma originalidade fundada na tradição tendem, no desenrolar da sua história, a cristalizá-las em formas quase rituais”[6]
 
 - Então a Serenata, a Queima, o traje, as tunas........isso não é Praxe?

 
- Não, não são Praxe. São, isso sim, manifestações da cultura estudantil, da Tradição Académica e que se desenvolveram - e foram vividos durante décadas - fora da esfera de organismos de Praxe, de códigos e quejandos, antes de serem barbaramente anexados e apropriados, indevida e unilateralmente, por um conselho de veteranos, que embora, porventura, bem intencionado, ajuizou em causa própria e não soube (ou não quis) perceber tal.
 
 
Embora Maria Eduarda Cruzeiro acabe por, também ela, incluir erroneamente no conceito de praxe aquilo que pertence à esfera independente do lato conceito de tradições académicas (acabando precisamente por confundir Praxe com Tradições Académicas), não deixa de ser importante reter o seguinte, ainda sobre o que significa praxe:
 
"Praxe, em sentido etimológico, é apenas designativo de prática, execução de uma acção, sem que nenhuma outra significação secundárias se lhe associe. Termo que se difundiu no português principalmente por via do vocabulário jurídico, para designar as práticas do processo organizadas segundo uma regulamentação determinada, desde logo ao seu sentido primário se veio juntar uma conotação adicional que sublinha o aspecto normativo de tais práticas. Então já não é apenas expressão do modo como se procede, mas sim do modo como se deve proceder.
(...)
Se, em termos gerais, praxe é de facto prática, prática regulada, se ela é o "como" é e mais o "como deve ser", a sua característica específica reside noutros aspectos.
Um deles parece-me decorrer de uma particular acentuação do carácter normativo que certas práticas, ditas praxes, apresentam. Com muita frequência, o termo designa uma prática especialmente regulada (sob forma escrita ou não) aproximando o seu significado do de "etiqueta", "protocolo", "pragmática".
(...)
Enquanto práticas colectivas, fixadas em formas mais ou menos estereotipadas, as praxes realizam-se, se não necessariamente, pelo menos com uma certa frequência, nas condições de um cerimonial ou mesmo nas de um cerimonial particular que é um ritual"[7]
 
Na verdade, se, como adiante clarificaremos, o conceito de Praxe deve apontar o conjunto de regras, de etiqueta e protocolo, não deixa de ser verdade que começou inicialmente por referir-se aos ritos com caloiros e simultaneamente às regras que enquadram esses mesmos ritos.
Mas também não é menos verdade que ao pretenderem os estudantes, já desde as primárias tentativas de codificação (1916 e 1925), englobar na ideia de Praxe a herança do antigo regulamento disciplinar da UC, quanto ao traje essencialmente, o termo tem necessariamente de tomar uma outra significância, porque já não apenas uma espécie de manual de gozo ao caloiro, sendo necessário arrumar âmbitos, distinguir e separar o que é a prática em si e aquilo que a regulamenta.
Só que tal nunca se fez inequivocamente.
 
Portanto, há que fazer uma separação evidente entre o que é legislação e o que são as práticas, a operacionalização de ritos - que englobam quer expressões espontâneas quer práticas já mais cristalizadas, mais ritualizadas, portanto (latada, baptismo...).
Nenhum código pode conter detalhadamente tudo o que são as situações, brincadeiras e actos que se fazem, por exemplo, com caloiros durante o gozo. Deve é estabelecer limites que permitam, depois, saber o que se pode ou não fazer e em que moldes. O mesmo com os demais aspectos da vivência estudantil.
Problema grave foi que tal distinção navegou sempre em áreas cinzentas e permeáveis, especialmente quando se pretendeu praxizar um conjunto de expressões da cultura académica, expressões culturais que nada tinham a ver com o, mais ou menos, circunscrito âmbito da esfera praxística.
Se, durante lato tempo, a adesão aos ritos, às praxes e às respectivas regras não era de todo opcional, paulatinamente, e porque as normas de civilidade também a isso obrigavam, foi crescendo a consciência de que aderir a certas práticas não podia resultar de qualquer tipo de coação, especialmente a de vedar direitos que nunca foram exclusivos de praxistas, mas de qualquer estudante (trajar, participar da vida académica, usar insígnias....).
 
- Mas, então, as praxes não fazem parte da Praxe?
 
 
- As actividades em si não, mas as regras que balizam e enquadram a sua operacionalização, essas, sim.
Ou seja os limites até onde o gozo pode, e deve, ir o protocolo e procedimento a ter num baptismo, as proteções........... fazem parte da Praxe, do que regra e legisla o acto  e âmbito do gozo ao caloiro, portanto.
 
A grande nódoa que recai sobre a Praxe (sobre os códigos, portanto), e com toda a justiça, é decorrente de muitos consagrarem normas que atentam não apenas à inteligência, mas aos mais elementares direitos constitucionais e de civismo.
Ou seja, quando certos abusos têm a cobertura "legal" de um código (da Praxe), é aí acertado falar-se  não apenas contra as praxes (as práticas) erradas, mas contra a Praxe (que erradamente permite, consente ou promove isso). E se os códigos contêm normativos que promovem abusos ou atentam à integridade física e moral das pessoas, sendo Praxe, não é Praxe que valha.
Fora essas situações (que não são assim tão raras, infelizmente), e especificamente no que toca às "praxes", podemos aceitar que "praxes" e Praxe estejam de certa maneira associadas no imaginário, quando são reflexo umas das outras, especialmente em quem está de fora.
Mas se alguém prevarica, comete abusos, sai fora do que é próprio, e tal vai contra o que a Praxe (a lei/código) consagra, então não faz sentido nenhum falar-se de Praxe.
No caso concreto das praxes, se estas estão erradas, assim como as leis que as enquadram, faz sentido clamar a abolição da Praxe, atingindo outras regras que nada têm a ver com o gozo ao caloiro? Ou não fará apenas sentido clamar contra certas "praxes"?

Claro está que, perante a inércia dos organismos de praxe e dos próprios praxistas que, ao invés de alertar, formar e informar (e alterar os códigos para serem mais objectivos e preventivos), é toda a estrutura que fica em causa: a lei, as práticas e os praxistas - neste caso, sim, a Praxe no seu todo.
 
 - Significa, neste caso, que a Praxe deve respeitar as leis do nosso país, certo?
 
 - Correctíssimo.
Mas nem sempre assim foi, bem sabemos.
Contudo, também é sabido que, salvo a questão das trupes em Coimbra, desde os anos 30/40 do séc. XX as práticas tinham perdido quase todo o seu cariz violento. Era impensável, nos anos 50 ou 60, por exemplo (e conforme o atestam antigos estudantes desse tempo) meter um caloiro de quatro, pintá-lo, sujá-lo de tudo e mais alguma coisa e promover imagens degradantes e humilhantes dos colegas, especialmente em público.
Estranhamente, e os sociólogos têm aqui muito por onde estudar, a partir de finais da década de 1980, assistiu-se a uma inexplicável histeria colectiva com a introdução de práticas quase inquisicionais, misturando-lhe simulacros de recruta com outros de cariz sexual, humilhações gratuitas várias, num movimento totalmente inverso e oposto às normas de civismo e educação vigentes.
O que nunca se permitiriam fazer ou consentiriam que se fizesse numa situação normal, ali, naquele espaço onde parecia que parava o tempo e o senso, os estudantes transfiguravam-se.....para pior.
E não se tratou simplesmente de irreverência e da saudável posição juvenil de estar contra o sistema. Lamentavelmente, promoveu-se todo um conjunto de excessos, quase sempre a coberto de códigos que foram escritos precisamente para legitimar essas práticas.
 
- Mas a Praxe não trata apenas de regras sobre "praxes, pois não?
 
 - Pois não. A Praxe, ou seja o conjunto de regras contidas em código, trata de muitas outras matérias.
Com efeito, trata de prescrever como é que o estudante trajado deve agir e fazer em determinados momentos, quase todos eles ligados à celebração de eventos do calendário académico ou momentos solenes (como usar o traje numa serenata, numa cerimónia fúnebre, como, quando e que insígnias se usam, como trajar dentro de um local de culto....) ou, ainda, determinando, segundo a tradição, aspectos protocolares de alguns eventos.
 É exactamente por isso que é erróneo confundir praxes com Praxe ou pretender que eventos tradicionais académicos  são Praxe, quando esta apenas prescreve e orienta o estudante no modo como deve estar e proceder nesses mesmos eventos.
A Praxe é, acima de tudo, um conjunto de regras destinadas ao estudante, per si, individualmente[8]
Assim, e resumindo, segundo uma afirmação publicada no grupo "Tradições Académicas&Praxe", "O que se faz DO traje é Praxe, mas o que se faz DE traje não tem forçosamente de o ser".
 
- Então, a sua adesão é livre?
 
 - Totalmente livre, tal como livre é o estudante de trajar ou não - sabendo que o direito a trajar não é definido pela Praxe, porque a Praxe não tem jurisdição para determinar quem é estudante ou não (e o traje é o uniforme do estudante e não exclusivamente de "praxistas").
 Significa que quando o estudante traja, adere implicitamente a um conjunto de normas sobre como esse traje deve ser usado em determinadas situações. Tal não significa ter de filiar-se em praxes ou estar obrigado a participar seja do que for.
Um aluno não é obrigado a usar insígnias, por exemplo, mas sabe que, para as usar, deve trajar e que o uso de insígnia  obedece a regras que deve respeitar;
O estudante não é obrigado a assistir à Serenata Monumental, mas sabe que, lá estando, trajado, deve guardar respeito e silêncio e traçar a sua capa;
O estudante não é obrigado a ir à Bênção das Pastas (cerimónia religiosa), mas, crente ou não, guardará o respeito pelo momento (e local, se caso disso também), usando a capa descaída pelos ombros, usando a pasta com o número de fitas consagrado pela tradição, etc.;
O estudante trajado não é obrigado a participar do gozo ao caloiro, mas sabe que não pode fazer tudo o que lhe apetece, que há limites e deve guardar respeito pelo caloiro, pelos seus direitos como cidadão e estudante;
Um estudante sabe que não é obrigado a usar emblemas na capa, mas pretendendo usar, deve colocar os que a tradição consagra como próprios.
 
Acima de tudo, o estudante, ao trajar, deve respeito à Tradição que a Praxe deve traduzir (o que poucas vezes acontece, se ajuizarmos pelos códigos que por aí circulam), porque, trajado, não apenas representa uma classe e um património cultural, mas porque só assim se dá, também, ao respeito.
Essas regras de etiqueta, de protocolo, de como proceder estando trajado em determinados momentos (e são, até, bastante reduzidos) é o que nós chamamos de Praxe (de lei académica).
 
- Mas há coisas que os códigos determinam que não coincidem com, nem respeitam, a tradição.
 
- Isso são outros quinhentos.
Infelizmente, a quase totalidade dos códigos existentes estão pejados de erros e invenções.
Ora, o que legitima a Praxe, o código portanto, é estar de acordo com a Tradição (e respeitar as leis do país, não esqueçamos). 



Abrimos apenas um parêntesis, para deixar claro o entendimento de Tradição Académica.


TRADIÇÃO - Quando falamos em "Tradição", não estamos a falar daquela que cada um inventa para si ou que certas academias definem como algo próprio (com base em pseudo historicidades sem qualquer fundamento ou precedente estudantil). Falamos da Tradição Académica que é património nacional, historicamente transversal em todo o país (que encontrávamos não apenas nas universidades, mas nos liceus), de matriz coimbrã, é certo, mas que não é pertença apenas da cidade à beira Mondego plantada. Falamos no que é basilar, no que é essência. Damos disso dois exemplos na questão do traje: se sempre foi uniforme dos estudantes desde o liceu e os caloiros sempre trajaram, não é tradição académica que determinada instituição proíba o seu uso a caloiros.
Do mesmo modo que se sempre foi o uniforme dos estudantes, não é lícito determinar que só que, foi praxado pode trajar.
 


Fechamos os parêntesis e prosseguimos. 
 
 

Quando isso acontece, nem sequer podemos considerar Praxe o que é um erro, pois a Praxe  não pode legislar contra si própria, ou seja contra aquilo que lhe dá sustento e fundamentação. Trona-se um "non sense" absoluto.
 
Seja como for, quando as práticas resultam ou estão associadas a regras que as enquadram como aceitáveis (mas estão erradas), ou seja que espelham a Praxe (o código) é plausível que quem está de fora fale globalmente em Praxe para referir quer as práticas quer leis que as permitem ou consentem.
Nesse contexto, e só nesse, compreendemos, quando alguns que insurgem contra a "Praxe" (quando as práticas e as leis se espelham mutuamente).
 
- Então, em que ficamos sobre o que é Praxe, resumindo e concluindo?
 
- Resumindo e concluindo, diremos o seguinte, em formato de artigo de código:
 
Noção e definição de Praxe Académica
 
"Por Praxe Académica se entende o conjunto de regras e normas, suportadas na Tradição Académica, que visam enquadrar os procedimentos, protocolo e etiqueta a observar pelo estudante trajado, na sua participação nas várias actividades e manifestações académicas (exercício da sua cidadania académica).
Por Praxe se entende o conjunto legislado que baliza os ritos e práticas estudantis de cariz tradicional, bem como a hierarquia de relações estabelecidas inter-pares. é, pois o conjunto de regras e procedimentos a observar nas actividades académicas e não essas mesmas actividades."
 
 
Como é fácil de perceber, é todo um novo olhar sobre o termo Praxe, contrastante com o que se foi generalizando (e degradando) ao longo de anos.
Esta definição separa muito objectivamente a prática da norma que a enquadra (ou não). E importa, de facto, e de uma vez por todas, separar o termo Praxe de "praxes". Aliás, se os estudantes se habituassem, antes, a dizer "gozo ao caloiro" certamente que isso contribuiria, ainda mais eficazmente, para uma correcta distinção e separação de águas já demasiado, e constantemente, poluídas.
E faz toda a diferença, ou deveria fazer.




[1] NUNES, António M. - As Praxes Académicas de Coimbra, Uma interpelação histórico-antropológica, in blogue "Guitarra de Coimbra (Parte I)", artigo de 19 de Novembro de 2005.
[2]Segundo o Código da UC de 1957.
[3]Regressando aos conceitos primários de praxe.
[4]Que, nesse mesmo decreto, também o institui como Traje Nacional do estudante português nos liceus, escolas superiores e universidades.
[5]CRUZEIRO, Maria Eduarda - Costumes estudantis de Coimbra, Análise Social, 1979, pp.797-798.
[6]Idem.
[7][7]Op. cit., p.800
[8] Existem, nomeadamente em Coimbra alguns destinados a grupos de estudantes, como são as trupes. Matéria que há muito precisaria de uma discussão séria e revisão profunda.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Notas ao Caloiro de Traje Académico


Por muito que já nos tenhamos detido sobre o Traje Académico, parece que, ainda assim, ou não léem (que é o mais certo) ou preferem fazer de conta que não leram.
A verdade é uma só: o Traje Académico existe apenas e unicamente para identificar o foro estudantil, ou seja identificar a condição do estudante. É um uniforme que pretende identificar e distinguir o estudante de qualquer outro mester. Essa é a sua função genética e primordial.
 
Mas para que o traje seja considerado académico, tem obrigatoriamente de ter por base o seguinte critério: é uniforme de todo o estudante da instituição, seja ele praxista, adventista, comunista, niilista, benfiquista, nacionalista ou, até, apenas parvo. Nunca, por nunca, em função de outra coisa que não seja ser aluno matriculado no ensino superior.
 
E o único merecimento que o estudante tem de demonstrar para trajar passa exactamente pelo seu mérito académico. Se conseguiu entrar no ensino superior, o seu merecimento está precisamente aí atestado e certificado pela única entidade com legitimidade para tal reconhecimento: a instituição de ensino, segundo os critérios de ingresso/candidatura estipulados pelo Ministério da Educação.
 
Significa, portanto, que seja caloiro ou não, o estudante tem direito a trajar.
Significa, pasmem-se as mentes fechadas e doutrinadas na treta, que os caloiros podem trajar. Não diremos "devem", apenas porque o uso ou não uso do traje é algo facultativo. Mas qualquer caloiro que o deseje, deve poder fazê-lo sem quaisquer constrangimentos, pois é um direito inalienável da sua condição de estudante.

Podem, pois, os caloiros trajar, segundo o que sempre, e repetimos, SEMPRE foi tradição, uso e costume em Portugal.
Não existe documento ou prova documental alguma que suporte a ideia de que os caloiros não pode ou não devem trajar. Sempre o puderam fazer, sempre o fizeram.
Muitos, aliás, usavam precisamente o mesmo traje na universidade que traziam dos liceus, onde também se trajava, fosse na altura em que o traje era de porte obrigatório, fosse mesmo depois, quando o traje passa a ser de uso facultativo.
 
Reparem que o Dec. Lei nº 10.290/1924, que procede à nacionalização do Traje Nacional (cuja alcunha é "capa e batina") e que, ao mesmo tempo, torna o seu uso facultativo, deixa bem claro algumas coisas:
 
- confirma a longa tradição da "capa e batina" nos liceus e escolas superiores, com origens na segunda metade do séc. XIX;
- reconhece a "capa e batina" como o traje apropriado ao estudante universitário.
- define o modelo "capa e batina" como Traje Nacional do estudante português, o único, aliás, a gozar desse estatuto;
- NADA DIZ, NADA REFERE sobre os caloiros não poderem trajar - até porque sempre trajaram, pelo que fica patente que o uso do traje NADA tem a ver com praxes ou merecimentos praxísticos.
 
Bem sei, caro leitor, que na sua academia, o seu código diz o contrário, que os mais velhos e os "senhores" mandantes da Praxe vos dizem diferente, que todos seguem a mesma cartilha e chorrilho. Bem sabemos dessa doutrinação cega que, de tantas vezes repetida e praticada (nos últimos 25/30 anos), parece até lógico, especialmente quando a isso adicionam as enganadoras teorias do "merecimento". Mas o erro reiterado não se torna virtude.
Ainda hoje é difícil perceber como se (re)importaram os costumes académicos nos anos 80 e parece ter escapado a tantos esta questão do traje.
Uma vez mais, lamenta-se que, nessa altura, se tenha tão leviana e incautamente copiado sem sequer se ter procurado perceber o que se copiava, retirando as coisas de um contexto que demasiadas vezes se ignorou por facilitismo e economia intelectual.
 
 
Mas pedimos, então, e porque estamos a falar para estudantes do ensino superior (a quem se exige espírito crítico; a quem se exige que o seu saber assente em provas documentais, em factos; a quem se exige a metodologia científica para constrastar e avalizar as teorias), que confrontem essas teorias e doutrinas dogmáticas, com a existência de um precedente histórico, uma Tradição que, na génese da prática, justifique tal.
Peçam aos tais "senhores mandantes da Praxe" que vos (com)provem tais concepções com algo mais do que códigos que eles próprios definem ao sabor daquilo que acham. Peçam-lhes justificação para o que os códigos sobre isso dizem.
 
Como já dizia A. Herculano, sobre factos históricos, "se não houver prova documental e factual de determinada teoria, ela não passa, então, de mito".
 
E como sabemos que não estamos igualmente isentos de ter de provar o que aqui dizemos, apresentamos algumas evidências documentadas (textuais e fotográficas) que provam, indiscutivelmente, que os caloiros sempre trajaram, sempre o puderam fazer (algo que só a partir de finais da década de 1980, em certas novéis academias, foi pervertido - academias onde, recordamos, existe, até, longa tradição académica enraizada nos liceus, contudo ignorada).

 
 Provas Documentais

 
 Comecemos por uma figura de todos conhecida: Antero de Quental, estudante da UC entre 1861 e 1867. Dele, narra-nos Carmine Nobre que, no seu 1º ano, se apresentou trajado e:
 
"Ao atravessar pela primeira vez a "Porta Férrea", Antero de Quental não se apresentou com a clássica timidez do "caloiro"; antes atravessou-a com uma provocante barba ruiva e com uma altivez de veterano respeitado.. Em breve a sua irreverência conquistou o meio académico (...)".[1]
 
Diamantino Calisto recorda o seu tempo de novato (caloiro) dizendo:
 
“Em 1901 – 17 de Outubro, salvo erro -  apresentei-me na Universidade com a minha capa e batina “rota e velhinha” (…) atravessei a “Porta Férrea” sem apanhar o “canelão” a que já me referi, isto é, sem apanhar como “caloiro” que era, pastadas na cabeça e nas costas e pontapés ou caneladas acompanhadas das respectivas assuadas, e sem, tão pouco, já dentro da Universidade, ser troçado”.[2]
 
Alberto Costa (ex Pad-Zé) dizia do seu tempo de novato:
 
“Já então desfrutava de uma certa popularidade (…)  minha audácia de entrar a porta-férrea sem protecção, desafiando o coice segundanista, a descarada resistência que opunha às troças, de que o veterano saía por vezes com trombuda cara de caloiro (…)Para mais, eu era o preferido de uma apetitosa tricaninha do Bêco dos Militares, a quem um lente de Direito “fazia bem”, e que me cosia a capa e batina nas ausências recatadas do catedrático.”[3]
 
Por sua vez, Antão de Vasconcellos narra, nas suas famosas memórias, o episódio de um famoso caloiro, de seu nome “Bica”, num desacato com alguns veteranos:
 
“O Bica tirou a capa e com ella dobrada a meio, como arma de combate, a única de que dispunha, rompeu o cerco e, recuando, disputou palmo a palmo o terreno, até que pôde esgueirar-se com a capa em petição de miséria…..não o apanharam!!” [4]

Também em Barbosa de Carvalho, encontramos a seguinte passagem, referente à exploração do caloiro por parte dos veteranos, a quem se vendia um traje em mau estado ou má qualidade, ainda que exigindo pagamento como se fosse pano de 1ª qualidade:
 
“Já o José Vitorino se abrigou indevidamente á sombra deste principio, impingindo a um caloiro certa batina de má fazenda, muito para lástimas e com buracos, por preço exorbitante e desmedido.” [5]

No In Illo Tempore de Trindade Coelho, atente-se nesta referência a caloiros trajados:
 
 “…porque nos apareceu no 1° ano um fedelhote e formou-se não tendo ainda na cara sinais de barba! Era Além disso muito branquinho, muito coradinho, muito tenrinho e um quase nada louro, e andava sempre com a sua capa e batina muito escovadas e a risquinha do cabelo muito bem feita!”
(...)
“Eu, por exemplo, enverguei uma batina no dia em que cheguei a Coimbra, pus-lhe por cima uma capa – e capa e batina foram elas, que me fizeram a formatura!”. [6]
 
R. Salinas Carvalho refere, quanto a ele, enquanto caloiro (1991-12), o seguinte:
 
“Éramos todos doutores, mesmo em caloiros [para a população] (…)
O nosso traje era a capa e batina, e a farda de cavalaria para o Alvim , louro e garboso cadete, de bicha dourada, e duas estrelas de metal amarelo, de segundanista e o pequeno barrete militar, “taxinho”, sem pala com francelete de verniz prêto". [7]
 
Outro testemunho deveras interessante, sobre os anos de 1890, é-nos narrado por João Eloy, que refere que até mesmo antes de concluído formalmente o acto de matrícula, o caloiro já trajava (ou porque vinha já do liceu onde já usava capa e batina ou porque era das primeiras coisas que o estudante fazia para se apresentar no paço universitário):
 
"O primeiro acto oficial do caloiro perante a Universidade era o "encerramento da matrícula".
Envergando a capa e a  batina, o caloiro ia à Secretaria, e só se considerava matriculado depois de jurar sôbre os Santos Evangelhos defender o dogma da Imaculada Conceição.
Era dos Estatutos e todos juravam com a mesma fé e certeza de cumprir com que, ao sair de casa, se prometera dedicar todo o tempo ao estudo e só ao estudo.
Feito o juramento e esportulados uns tantos réis de propina, tinha o caloiro de pagar a patente [praxe] aos companheiros de casa."[8]
 
A. Nicolau da Costa, que cursou Coimbra na década de 1940, relata o seu 1º dia como caloiro, com 17 primaveras acabadas de fazer, na UC, sendo se sobremaneira interessante verificar que até os caloiros eram chamados de "Senhor Doutor" (exactamente porque todos trajavam por igual, fossem caloiros ou não):
 
"Foi o caso de que, logo no primeiro dia entrei no "Pirata", o velho Joaquim da "Leitaria Académica", a tomar um café.
É bom de ver que a capa e batina novinhas em folha, a "gaucherie" de caloiro, os verdes anos, e a cara nova, logo alertaram o manhoso Pirata, na sua luta constante em evitar que a freguesia lhe fugisse para o "Jesuíta", o tratante que tinha estabelecimento em frente (...).
"O Senhor Doutor, se não quiser pagar agora, paga depois. Cá em casa é assim". E, largando na mesa um grosso volume de papel pautado: "É só apontar aí, que depois paga".[9]
 
Contra factos, meu caro leitor..........................
 
Mas reforçamos:
Com a abolição definitiva  do Foro Académico (1834), sente-se a necessidade de dotar a Universidade de um regulamento disciplinador que não deixe a instituição sem regras. Será, pois, decretado e publicado em Diário da República de 25 de Novembro de 1839, o regulamento que, concomitantemente, institui a famosa "Polícia Académica". O conhecido "Decreto Sanches", tratava-se, afinal, do verdadeiro Regulamento Disciplinar da UC (que, pro erro, se continuou a chamar de "foro académico").
Este regulamento possuía poderes mais amplos que os comuns regulamentos disciplinares em vigor nos liceus, seminários ou colégios particulares, servindo de instrumento de enquadramento disciplinar e social.
Este regulamento dotava a UC, das seguintes prerrogativas (que a Polícia Académica se encarregava de executar):
  • Vigilância e manutenção da ordem em todos os espaços do Paço das Escolas Gerais e suas dependências;
  • Inspecção dos uniformes docentes e discentes e dos oficiais administrativos;
  • Policiamento nocturno das ruas, casas d ejogo clandestino, prostíbulos e tascas;
  • Instauração de processos disciplinares por desrespeito, agressão, roubo e homicídio;
  • Aplicação de penas através de acórdãos ratificados pelo Conselho de Decanos.
 
Se já antes não existia qualquer menção, também este regulamento nada diz quanto aos caloiros não poderem trajar. Tinham de o fazer, tal como os demais colegas mais velhos. Nenhum regulamento alguma vez distinguiu qualquer hierarquia entre estudantes. Tal sucedeu quer quando o traje era de porte diário obrigatório, quer quando a obrigatoriedade do seu uso ficou confinado à alta (perímetro da universidade), quer mais tarde, após o seu uso se tornar facultativo.

Todos trajavam e deviam observar as mesmas regras. Ponto final.
 
Como já o mencionámos, o  decreto 10290 de 12 de Novembro de 1924 (chancelado pelo então Ministro da Instrução Pública, Manuel Teixeira Gomes) que reconhece, simultaneamente o modelo "capa e batina" como Traje Nacional do estudante português e torna o seu uso facultativo, nada refere quanto ao caloiros ou estudantes proibidos de o usarem:
 
 "Considerando que o Estatuto Universitário de 6 de Julho de 1918, determinando no seu artigo 101.º, § único, que não é obrigatório qualquer traje académico para os estudantes, implìcitamente reconhece o uso facultativo de capa e batina para os alunos de ambos os sexos;
 Considerando que se tem sempre reconhecido a capa e batina como traje escolar dos que freqüentam as Universidades, escolas superiores e liceus:
Usando da faculdade que me confere o n.º 3.º do artigo 47.º da Constituição Política da República Portuguesa:
Hei por bem decretar, sob proposta do Ministro da Instrução Pública, o seguinte:
Artigo 1.º É permitido aos estudantes de ambos os sexos das Universidades, liceus e escolas superiores o uso da capa e batina, segundo o modêlo tradicional, como traje de uso escolar. (...)".
 
 
 
Provas Fotográficas
 
 
CALOIRO TRAJADO sob trupe
(foto diurna, pois era para publicar em Bilhete Postal Ilustrado)
in Illustração Portugueza, II Série, Nº 302, de 04 Dezembro 1911, pp.711
(Hemeroteca Municipal de Lisboa).
 
Uma trupe e o CALOIRO TRAJADO
- Coimbra -P Borges, 1911 BNP, PI-5882-P
 
Tonsura a um CALOIRO TRAJADO,
em desenho mural na Real República Rás-Teparta

Simulacro de um rapanço e de uma ida às unhas ao CALOIRO TRAJADO.
(os estudantes posando para Bilhete Postal Ilustrado) ca. 1911

Trupe praxando um CALOIRO TRAJADO
In Estudantes de Coimbra e a sua Boémia,
 Ilustração, Ano 6, Nº 141, de 01 Novembro de 1931, p.22
(Hemeroteca Municipal de Lisboa).

Tonsura de um CALOIRO TRAJADO por elementos de uma trupe.
Pintura mural de finais da década de 1950 que existiu na extinta República dos Paxás


CALOIRO TRAJADO protegido pela pasta do veterano,
escapando, assim, ao canelão.
In "Estudiantes de Coimbra",
Revista Estampa Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p3

CALOIRO TRAJADO alvo de praxe (no que parece ser um rapanço)
In "Estudiantes de Coimbra",
 Revista Estampa Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p.3

Representação do CALOIRO TRAJADO sob domínio do doutor.
In Leis extravagantes da Academia de Coimbra
ou código das muitas partidas
de Barbosa de Carvalho (1916), logo na 1ª página.

Quartanista Grelado de Direito(à esquerda) e
Apadrinhamento de um CALOIRO TRAJADO (à direita).
 Pintura de Varela dos Reis, feita na República dos Paxás, anos 50.

CALOIRO TRAJADO, sob trupe, nos anos 40.
 CALOIRO TRAJADO, durante um julgamento (1940)
Pequena BD onde se retratam estudantes a interpelarem um CALOIRO TRAJADO
In "O Caspa e Batina" - Jornal da Mocidade Portuguesa da 1ª série, 1938, p.4

 
Conclusão
 
 
Dirão alguns que o traje que usam na sua instituição não é o modelo "capa e batina". E nós responderemos que, apesar de tal, pretende afigurar-se e equiparar-se no seu significado e função (caso contrário nem lhe chamariam traje académico).
 
Assim sendo, mesmo tratando-se de um outro modelo, deve seguir o que a Tradição estipula para o traje académico, o seu âmbito, função, propósito e significado.
 
Para ser traje académico, com a pretensão de ser o traje representativo dos estudantes de determinada instituição, tem de o ser de TODOS os estudantes. Ora ser estudante da instituição apenas exige que o aluno esteja matriculado. E esse reconhecimento só a instituição tem legitimidade para o fazer.

Se é traje académico, ele não pode fazer acepção de pessoas, muito menos estar vedado seja a quem for em função de praxes.

E mais: muito menos ser vedado o seu uso aos novos alunos, em razão de patranhas inventadas em nome da Praxe.

A Praxe nunca preconizou tal apartheid nem tal acefalia colectiva.
 
 
Zé Veloso, autor do blogue "Penedo d@ Saudade",
cursou Coimbra nos anos 50 e 60 (como aluno de liceu e universitário), assim como o Porto.
 
 

O Traje é Traje Académico e não traje praxístico. Serve portanto para quem quer praxar, como para quem é praxado; para quem não quer praxar ou ser praxado. É uniforme estudantil, apenas e só.
O traje é para todos, sob pena de não ser Traje Académico, mas um fato para alguns palhaços darem livre expansão à sua mediocridade.
 
Claro está que, alguns começarão, e bem, a questionar (mesmo que com dificuldade, ainda, em engolir tal) a razão de ser de certas pseudo-cerimónias do "traçar da capa" que assentam nesse equívoco e erro crasso que é defender que os caloiros não podem trajar excepto a partir da noite de Serenata Monumental.
 
O CALOIRO PODE TRAJAR?
PODE, seja a capa e batina ou outro traje que se diga equiparado, Académico, portanto.
Defender o contrário é anti-Praxe, anti-Tradição, uma perversão e deturpação total daquilo que é a Praxe Académica, sua cultura, história e diegese.
 
Apresentámos os factos, comprovámo-los documentalmente, deixámos suficientemente claro quais os pressupostos correctos.
 
Pode agora o leitor confrontar isso com o tipo de doutrina e argumentação que se prega na sua instituição.




[1] NOBRE, Carmine - Coimbra De Capa e Batina, Volume II. Ed. Atlântida, Coimbra, 1945, p.65.
[2] CALISTO, Diamantino – Costumes Académicos de Antanho, 1898/1950. 3º Milhar, Imprensa Moderna. Porto, 1950, pp. 71-72
[3] COSTA, Alberto – O Livro do Doutor Assis, 9ª edição, Livraria Clássica Editora. Lisboa, 1945, p. 35
[4] VASCONCELLOS, Antão – Memória do Mata-Carochas, in meo tempore – Empreza Litterária e Typográphica editora. Porto, 1906, p. 380
[5] CARVALHO de, Barbosa - Leis extravagantes da Academia de Coimbra ou código das muitas partidas. Livraria Cunha. Coimbra, 1916, p.59
[6] In Illo Tempore, Estudantes, lentes e futricas. Livraria Aillaud & Cª. Paris-Lisboa,1902. Citações extraídas das páginas 53 e189, respectivamente.
[7] CALADO, R. Salinas – Memórias de um estudante de Direito, Coimbra Editora Ldª, 1942, p.140
[8]ELOY, João - Boémia Coimbrã, A Vida Académica de Coimbra nos fins do século passado. Ed. Minerva, 1938, pp.25-26.
[9]COSTA, Nicolau A. - Boémia Coimbrã (dos anos 40), Ed. Athena, Coimbra, 1975, p.18.