O que se sabe do Gorro Académico? Qual a sua vigência, origem e diegese?
Muito daquilo que sobre ele se sabe, acaba, contudo, por nem sempre aprofundar a questão.
O amigo João Baeta desde logo se mostrou diligente em trazer à liça alguns dados bibliográficos sobre o assunto, e desde já aqui reproduzimos o conteúdo:
«GORRO - Cobertura da cabeça, feita de pano preto e de forma cónica, usada pelos estudantes de Coimbra, com a capa e batina, desde que, em 1674, foi proibido o uso do chapéu. Geralmente, caia até ao ombro, como pode ver-se numa fotografia do capigorrão Antônio Nobre. Alguns estudantes usavam-no para guardar sebentas e outro material escolar.
Em 1824, o Reitor da Universidade, Diogo Furtado de Mendonça, fez publicar um edital mandando acrescentar as batinas, que eram muito curtas, e proibir o uso da gravata e colarinhos (batinas fechadas). O, então, estudante de Medicina, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara escreveu a propósito, o seguinte soneto:
Que cobre o rabistel aos estudantes!
Agora, sim senhor! Batinas dantes
Eram saiotes feitos a sarina...
Deve ser festejada com descantes .
Em Coimbra, Paris, Londres e Nantes
Na Arábia, Pérsia, Argel, Meca e Medina.
Supri-los era bom, em cabeleiras
Que fazem uma vista formosíssima!
Eu quero uma regforma reverendíssima
Em um grande chapéu d´abrir fileiras!...
Mais tarde, quando o movimento de usar a batina aberta, se tornou irresistível, o Reitor D. João de Alarcão Osório determinou que o uso da capa e batina se mantivesse, porém, era obrigatório gravata e colete pretos. Na cabeça só podia ser usado o gorro.
O gorro contribuía para a valorização estética estudantil, como o demonstra a seguinte quadra do folclore coimbrão:
A beleza do estudante
E tal que, por ela, morro!
Gorro e capa, capa e livro,
Livro e capa, capa e gorro.[1]»
«A indumentária própria do estudante de Coimbra iniciou-se no século XVI. Capa e longa carapuça que veio até aos meus tempos. Corre um retrato de António Nobre com a longa gorra negra a descer sobre os ombros. Os mestres a usaram até tarde, às vezes servindo de saco de livros.

CAPIGORÃO – Estudante que ainda usava gorro quando já a maioria o não usava. O gorro deixou de ser usado à volta de 1920. António Nobre foi um deles.[4]
Adendamos o que os especialistas Félix O. Martin Sarraga e Rafael Asencio Gonzaléz nos dizem na sua obra, “Diccionário Histórico de Vocábulos de Tunas Y Estudiantinas, Así Como de Escolares del Antíguo Régimen"[5], nas páginas 46 e 111, respectivamente:
CAPIGORRISTA: Aunque ya en 1604 Jean Palet[6] lo tiene como sinónimo de “capigorrón – Valet d’écolier (servente de escolar)”, su primera definición la aporta César Oudin[7] em 167 diciendo “capigorrista ou capigorrón, Vn écolier qui porte le manteau et le bonet, et non pas la robbe longue, valet d’écolier ». No obstante es más tardia la primera vez que aparece este vocablo en el Diccionario de Autoridades es en 1726 dice « es voz vulgar, lo mismo que capigorrón”.
Supone el escalón más humilde de toda la família estudiantil y se halla compuesta por una heterogénea bolsa de criados, como fâmulos o familiares de los Colegios o en lujosas vivendas com servidumbre que tenían los estudantes “generosos”, recebendo entonces el nombre de “amadrigados y devotos de la sopa conventual”,razón por la cual recebían también el nombre de sopistas, brodistas, caldistas y estudiantones, que sobrevivían realizando algún oficio o trabajo esporádico y de otros recursos menos honestos, como la mendicidade y pequeños actos dilectivos. También conocidos como capigorristas, sopalandas o lameplatos [lambe pratos] (despectivo en Valladolid). Es importante recordar que las constituciones salmantinas [Salamanca] de 1538 prohibían a los estudantes usar gorras o caperuzas pero, em atención a su pobreza, se exceptuaba a “los que sirvieren a outro”.
Desde 1561 capigorrones y gramáticos podían llevar hábitos seglares [seculares], capas y gorras. Posteriormente la Cédula Real de agosto de 1608 permitió a todos los estudantes de Salamanca, Valladolid y Alcalá acompañarse de cuantos criados estudantes quisieren, pero ordenando que éstos no llevaran sotna y manteo sino ferreruelos, sotanillas largas y cuellos bajos. Tampoco los Estatutos de la Universidad vallisoletana del siglo XVI e olvidan de la existência de universitarios humildes de escasos recursos, para éstos se dice “…permitimos que los estudantes muy pobres y los que sirvieren, com licencia del Rector, puedan traer caperuza o gorra o capa, y no de outra manera”.
GORRA DE FUELLE: Sombrero usado pro estudantes de mediados del siglo XIX que el Diccionario de Autoridades definió por primera vez en 1734, como “gorra” diciendo que es “cierto de cobertura de la cabeza hecha de seda o paño, llena de pliegues de arriba abaxo para ajustarla a la cabeza”.
GORRÓN: El Diccionario de Autoridades de 1734 lo define por primera vez como “estudiante que en las Universidades anda de gorra y de esta suerte se entremete a comer sin hacer gasto”. La misma fuente también aporta que así se llama al “hombre perdido y vicioso que trata com las gorronas y mujeres de mal vivir”. Ver Sopista.”
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“Não era raro que os filhos das famílias mais abastadas levassem jovens no seu séquito, sensivelmente da mesma idade, que lhes servissem simultaneamente de companheiros, criados, guarda-costas, moços de recados... O pagamento consistia, muitas vezes, apenas no custeamento das propinas dos jovens, oferecendo se lhes, assim, uma oportunidade de melhorarem as suas condições de vida e ascenderem na escala social. Importa não esquecer que, numa sociedade profundamente iletrada, a posse de alguns conhecimentos, ainda que rudimentares (em especial no âmbito do Direito) eram uma fortíssima mais-valia no acesso a cargos na administração pública. Não raramente, os próprios jovens chegavam a oferecer se para servirem de criados a troco de alojamento e comida, contraprestando pequenos serviços, como o transporte dos livros, a marcação do lugar nas aulas, a compra de mantimentos, o registo de apontamentos, etc. Acontecia, ainda, que alguns manteístas menos previdentes ou mais gastadores se viam na necessidade de entrar ao serviço de outros estudantes mais abastados em troca de comida ou roupa, passando, ainda que temporariamente, a capigorrones. Estes distinguem se dos seus congéneres dos colégios por estarem ao serviço de apenas um estudante, ao passo que os familiares estavam ao serviço de toda a comunidade colegial.
Dissemos que, regra geral, o pagamento era o valor das propinas, mas não o do hábito (traje). Sendo o manteo o hábito mais comum do escolar, ficava fora das possibilidades dos menos favorecidos, pelo elevado custo de confecção. Por autorização dos reitores, estes alunos eram admitidos aos gerais ou às aulas com um hábito ligeiramente diferente: o ferreruelo (em vez do manteo), uma capa de tecido menos nobre e mais curta; e a gorra, em vez do bonete: capa y gorra – capigorrista. Assistindo às aulas lado a lado com os respectivos «amos», tiravam apontamentos e copiavam livros e lições (fazendo lembrar o sebenteiro de Coimbra). Era frequente os capigorrones obterem melhor aproveitamento do que aqueles a quem serviam, chegando, inclusivamente, a dar lhes explicações. Mais de um destes foi convidado a ficar a leccionar na universidade.
A propósito desta diferenciação no hábito e das funções do gorrón, na peça El Mágico Prodigioso, na primeira didascália, Calderón de la Barca escreve:
“Entram Cipriano, vestido de estudante, e Clarín e Moscón, de gorrones, com alguns livros.
Natalia Fernández, na edição comentada da peça, explica:
“Os gorrones eram os criados que assistiam gratuitamente às aulas com os seus amos, distinguindo se pela capa e gorra.[9]“.
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Rudolf Schultze, no artigo Die Universitat Coimbra (1865), diz que os estudantes “…andam em cabelo e o gorro que quase sempre trazem na mão e que era antigamente um saco, serve-lhes de chapéu, quando faz muito calor”[12]; Wihelm Wattembachi, na obra Eine Ferienreise nach Spanien und Portugal (Berlim, 1869), refere que os estudantes têm – em vez de chapéu, um saco de setim preto, semelhante ao gorro catalão.
Acha que se eles andam em cabelo, é porque o tal saco os incomoda[13]; Catharina Carlota, Lady Jackson, em Fair Lusitania (London, 1874), informa-nos que – os estudantes têm uma espécie de carapuça que lhes cobre as cabeças, á semelhança das nossas opas azúis (blue coat boys)[14].
No tempo de Trindade Coelho (1880-1885), “o gorro era já raro pelas costas abaixo, ou caído em cima da orelha. A maior parte andava em cabelo; alguns traziam um pequeno boné preto como os de viagem”[15].
Para L. Passarge, em Aus dem Neu tingen Spanien und Portugal (1884), os académicos – andam quase sempre em cabelo, não mão a carapuça em forma de saco, e que foi originalmente uma sacola de mendigo[16].
Joaquim Martins de Carvalho, n’O Conimbricense, de 15 de Outubro de 1898, escreveu que enquanto uns estudantes “usam gorro comprido, como o regulamento recomenda, outros trazem gorro curto, e ainda outros bóinas, sendo algumas azúis”.
Ogorro, que quase desapareceu, “viria a ressurgir pelos anos 50 muito reduzido, tombando também para cima das orelhas”.
Pelo Código da Praxe Académica de Coimbra (1957), o uso do gorro da praxe é facultativo, o qual não tem borla nem termina em bico”.
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Mas nada como reproduzir o que a este propósito nos diz o Professor Doutor António M. Nunes (historiador), ele que é o maior especialista em matéria de trajes e protocolo académicos, e cuja recente obra[17]deveria ser de leitura obrigatória (sobretudo para certos praxistas que gostam de inventar origens e significados para gorro, traje, insígnias e afins – com que estrumam a formação dos caloiros em matéria de praxe e Tradições Académicas).
Adendaremos algumas imagens (e suas legendas), resgatadas do blogue Virtual Memories[18], entre outras que também fomos recolhendo.
O GORRO ACADÉMICO
“Introdução
(…) As questões apresentadas são directamente influenciadas por uma visão da indumentária corporativa conforme com as regras de descrição, hierarquização e detalhe próprias da uniformologia militar. Anteriormente ao século XIX, a indumentária consagrada pelas ordens religiosas monásticas, irmandades, confrarias, universidades e Igreja Católica referenciavam as peças ou conjuntos, distinguiam os contextos de uso, indicavam algumas proibições, mas não descreviam com o pormenor próprio dos regulamentos dos séculos XIX e XX, não indicavam as dimensões, não apresentavam os desenhos de apoio à tomada de medidas e confecção e as referências ao aspecto morfológico eram muito genéricas.
Pode dizer-se que são as grandes reformas políticas europeias que na sua vontade de refrear o poder detido pelas instituições católicas conduzem à abolição dos antigos trajes académicos na Europa (França) e na América, à sua reforma total ou parcial, ou à sua substituição por indumentária próxima de modelos militares (caso das grandes escolas politécnicas francesas) e judiciários (escolas superiores italianas brasileiras e espanholas).
Dois séculos antes das revoluções liberais, a reforma católica nos territórios ingleses e germânicos já tinha provocado alterações na indumentária académica. A reforma anglicana ficará associada ao boné académico professoral conhecido por “Tudor Bonnet”, e nas universidades germânicas e suíças assistiu-se a uma generalização da toga e da gorra luteranas. No caso de Coimbra, nenhum dos antigos chapéus dos estudantes foi oficialmente abolido (conquanto D. João III tenha proibido sem sucesso os sombreiros). Os barretes redondos e quadrados coexistiram com o gorro de pano e com os chapeirões de feltro das ordens monásticas que tinham na cidade os seus colégios). Toda esta variedade acaba em 1834, com a extinção das ordens religiosas, prevalecendo doravante o gorro, peça com presença pública visual desde ca. meados do século XVIII, que por seu turno começará a rarear na década de 1880. Quando o porte obrigatório diário do traje académico foi abolido pelo governo central, em 1910, os estudantes e lentes de Coimbra sabiam que o gorro fazia parte do conjunto, mesmo que tal não se tenha escrito.
I-Breve panorama ocidental
Em grande parte das universidades e escolas superiores politécnicas europeias os estudantes usam coberturas de cabeça associadas à sua identidade e às tradições nacionais, independentemente deste tipo de chapelaria estar associado à existência de indumentária corporativa.
Nas escolas superiores da Suíça, Áustria, Alemanha, Lituânia, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia (Studentmossa), Polónia a cobertura de cabeça unissexo mais usada nos grandes momentos do calendário festivo estudantil é o boné de pala, oriundo da tradição militar oitocentista (Ver AQUI e AQUI )
As goliardias masculinas de tradição germânica costumam participar nos grandes desfiles com uniforme à cadete, o qual inclui uma barretina de pano, redonda, ornamentada e agaloada (Ver Uniforms andtraditions of german students fraternities).
Esta barretina, de modelo oitocentista, ainda hoje é usada pelos alunos portugueses do Colégio Militar, e entre as décadas de 1890-1920 teve algum uso entre os estudantes liceais portugueses, especialmente em Lisboa e em Évora. Na gíria, o pillbox hat é conhecido por tacho ou tachinho.
Em Itália, os estudantes preferem o chapéu à Robin Hood, de design neo-gótico (La Feluca Goliardica), generalizado por alturas do oitavo centenário da Universidade de Bolonha.
Em algumas universidades inglesas, caso de Oxford, a toga ordinária dos estudantes do sexo masculino é usada com o barrete preto de copa quadrangular e borla franjada (Mortar Board). Em inícios do século XX foi criado um gorro de pano mole para as estudantes (Oxford Ladies Cap). Tem design neo-renascentista, com quatro pontas abertas sobre o crânio e uma virola pregada na zona do pescoço.
Nas universidades espanholas não há conhecimento do uso de chapelaria estudantil. O porte obrigatório do traje académico multissecular foi oficialmente abolido na década de 1830, estando documentado que desde os últimos anos do século XVIII os estudantes tinham substituído o antigo bonete de quatro picos pelo sombreiro chambergo, um bicórnio napoleónico com os bicos salientes sobre as orelhas. Os membros das tunas/estudantinas usam desde o século XIX um bicórnio de feltro preto de tipo napoleónico, generalizado desde os anos da guerra peninsular. Hoje em dia é raríssimo ver algum tuno espanhol com este chapéu. Muito raramente, poderemos observar nalguns tunos de tradição hispânica presenças pontuais do bicórnio com colher e garfo e do bonete de picos, caso da Tuna da Universidad Mayor Nacional de San Marcos/Peru (Ver AQUI).
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Presidente e Vice-presidente da Estudiantina Española que esteve em Paris en 1878. (Fonte: Ilustración Española Y Americana Ano XXII, nº XII, de 30 Março 1878, p213) |
II-Estabelecimentos de ensino superior portugueses
A partir de finais década de 1980, comissões de estudantes de diversas universidades e institutos superiores politécnicos aprovaram trajes corporativos com ou sem chapelaria associada. Estão registadas situações em que a cobertura de cabeça está associada a um traje de estudantes (Universidade do Minho, Universidade da Beira Interior, Universidade do Algarve, Instituto Politécnico de Leiria, Instituto Politécnico de Viseu, Instituto Politécnico de Tomar, Instituto Politécnico de Santarém, Instituto Politécnico de Castelo Branco, Escola Superior Agrária de Coimbra) ou funciona como adereço de tuna (cartola, Universidade de Aveiro; chapéu bolonhês, Infantuna, Viseu).
Nas universidades e escolas superiores portuguesas onde prevalece o uso da capa e batina, os estudantes de ambos os sexos andam em mais de 97% das situações conhecidas sem qualquer cobertura de cabeça. E a Universidade de Coimbra não constitui excepção. Ali, o antigo gorro de pano preto poderá ocasionalmente ser avistado no inverno, em noites friorentas, mas o mais certo é os seus/suas raros(as) detentores (as) não o tiraram do bolso. Sem exagero, pode considerar-se uma peça do enxoval académico praticamente caída em desuso, ergonomicamente pouco sedutora, quase inexistente no arsenal de fotografias disponíveis na internet (onde prevalece despoticamente o anglo-saxónico “Students Icon”) e invisível nos catálogos das casas do pronto-a-vestir.
III-Gorro e gorra
O gorro é uma cobertura de cabeça, de radicação masculina, militar e civil, confeccionada em forma de saco ou manga, de comprimento variável, em pano ou croché. Em Portugal, o gorro popular é mais conhecido por barrete ou garruço nos meios campesinos, piscatórios e tauromáquicos. Foi uma cobertura de cabeça amplamente generalizado no século XIX e no primeiro quartel do século XX entre agricultores, cavadores, campinos, lenhadores e pescadores da orla litoral[19]. O modelo popular era confeccionado em pano preto, verde ou vermelho, com uma orla em torno do crânio e remate de borla. Na tradição popular espanhola, o gorro é conhecido por barretina, com dobra preta e corpo vermelho, sem borla. Os gorros ibéricos eram expressivamente longos nos séculos XVIII e XIX, tendo encurtado na passagem para o século XX. Usavam-se tombados pelas costas, lançados para o lado direito ou esquerdo ou com a ponta na direcção da testa. Dado a ter em conta, nas figurinhas populares dos presépios montados nos finais do século XVIII, o gorro masculino é por assim dizer inexistente.
Na Catalunha, o gorro popular ficou associado à ideologia republicana e à luta contra o centralismo de Madrid, tendo sido comparado com o simbolismo do barrete frígio.
A gorra pode ter as formas de boina, de boné e de carapuça. No geral possui copa afeiçoada ao crânio, podendo comportar palas, rebuços, virolas e borlas.
Estas coberturas de cabeça obedeciam às regras de etiqueta das demais coberturas de cabeça masculinas quanto à forma de descobrir-se, cumprimentar, entrar em determinados recintos e estar presente em determinadas cerimónias.
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Quatro maneiras de usar o gorro/barretina em Espanha |
IV-Chapelaria estudantil ibérica estatutária
Nas universidades da Península Ibérica, bem como nas universidades católicas integradas nos territórios coloniais (México, Lima, Manilla) foram consagrados nos estatutos dos séculos XV-XVII-XVIII dois tipos de coberturas de cabeça. O piléus quadradus ou barrete/bonete armado de quatro arestas/picos e o pileus rotundus ou barrete/bonete redondo. O primeiro tinha base circular, era armado em cartão e forrado de tecido. A copa ostentava quatro arestas que podiam ser pontiagudas, três cristas e uma borla central. O segundo tinha base circular, ilharga cilíndrica e copa igualmente circular, podendo ser rematado com quatro cristas e borla central. Estes barretes não tinham uma conotação religiosa católica específica. Eram chapelaria de uso comum entre estudantes universitários, professores, juízes, advogados, padres e alunos dos seminários católicos. Salvo determinação em contrário eram estofados e forrados a preto, pois as cores só eram admitidas a partir do momento em que se tomavam os graus académicos.
O barrete/bonete quadrado tem abundantíssima iconografia desde o século XVI, não havendo dúvidas quanto à evolução da sua morfologia, confecção e ornamentação. Apenas dizer, que os chapeleiros franceses dos séculos XVIII e XIX inventaram uma variante deste barrete que se podia fechar, até ficar totalmente espalmado, que com um ligeiro toque de mão se voltava a abrir.
Uma variante destes dois barretes é o modelo poligonal de seis e de oito faces, mantido nas universidades espanholas, que era também o barrete dos advogados portugueses, espanhóis e franceses, bem como de algumas comunidades judaicas. Era a cobertura dos professores da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que passou em parte para a Universidade do Porto, estando ao presente caído em desuso.
Fora dos contextos cerimoniais requeridos pela etiqueta palaciana, os estudantes estavam autorizados a usar gorras de pano dentro de casa e chapéus de aba larga nos passeios, caçadas e viagens.
Estudantes de condição social elevada e bolsa desafogada podiam instalar-se com cavalos, carruagem, criados, usando padrões de seda e loba com mantéu grande e chapéus armados. Estudantes civis de humilde condição ou em situação económica vulnerável usavam hábito talar de lã, em vez do mantéu grande um meio mantéu e no lugar do barrete o gorro. Em Espanha, os capigorristas/capigorrones ficaram associados a uma condição pouco prestigiada de serviçais dos estudantes afortunados e a andarilhanças pelas portarias dos mosteiros à hora da distribuição da sopa.
Por conseguinte, entre os estudantes civis, havia-os de loba/mantéu/barrete e havia-os de loba/capa/gorro.
Percorrendo os estatutos e regulamentos que regeram a UC, constatamos:
· nos Estatutos Manuelinos, fala-se apenas na interdição de capuzes e barretes de cores amarelas e vermelhas.
· pela Provisão de 1539, o rei D. João III dispõe que os estudantes “Nem poderão trazer barretes doutra feição senão redondos.
· Nos Estatutos de 1597, com matéria inalterada nos de 1653, os estudantes podem trazer “os chapéus e barretes forrados”. “Não poderão trazer barretes de outra feição, senão redondos ou de cantos; nem carapuças, senão as que trouxerem em tempo de dó [luto], no tempo limitado (…)”.
-Os Estatutos de 1772, 1901, 1911, 1918, 1926, 1930 e 1988, não integram disposições sobre o modo de vestir dos estudantes.
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Estudante da UC no séc. XVIII. |
Na segunda metade do século XVIII, o gorro de pano seria a cobertura de cabeça mais usada pelos estudantes e docentes civis, sendo embora de ressalvar que não era fácil de meter o gorro nas cabeleiras postiças. O Palito Métrico regista estudantes com vestes de baeta preta “cui longa cabeças/ Carapuça cobrit, touticique passans/Pendurata retro per costas andat abaixo”. O texto não poderia ser mais claro quanto ao porte generalizado do gorro comprido, cuja manga pendia pelas costas. Quase um século mais tarde, Borges de Figueiredo indica que “A batina e a capa, e ainda o gorro, são o traje obrigatório do estudante” (Coimbra antiga e moderna, 1886). Porém, à semelhança de todos os demais cronistas, nada pormenoriza sobre a morfologia desta peça de vestuário, dimensões e índices de uso quotidiano.
Para a mesma década, o antigo estudante de Direito José Trindade Coelho (In illo tempore) indica que a maioria dos alunos universitários da sua geração andava em cabelo, quer dizer, na década de 1880 tinha-se generalizado na Academia de Coimbra a moda de andar com a cabeça descoberta. Esta moda, com alguma demora, foi passando aos liceus onde também começara a ser usada a capa e batina, casos de Santarém e de Évora.
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Estudantina de Coimbra em 1888, na qual figura vários tunos com gorro. |
O gorro académico cai em desuso. A criação do traje académico feminino nos liceus, nos anos da Grande Guerra, conquanto seja um importante sinal de feminização, não apresenta coberturas de cabeça.
É à margem dos álbuns oficiais que vamos encontrar nalguns liceus e na Universidade de Coimbra o recurso a coberturas de cabeça não autorizadas para o conjunto capa e batina. Nos finais da década de 1880 (1888), o jovem caloiro de Direito António Nobre causa sensação por aparecer trajado com um longo gorro e farfalhudo laçarote. Os seus amigos do grupo litérario Boémia Nova aparecem com o tachinho (Alberto de Oliveira) e com o fez (António Homem de Melo), provocando tórridos rumores. Tachinho que também se vê no liceu de Lisboa e no liceu de Évora.
V-Descrição
O porte do gorro académico de tipo conimbricense está referenciado em fontes escritas desde o século XVIII e em fontes iconográficas e textuais (século XIX). Foi usado por estudantes e lentes e após a feminização do ensino superior deve ser considerado um adereço unissexo[20]. É tradicionalmente confeccionado em pano preto de lã de bom padrão. O modelo antigo era costurado em forma de cilindro, com uma costura lateral. No interior, era forrado com uma tira de tecido preto com cerca de dois dedos de altura. Quanto ao comprimento, comparando as gravuras e fotografias do século XIX com o regulamento do traje académico publicado pela reitoria do liceu de Santarém, pode indicar-se com elevado grau de rigor uns bem contados 50cm. A extremidade era rematada de forma arredondada e sem aplique de borla. Em torno do crânio levava uma virola sem galão.
VI-Função
Até à década de 1870 o gorro académico foi considerado em Coimbra uma cobertura de cabeça socialmente distinta e um saco escolar de guarda e transporte de objectos pessoais como livros, armas, comida, tabaco e materiais de escrita.
Na actualidade os chapéus e gorras dos estudantes europeus são amplamente usados e estão associados a um intenso comércio de fitas, emblemas, crachás e pins. Nada disto acontece com o gorro académico de tipo conimbricense, de além de muito difícil de ser visto, não é dado a conhecer aos estudantes Erasmus nem aos alunos dos cursos de férias.
Embora não seja correto escrever que o gorro esteve completamente extinto na UC entre 1880-1940, a verdade é que caiu em desuso e contar-se-iam pelos dedos da mão os estudantes que o terão usado nestas décadas. Contudo, o cinema faria ressuscitar o gorro. Em maio de 1943 o realizador António Lopes Ribeiro filmou cenas de estudantes em Coimbra para integração no filme Amor de Perdição. Pretendia-se reconstituir imagens e indumentária da época em que o herói camiliano Simão Botelho teria cursado Leis na Universidade de Coimbra. O ensaiador do TEUC, Paulo Quintela, e alguns estudantes aconselharam Lopes Ribeiro e alguns alunos participaram como figurantes nessas filmagens. Foi estão reconstituído um traje e um gorro com pouco rigor morfológico (muito aceitável, se comparado com a fantasia que são o meirinho e os archeiros da Universidade), e o sucesso de bilheteira do filme influenciou decisivamente a ressurreição do gorro académico entre alguns estudantes de Coimbra (minutos 12 a 14, ver AQUI) .
É esse modelo “amor de perdição” que ainda hoje se confeciona e vende."
Sugerimos, igualmente, uma visita ao Museo Internacional del Estudiante, cuja colecção é riquíssima, dedicando uma parte do seu vasto cervo à indumentária estudantil (AQUI)
[1] Fernando Falcão Machado, 1986:42/43.
[2] Egas Moniz, 1950:15.
[3] Grande Diccionario Portuguez (1873) Domingos Vieira, Volume II - p. 92.
[4] Fernando Falcão Machado, 1986:19.
[5] SARRAGA, Félix e ASENCIO, Rafael - Diccionário Histórico de Vocábulos de Tunas Y Estudiantinas, Así Como de Escolares del Antíguo Régimen, TVNAE MVNDI, Gráficas Minerva de Córdoba S.L., España, 2014.
[6] PALET, Jean – Dictionnaire Copieux de la Langue Espagnole et Française. Mathieu Guillermot. Paris, 1604, pp. 66.
[7] OUDIN, César – Thrésor des deux langues française et espagnole. Marc Orry. Paris, 1607, pp. 112.
[8] QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal, de Eduardo Coelho, Jean-Pierre Silva, João Paulo Sousa e Ricardo Tavares. Euedito, 2011, pp. 50-51.
[9] CALDERÓN – El Mágico Prodigioso. Ed. e notas de Natalia Fernández, p. 69.
[10] LAMY, Alberto Sousa – A Academia de Coimbra, 1537-1990. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª Edição, 1990, pp. 657-658.
[11] In Memórias do Mata-Carochas, 36-37.
[12] João Jardim de Vilhena, ob. Cit., vol. II, pág. 46.
[13] Idem, vol. II, pág. 165.
[14] Idem, Vol. I, pág. 64.
[15] In Illo Tempore, 7ª edição, 239.
[16] João Jardim de Vilhena, ob. Cit., vol. II, pág. 125.
[17] NUNES, António Manuel - Identidade(s) e moda, Percursos Contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses. Bubok Publishing Ldª, 2013
[18] Também do António M. Nunes.
[19] Impossível, por isso, colocar a origem do gorro académico nas vestes dos campónios, como alguns pretendem insensatamente fazer crer, dado que o gorro estudantil é anterior.
[20] Aqui, descordaremos parcialmente, se atentarmos que a etiqueta e toilette feminina nunca contemplou qualquer tipo de chapelaria com traje (e nem mesmo quando o traje feminino é finalmente oficializado pelo CV da UC, o gorro não é peça referenciada) e muito menos gorros. São, aliás, raras e pontuais as fotos com mulheres trajadas e cobertura na cabeça. As excepções são fotos de estúdio de cariz mais fantasioso do que a reprodução de uma situação corrente e espontânea). Concordaremos que a democratização do ensino deve permitir igualdade de sexos no que toca à indumentária, contudo o traje está historicamente definido para homens e mulheres, pelo que a preservação da cultura e tradição vestimentária apontará mais para que o gorro continue a ser uma peça mais versada para o traje dos rapazes, embora nada impeça o seu uso pelas mulheres.