quinta-feira, 24 de abril de 2014

Notas ao Foro Académico




Muito se ouve falar em “Foro Académico”, mas muitas vezes não se percebe muito bem o que tal é, nem o que implicava.
Já disso aqui se falou a propósito do Traje Académico que, como aqui explicado, foi “criado” para distinguir, precisamente, o “foro académico”, ou seja, aqui, com o sentido de classe laboral/social diferenciada de outras profissões e mesteres.


Mas o “Foro Académico” era bem mais do que isso.

De facto, os sucessivos regimentos, criados por determinação régia, tinham por finalidade, entre outras, dotar a Universidade (Estudos Gerais) de uma “lei orgânica” própria que facilitasse aos seus dirigentes a coordenar e supervisionar o funcionamento institucional em todas as suas facetas e aspectos.
Para tal, foram ao longo dos anos, atribuídas diversas regalias e benefícios que visavam defender e promover os Estudos Gerais. Nas palavras de Joaquim de Carvalho,


“Dentre estes privilégios um se destaca: o foro académico, cível e criminal. O que até então havia sido costume tacitamente aceite e porventura impreciso, tornou-se lei categórica pela carta régia de 4 de Maio de 1408, na qual D. João I, fixando o poder jurisdicional do conservador da Universidade, ordenava «a todallas Justiças, quaeesquer q sejam destes Regnos, que daqui emdiante nom conheçades de feito nenhilu crime nem çiuell de nenliú scollar q seja do corpo da dita universidade, mais que como forê achados em alg-üu malleficio, ou delles for dada querela ou denunciaçom, e forem presos per noso mandado em nossas prissões, ou vos forem demandados per o dito conservador, que logo os entreguedes ou mãdedes entregar ao dito sseu conservador, q hora he, ou pellos tempos adiante forem, que ouçã e desembargê, assi os ditos ffectos crimes como çivees, de quaees quer scollares, e os livre como achar q he dereito, dando nos fectos crimes appellaçam pera nos, e nos fectos çivees agravo; e se por vemtura algútis scollares teemdes presos, mandamos vos q emtreguedes ou mandedes emtregar logo pera o dicto conservador veer sseus ffectos, e os livrar com sseu dereyto, como dito he [...]» (apud Dr. António de Vasconcelos, Origem e evolução do foro académico privativo da antiga Universidade portuguesa).
Como no passado, os privilégios e foros universitários, essenciais para a vida e progresso da Universidade, encontravam a resistência das justiças reais, quando não do próprio conservador da Universidade. Os escolares, sobretudo, foram os mais queixosos, ora contra os almotacés, ora contra os conservadores, ora contra as limitações das suas regalias tradicionais, ora contra o pagamento das coletas aos lentes e ao bedel.”
[1]


Claro está que o facto de, a coberto de certas regalias e isenções, e nomeadamente pelo facto da justiça académica ser mais branda que a civil, excepção feita aos denominados “crimes de sangue”, cujo exemplo mais conhecido é o da personagem Simão Botelho, no clássico “Amor de Perdição” de Camilo Castelo Branco ou em casos excepcionais que obrigavam a derogar o privilégio do foro privativo, como este, ocorrido em idos de 1721:


"(…)sendo-me presente que na ocasião dos touros que houve no mosteiro de Santa Clara, extra-muros da cidade de Coimbra, se mascararam alguns estudantes, que juntos foram em um dia insultar o juiz de fora e em outro o corregedor da comarca, que vendo o excesso dos ditos mascarados e intentando prendê-los, estes lhe resistiram com armas de fogo, e lhe feriram um alcaide, e que, não obstante a resistência, o dito corregedor prendera nove dos mascarados; fui servido resolver que o corregedor tirasse logo uma exacta devassa e que, sem embargo dos mascarados serem estudantes, não remetesse os presos nem as culpas ao conservador seu privativo, derogando por esta vez os privilégios dos ditos estudantes, como protector que sou da mesma Universidade (…)” [2].


Resumindo, e parafraseando Paulo Drumond Braga [3]"(...) salvo em raríssimas excepções, os professores, estudantes e funcionários eram julgados pela própria academia, ficando isentos das demais justiças existentes no reino. Nesse ponto, a universidade era comparável à Igreja.".


Assim,

"A Universidade gozava de grandes privilégios, que lhe foram dados por D. Diniz e confirmados pelos reis seus sucessores. Um deles era a isenção do foro comum, concedida a professores, estudantes e todas as pessoas da Universidade. A princípio estiveram sujeitos ao foro eclesiástico; mais tarde, a um foro privativo (foro académico )exercido por juízes ou conservadores próprios, tanto para as causas crimes, como para as cíveis. Este foro especial só acabou com a implantação do regime liberal.” [4]

Ora, um dos aspectos que mais revoltava a população era o facto de os estudantes, muitas vezes a coberto das suas capas (embuçados), cometerem diversos crimes, desde o roubo a diversos ajustes de conta por honra.
Eram comuns os espancamentos e a zaragatas que passavam impunes, pois que as populações nada podiam fazer.A violêncisa era, aliás, uma das características mais identitárias das relações inter e extra estudantis:

"A sociedade da época apresentava um elevado teor de violência e a vida estudantil não era excepção. Não admira, pois, que surjam na amostragem em estudo numerosas agressões físicas.
Os estudantes feriam mulheres, mas sobretudo homens, maioritariamente outros estudantes, fosse
por que motivo fosse, até mesmo por acidente, recorrendo a diversos tipos de armas, desde simples paus e pedras a facas e punhais. Faziam-no de dia e de noite, sozinhos ou em bandos, deixando ou não sequelas físicas na vítima. Para além dos colegas, os estudantes agrediam outro tipo de pessoas, até mesmo mulheres. Agiam sozinhos ou em grupo. Faziam as clássicas emboscadas: "o forão esperar na Rua dos sapateiros da dita cydade e com armas ofensiuas e defensiuas como erão punhaes facas e paus lhe derão hua ferida na cabeça e outras pancadas pelo corpo".
Assim aconteceu com um estudante, vítima de um grupo de que fazia parte Jorge Pinto, perdoado em 1621. Feriam de dia e de noite. O leque de motivos para as agressões era vasto, desde o alegadamente acidental até à troca de palavras."
[5]


Proibidos que estavam os estudantes do uso e porte de armas, mesmo as “armas brancas” – especialmente mencionadas nas disposições régias de D. João III (1538), onde se determinava [6], que os estudantes “não tragam punhal nem adaga” e nos Estatutos de D. Manuel, de 1591 [7],


“Nenhum estudante trará armas ofensivas e defensivas, de qualquer sorte que sejam, ainda que seja faca ou canivete, de dia nem de noite, nas escolas, nem fora delas, pela cidade e seus arrabaldes, e quem o contrário fizer, pela primeira vez perderá as armas para o meirinho ou guarda das escolas, qual primeiro o acusar, e pela segunda vez, alem de as perder, estará preso oito dias”.

 Muitos eram os que para gozar do foro académico se inscreviam como estudantes (durante muitos anos a frequência foi livre e, até muito tarde, não havia sequer exames). Segundo Soror Águeda María Rodríguez Cruz,


“Houve épocas, sobretudo nos primeiros séculos, em que se matriculavam também pessoas alheias ao estudo, com vista apenas a gozarem do foro académico, como os boticários, arrieiros, artesãos, donos de pousadas e provedores de estudantes, etc., até a Coroa acabar com este abuso” [8]

Muitos estudantes só o eram mesmo de nome, pois que se dedicavam, especialmente, a actividades criminosas ou ilícitas, à sombra da protecção do seu estatuto estudantil. Diz-nos Teixeira Bastos [9], acerca desses bandos:

“A que maior celebridade adquiriu foi o Rancho da Carqueja que cometeu as maiores tropelias em 1720 e 1721, sendo reitor o Dr. Sanches de Baena.
Um dos seus fins era raptar donzelas, levando a audácia a ponto de pretenderem raptar uma sobrinha do próprio reitor.
Uma das suas proezas foi fazer despir um novato e açoitá-lo com disciplinas, depois de palmatoadas e corte rente do cabelo.
Foi preciso vir a Coimbra força armada para o conter.
Chegada a força (regimento de Fevereiro de 1721), foram presos trinta e tantos estudantes e conduzidos algemados para Lis- boa. D. João V mandou-os degredados para a índia, e o seu chefe, o estudante canonista, Francisco Jorge Aires, da Vila da Feira, acusado dum assassinato, foi degolado
[no pelourinho, a 20 de Junho de 1722], sendo a sua cabeça remetida para Coimbra, e aqui exposta na Praça de S. Bartolomeu (desde 1 de Julho de 1722).
Apesar deste rigor, aparece outro rancho
[Chamado Rancho dos Doijfe], poucos anos depois, em 1737, composto de doze estudantes, que armados percorriam as ruas de noite, fazendo esperas a outros estudantes e cometendo as maiores tropelias.
Em 1803 existiu em Coimbra um Novo Rancho de cinquenta a sessenta estudantes libertinos: tinham uma casa, onde à noite se juntavam a comer e beber, a dançar com meretrizes, e donde saíam armados a infestar a cidade.
Foram presos os principais (uns dezoito), e o rancho desfez-se.”



Era, muitas vezes, armados de navalhas e pequenas facas, mas também do varapau (arma de eleição) e, por vezes, moca que se cometiam as piores atrocidades, especialmente contra caloiros [10], conhecidas por "Investidas" e, mais tarde, por "Troças" ou "Assuadas", muitas vezes encapuzados ou com máscaras, mas também contra os próprios professores (em artigo anterior demos conta de um desses casos, embora mais recente e, pelos vistos, menos grave).




A abolição do Foro Académico e 
criação da Polícia Académica
 



O juízo privativo da UC é extinto por força do art.º 145º, alínea16, da Carta Constitucional de 1826, sendo tal abolição reforçada pelo art.º 38º do decreto de 16 de Maio de 1832 e pela portaria de 23 de Maio de 1834 (ano em que, em Espanha, também o foro é abolido e o traje estudantil proíbido).
Só as forças armadas continuaram a possuir juízo privativo, castigos físicos, código de justiça e corpo  de magistrados próprio.
Com a extinção do Foro Académico (também designado pro Juízo da Conservatória da UC), os delitos extra-disciplinares passam a correr nos tribunais civis (Juízo Criminal da Comarca de Coimbra).
Mas porque se verificou a necessidade, urgente, de dotar a UC de meios e poderes mais amplos, e autónomos,de acção disciplinar, foi publicado no Diário do Governo de 25 de Novembro de 1839, o "Regulamento da Polícia Académico", chancelado pelas assinaturas de D. Maria II e Júlio Gomes da Silva Sanches.
Nascia, assim, a Polícia Académica.
 
Conhecido por "Decreto Sanches", tratava-se, afinal, do verdadeiro Regulamento Disciplinar da UC.
Foi a este regulamento que se continuou a chamar de "Foro Académico", um erro que duraria por mais 71 anos.
Este regulamento possuía poderes mais amplos que os comuns regulamentos disciplinares em vigor nos liceus, seminários ou colégios particulares, servindo de instrumento de enquadramento disciplinar e social.
Este regulamento dotava a UC, das seguintes prerrogativas (que a Polícia Académica se encarregava de executar):
 
  • Vigilância e manutenção da ordem em todos os espaços do Paço das Escolas Gerais e suas dependências;
  • Inspecção dos uniformes docentes e discentes e dos oficiais administrativos;
  • Policiamento nocturno das ruas, casas d ejogo clandestino, prostíbulos e tascas;
  • Instauração de processos disciplinares por desrespeito, agressão, roubo e homicídio;
  • Aplicação de penas através de acórdãos ratificados pelo Conselho de Decanos.
 As penas que os estudantes mais detestavam (odiavam, mesmo) era a o encarrecramento na prisão académica ou a expulsão, temporária ou definitiva, da UC.
 
E muito trabalho tinha a polícia académica, numa sociedade cultural  socialmente violenta.

Com efeito, e a título de exemplo, um dos grupos organizados mais violento era proveniente da Republica do Carmo, composta de estudantes que residiam na Sofia, no antigo colégio do Carmo, e deles se dizia que

 “Até de dia andavam armados de punhais, e cometera'm vários crimes. No começo do ano lectivo de 1838- 1839 foi assassinado o Dr. Serafim, professor do Colégio das Artes; em 20 e 21 de Maio daquele ano houve facadas, tiros, arrombamentos, completa anarquia em toda a cidade. Um lente de Medicina, o Dr. Cesário Pereira, foi gravemente ferido com dois tiros, na noite de 3o de Junho de 1839; dois lentes de Filosofia, os drs. Pinto de Almeida e Pereira de Sena, foram insultados e ameaçados.
Em 1841, na noite de 26 de Dezembro, foi morto pela força pública, agredida, um dos da quadrilha.
Esta desfez-se pouco depois, em Janeiro do ano seguinte.”
[11]




Não é alheia a toda esta febril violência a influência dos conflitos entre liberais e absolutistas dentro de uma academia fortemente politizada, mas desengane-se que pense que Portugal era brando de costumes, como disso se faz propaganda. Muito pelo contrário. No caso do universo estudantil coimbrão, temos verdadeiros grupos de bandoleiros e uma cultura de opressão e humilhação que eram, na verdade, actos criminosos puros e duros.
A casa reitoral considerava os ritos iniciático-punitivos de caloiros como sendo condutas que transgrediam dolosamente o regulamento disciplinar, agindo contra os alunso prevaricadores com maior ou menor severidade, conforme os meios de que também dispunham, e que não eram muitos.
Com efeito, os levantamentos estudantis provam a incpacidade da Polícia Académica perante situações de maior proporção. Lembramos, por exemplo o levantamento estudantil de maio-junho de 1846 , com os estudantes a formarem um batalhão (Maria da Fonte) e a deambularem entre Coimbra e Lisboa (e novamente para Coimbra) espalhando o pânico entre a população; ou ainda aquele que teve lugar entre Outubro de 1846 e Junho de 1847, com os estudantes em surtidas violentas entre Coimbra, Porto e Setúbal (Patuleia), ou ainda a de 1853, a que só como recurso ao exército se conseguiu por fim a tal sublevação.
Já aqui relatámos o caso de um caloiro que foi batido até à morte porque se virou contra os veteranos que o queriam rapar.

Outras vezes, eram os veteranos a terem menos sorte, como relata o periódico o Conimbricense, de 1877, falando de um episódio violento ocorrido anos antes:

“(…) no dia 3 de Maio de 1873, pelas 8 da noite, junto do Castelo, foi cortado o cabelo, à força, a um estudante. Este, logo que se viu livre dos agressores, atirou contra o grupo uma pedra, que feriu mortalmente um deles.” [12]





Sabemos que, conforme os "ventos reitorais" (o feitio do reitor) ou os caprichos da instabilidade da conjuntura política, archeiros e guarda-mor eram mais ou menso tolerantes e permissivos. Se, como diz António Nunes (2013, p.74-76), cujo trabalho nos serve de guia neste capítulo, havia advertências mais irritantes (como a proibição do uso de bigode, ou de fumar no recinto universitário - quanto à proibição de fumar, muito contestada e tida como autoritária e reaccionária, ela resulta do pãnico em que vivia a reitoria por não possuir corpo de Bombeiros que pudesse acudir a um incêncio que resultaria, na certa, dadas as condições dos edifícios,  na perda irreparável do património arquitectónico e do acervo da UC) resultantes de preconceitos morais ou da moda em voga, já outras advertências e penalizações eram propensas a que os estudantes sentissem, por vezes, um certo desafogo, multiplicando-se, depois, as caçoadas e demais partidas.
 
Em 1843, procurando normalizar a situação de profunda instabilidade que reinava na UC, é dada ao reitor da UC, através da Portaria de 27 de Setembro, o poder de reprimir os abusos observados, nomeadamente em grupos mais ou menos identificados, que afrontavam a autoridade usando bigodes, lobas curtas, que ostensivamente fumavam nos edifícios históricos, e que criavam desacatos na Via Latina e nos Gerais.
Naturalmente que todas as acções disciplinares incendiavam os ânimos e cavavam um cad avez maior distanciamento entre a UC e os próprios estudantes (cujo traje usado na época acabaria por ser um dos "bodes expiatórios" e levaria a uma mudança no figurino vestimentário -aliás é em 1843 que pela última vez o termo "loba" aparece na documentação académica como vocábulo corrente).

Os sucessivos abusos, quase sempre na esfera do crime, o crescente descontentamento das pessoas e os ventos do liberalismo, começaram a fervilhar no caldo do anti -lericalismo (onde os “velhos costumes”, a começar pelo traje talar, eram tidos como sinais de uma Igreja decadente e de uma ordem instituída que já não funcionava).


Novas mentalidades exigiam que Portugal acompanhasse a modernidade, olhando, por isso, de soslaio, para as velhas lobas, os enraizados privilégios, as isenções em favor do foro como sendo impeditivas do progresso e de uma sociedade mais justa.


Natural, pois, que se começasse a assistir, a partir da década de 1880 (a 1ª proposta de lei é de 1883), a movimentações contra a manutenção do designado " foro estudantil" e se levantassem as primeiras vozes reacionárias, utilizando, precisamente, a imprensa para dar eco a tais pretensões.
 


Aqui ficam alguns artigos bastante elucidativos (clique nas imagens, para ver com mais definição).

 






 O Commercio de Vizeu, 05 Fevereiro 1888, III Anno, Nº 166



O Commercio de Vizeu, 01 Março 1888, III Anno, Nº 17



O Comércio do Porto, 26 Março 1888 p. 1



Claro está que, como acima referimos, o Foro Académico há muito fora, de facto abolido, contudo mantinha-se a disciplina (Regulamento da Polícia Académica) com um aperto nem sempre severo, conforme a magnanimidade das autoridades académicas, por norma mais propensas na defesa "dos seus".
Fartos de sentirem na pele a injustiça que era a futura elite social comportar-se como bárbaros e ainda por cima gozarem de uma inadequada condescendência (na óptica da sociedade, já se tinha chegado ao ponto de ruptura), as vozes fizeram-se  ouvir cada vez mais fortes contra o regime permissivo que gozavam os estudantes da UC.
Um eco que teve foret acolhimento junto dos republicanos que, chegados ao poder, trataram de imediato de reformar o ensino universitário e acabar de vez com o status quo ainda reinante na comunidade discente.



A Extinção da Polícia Académica



Com um discurso propangandístico que pudesse ser melhor absorvido, António José de Almeida, então Ministro do Interior do Governo Provisório da República, anuncia, perante o novo reitor da UC, Manuel de Arriaga -(colocado pelo governo, como forma de "renovar a Universidade)  o fim do odiado "foro medieval", na verdade não está, de todo a extinguir esse foro, porque o mesmo já não existia.
O que na prática sucedia era a extinção do Regulamento da Polícia Académica, assim abolida pelo Decreto de 23 de Outubro de 1910.
Do discurso fazia parte à menção de que o fim de tais prerrogativas eram sinal d emodernidade, até porque, segundo os próprios "libertadores", em enhum país civilizado se concebia a existência, por exemplo, de uma cadeia académica (esquecendo-se que na Alemanha, por exemplo, elas existiam em grande número, e que só com a Grande Guerra este tipo de cárcere iniciará o seu declínio).









[1] CARVALHO, Joaquim - Instituições de Cultura (séculos XIV-XVI) Colóquio integrado no Projeto "Delfim Santos e a Filosofia da Ciência em Portugal", Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa ,  14 Set 2012.
[2] Provisão de 24 de Julho de 1721.

[3] BRAGA, Paulo Drumond - Aspectos do quotidiano Universitário no período Filipino - Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 313-320.
[4] BASTOS, H. Teixeira - A vida do estudante de Coimbra : antiga e moderna : duas conferências na Associação Cristã de Estudantes, nos dias 29 e 30 de abril de 1920. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1920.

[5] BRAGA, Paulo Drumond - Aspectos do quotidiano Universitário no período Filipino - Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 313-320.
[6]
Por alvará de 26 de Agosto.
[7] Os “Estatutos Velhos” (de 1612), que vigoraram até Pombal, estabeleciam em casos de reincidência uma multa de 2.000 reis, isto além da pena de prisão por oito dias.
[8] RODRÍGUEZ Cruz, Águeda M. – Vida Estudiantil en la Hispanidad de Ayer, citado por “QVID TUNAE? A Tuna Estudantil em Portugal”. Euedito, Porto 2012, p.48
[9] Op.Cit.
[10] D. João V viu-se obrigado a publicar a carta régia de 7 de Janeiro de 1727, mandando riscar (expulsar) dos seus cursos o estudante que por palavras ou obras ofender outro, com o pretexto de novato (caloiro), ainda que seja levemente (ou seja ainda que seja uma ofensa leve), tal era a violência verbal e física entre estudantes, nomeadamente entre veteranos e novatos.
[11] O Conimbricense, 1878, nº 3:199
[12] O Conimbricense, 1877, nº 3:161


Ver também


CORREIA, António – “Caloiros-Novatos”, Rua Larga, de 15 de Abril a 25 de Novembro de 1958.
CRUZEIRO, Maria Eduarda – “Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, Volume XV (60), 1979.
FRIAS, Aníbal - Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias in Revista Crítica de Ciências Sociais, 66, Outubro 2003: 81-116
NUNES, M. António - As Praxes Académicas de Coimbra. Uma interpelação histórico-antropológica, in Cadernos do Noroeste, Série Sociologia, Volume 22 (1-2), 2004.
MOTA, R. C. Margarida - Subsídios para o estudo da delinquência estudantil em Coimbra, 1871-1886, Universidade(s), História, Memória,Perspectivas, vols. III, Congresso História da Universidade, 7º Centenário, Coimbra, 1991 pp.321-330.
RODRIGUES, A. Manuel - Notas sobre a Universidade de Coimbra desde as origens (1290) até à fixação definitiva em Coimbra (1537). Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

VASCONCELOS, António de - Origem e evolução do fôro académico privativo da antiga Universidade portuguesa : breves apontamentos históricos. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1917.


Artigo actualizado em Junho de 2013 com base em NUNES, António - Identidade(s) e moda, Percursos contemporâneos da capa e batina e da sinsígnias dos conimbricenses. Bubok, 2013, p.134







Notas aos Rasgões na Capa - Origens e significados


Capas rasgadas são hoje tidas como expressão máxima da veterania e vivência académicas, pejadas, dessa forma, de significâncias, testemunho de amores, amizades, beijos…….. “and so on”.

 De onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa ou mesmo do grande rasgão a meio desta?

 Não sabemos qual a ideia que presidiu ao início desse costume, mas não enjeitamos que possa ser, uma vez mais, o romantismo histórico (muitas vezes cheio de clichés e falsos mitos) a repescar a ideia dos antigos veteranos e seus trajes puídos e rotos, na longa tradição do sopistas (daí derivará, entre outros, o mito de não se lavar a capa, por exemplo, de que já falámos anteriormente).

 Nos anos 80, essa ideia era muito cultivada, sendo esse saudosismo que esteve na origem do interesse e reabilitação das antigas tradições que tinham sido particamente esquecidas após o Maio de 1969. Veja-se que até no Brasil a ideia do rasgão carrega esse simbolismo:

 "Ele seguiu a velha tradição universitária— que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade!"[1]

Bem sabemos que, ainda hoje, existe essa ideia e tendência, nos mais jovens, de aparentar mais idade, maturidade e experiência, como que para conferir um qualquer status quo, um ascendente social ou apenas impressionar as caloiras.
Aliás, nem é preciso ir mais longe que basta atentarmos no que nos diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira:

 "(...) tanto mais que o uso consagrou como mais digno de apreço e mais graciosa a capa ou a batina com mais rasgões e remendos, mais velha e menos elegante, caprichando assim, precisamente, os estudantes, num pecado de aparência boémia descuidada ..."[2]

Esse saudosismo pela “res antiqua” não foi um exclusivo dos praxistas dos anos 80 e 90. Ainda na esteira do romantismo do séc. XIX, desse gosto pela história, temos os estudantes de início do séc. XX, em plena 1ª República (muito avessa às praxes, diga-se) que pretendem reabilitar as velhas tradições entretanto interrompidas com a greve académica de 1907 e, depois, fortemente cerceadas pelas autoridades, pouco dadas àquilo que, em muitos círculos, era tido como prova de retrocesso civilizacional.

Contudo, a aurea em torno do imaginário do estudante boémio e aventureiro, herdeiro dos antigos goliardos, a irreverência característica de quem está sempre, de alguma forma, contra o status quo social, dita o ensejo de recuperar a mística de outrora, reclamar para si a defesa de uma cultura própria, secular tradição, inalienável direito de governarem os seus destinos:

 "E quando aparece este desejo de ressurgimento? Precisamente quando se tinha chegado ao extremo oposto, de se haverem desprezado tanto aquelas velharias que ate a capa e batina quasi a ser abolidas e com elas ridícula preocupação de se considerarem tanto mais honrosas para quem as vestia, quanto mais rasgões tinham mais sêbo as enodava"[3]

 Mas até onde recua a origem dos rasgões na capa?
Não é fácil responder inequivocamente, mas alguma luz podemos lançar sobre essa prática a que sistematicamente se fizeram alterações ou upgrades.

Pensávamos, inicialmente, que o costume teria origem pelos anos 50, pois, segundo os dados colhidos e a falta de testemunhos e documentos anteriores a essa década, apontavam para tal.
O amigo Zé Veloso, no blogue “Penedo d@ Saudade”, dizia a esse respeito o seguinte:

 “(…) e ter-se-ão inspirado no franjado do xaile para começar a rasgar as suas capas? Eu vou por aí! Como dizia o poeta, "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar".
No meu tempo de Coimbra – onde as colegas tinham tomado já o lugar que antes fora das tricanas – dizia-se que cada franja da capa correspondia a uma conquista, ainda que de um fugaz beijo se tratasse. E os mais gabarolas retalhavam as desgraças capas, quais pistoleiros do Oeste enchendo de mossas as coronhas dos revólveres.
Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro.
Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…”. [4]

 Vemos, pois, por este testemunho, de quem trajava capa e batina, ainda no liceu, nos anos 50, que nessa época os rasgões eram conotados a conquistas amorosas, contudo não existia a tradição do rasgão a meio da capa, tanto que tal é tido como sendo um “estranho costume”.

Não é fácil encontrar a origem exacta da prática dos rasgões, mas podemos balizar com recurso a testemunhos e documentos que vamos retirando do anonimato.
Não confundamos, é preciso sublinhar, com as referências existentes a rasgões feitos como resultado de agressões (onde os caloiros erram sovados e suas roupas saíam muito mal tratadas das caçoadas mais ferozes. Existem relatos de capas e batinas rasgadas em resultado dos "encontros" com as trupes, mas não podemso mistura ro rasgão feito de livre e espontânea vontade com os que são consequência de agressões sobre o indivíduo e sua indumentária ou do desgaste natural do traje (e alguma traça, diga-se também).
Segundo o Zé Veloso, era já comum, nos anos 60, verem-se, nomeadamente os rapazes, alguns cortes na capa, com efeito, diz-nos que "Não era vulgar ver-se uma capa completamente franjada – que as havia – mas uma capa com meia dúzia de rasgos era perfeitamente banal, rasgos que teriam um comprimento de 5 a 15 cm, sendo feitos à mão".

Atentemos, por exemplo, no que a propósito deste assunto (que colocámos na facebookiana “Tertúlia do Penedo d@ Saudade”) que respondeu João Portugal Vieira:

  O meu avô que era dos Paxás no início dos anos 50 embirra solenenemente com os rasgões, tanto ele como o meu tio Beça dos anos 30 e o Dr. Virgílio dos anos 20/30 não percebiam de onde tinha surgido a coisa. Parece-me que surgiu de forma muito minoritária algures nos anos sessenta, e foi popularizada nos anos 70 quando apareceu num álbum da série francesa de banda desenhada Michell Vaillant. Quando entrei ainda todos usavam os rasgões de namoradas, noivas, e amizades, até que o Conselho de Veteranos (ou no tempo do Gama ou do Cabral, já não me lembro) fez um panfleto em que dizia que não havia nenhum fundamento para esta tradição, e cada um começou a fazer como lhe apetecia.[5]

 Segundo este testemunho, parecia credível avançar que os rasgões nas capas não existiriam antes dos anos 50, contudo parece ser este testemunho expressivo daquele tipo de estudantes que não achavam grande piada à forma, por vezes exagerada, com que certas capas apareceriam cortadas.
Também significará, porventura, que, conforme as épocas, se aderiam mais ou menos a esse costume ou que só certas franjas e grupos estudantis o praticavam.

O que sabemos é que esse costume é citado no Código da Praxe de 1957, cujo art.º 73 refere, a certa altura "(...) capa preta, com ou sem cortes na parte inferior...", conferindo-lhe lugar como sendo da Praxe, ou seja da Tradição.
Mas podemos regressar mais (e fá-lo-emos até ao séc. XIX) no tempo.

Como inicialmente disséramos, julgávamos serem os anos 50 o alfobre desse costume, mas afinal não é bem assim.
Segundo o que escreveu José Anjos Carvalho, transcrito por Octávio Sérgio, no seu blogue “Guitarra de Coimbra, sobre os costumes estudantis do Liceu de Évora:

 “Na década de 40, quando por lá andei, havia sempre duas récitas anuais, a do 1º de Dezembro e a das Festas da Primavera, em 9 ou 10 de Junho.(…)
Por vezes havia o seu corte de cabelo, muito pouco e, sobretudo, muito raro. Os rasgões na base da capa eram uma prática bastante habitual..”[6]

Seguindo o que acima se lê, o costume existiria nos anos 40, embora sem sabermos ainda qual o significado na época.

Ainda no que concerne o Liceu de Évora, deparámo-nos com um documento que nos faz recuar para os anos 30, mediante uma foto publicada no blogue “Virtual Memories”, do ilustre historiador António M. Nunes, a qual retrata um grupo de estudantes do Liceu de Évora. Nesse cliché, o rapazinho da esquerda parece apresentar uma capa com muitos cortes.

Não negamos a surpresa, pois anteriores investigações nossas nos tinham levado a observar dezenas de clichés de estudantes de capa e batina (muitos deles como membros de tunas) onde ainda não se vira qualquer capa com rasgões (o que indica que a prática não era um costume massificado, bem pelo contrário).

Escarafunchando mais um pouco, e com recurso ao já citado blogue “Virtual Memories”, encontrámos uma curiosa referência, que veio deitar por terra as nossas iniciais “certezas", quanto à antiguidade da tradição dos rasgões na capa.
Sobre o denominado “pequeno uniforme académico”, instituído na UC (embora sem obrigatoriedade de uso) a partir de 1870, quando descreve como é composto, diz-nos António Nunes, a certa altura que:

 “(…)-capa preta singela, em lã ou sarja, embainhada para os lentes, sem bainha para os estudantes amigos dos rasgões, colarinho raso, dispondo a dos estudantes de alamares, e a dos docentes de cordão de borlas ou de cordão simples.”[7]

 A atestar a existência da prática de rasgões no séc. XIX, temos outro indício, reproduzido nas muitas quadras que se faziam em torno do estudante de capa e batina:

 “Em meados do século XIX, os autores de quadras destinadas às danças das fogueiras do São João de Coimbra já se tinham apropriado da capa estudantil, cantando no “Malhão” (=Estalado): A capa do estudante/É um jardim de flores/Toda cheia de remendos/Cada um de seus amores , copla que na década de 1860 passou a ser cantada no novel Fado dos Estudantes Açorianos”[8]

 Esta referência, saída direitinha do famoso “In Illo Tempore”, de Trindade Coelho(p.259), não oferece dúvidas que o significado emprestado a esses rasgões estava, pois, ligado aos amores do estudante, embora não se consiga precisar se eram namoradas (conquistas consumadas/namoros oficializados) ou paixões não correspondidas (na senda das medievas “coitas de amor”).

 O facto é que se temos indícios do costume já existir em finais do séc. XIX e, depois, a reencontrarmos na década de 30 em diante, outros tantos temos que demonstram a sua ausência, por vezes de forma concomitente, o que nos diz que, e mais uma vez se sublinha tal, a prática não era adoptada por todos. Por outro lado, e citando o amigo Zé Veloso, Um costume pode sempre ser descontinuado e retomado décadas mais tarde; e tal pode muito bem ter acontecido nas conturbadas décadas do início do século XX.”

 "Estudantada" (Pintura/desenho de Faustino Rosa Mendes - artista de Santarém), 
Illustração Portugueza, II Série, Nº 698, de 07 Julho de 1919, p. 15 
(Hemeroteca Municipal de Lisboa)


Sabemos, por exemplo, que muitos costumes caem em desuso, ou cessam simplesmente em inícios do séc. XX. Notemos, por exemplo que o termo “Caloiro” era, ainda em 1899, a designação dada aos alunos de liceu que estavam no seu último ano (antes de ingressarem para a universidade) e que aos alunos do 1º ano se dava o nome de “novatos”. Ora, em 1905, ambos os termos eram sinónimos e atribuídos já ao estudante que frequentava pela primeira vez a faculdade (o 1º ano), segundo avança Manuel Prata.[9]



Certezas temos é que nos anos 60, e até ao luto académico que começa em 1969, a prática dos rasgões era amplamente conhecida e posta em prática, acabando retratado no álbum do Michel Vaillant, "Rali em Portugal", cuja primeira edição é de 1969, publicado em fascículos na revista Tintin e finalmente editado em álbum em de 1971 (sob o título original de "Cinq filles dans la course"), podemos observar, em várias tiras, as ditas capas rasgadas
A obra só chegaria a Portugal, como álbum em português, pela mão da Bertrand, em 1981.

Sobre isso, refere o colega Eduardo Coelho o seguinte:

 “ (…) Jean Graton, no álbum "Rallye de Portugal" (da série Michel Vaillant) põe Steve Warson (se não estou em erro) a perguntar a uma guia portuguesa, durante uma pausa do rally em Coimbra, o que significavam os rasgões na capa de uma estudante (capa bem rasgada, por sinal...), sendo-lhe explicado que cada rasgão correspondia a um desgosto de amor.
Bom, mas isso era um autor de banda desenhada belga, que imortalizou o traje académico nas páginas de uma das personagens mais famosas da escola belga :) E o autor normalmente documentava-se muito bem para a execução das suas obras. A Via Latina, por exemplo, está exemplarmente retratada”.[10]

Sabemos, pois, que a recolha de dados e informações ocorre antes de 1969, data em que se dá o luto académico e que o significado emprestado aos rasgões estava ligado a desgostos amorosos (que outros testemunhos de antigos alunos dessa época confirmam).

Veja-se a diferença entre o que nos anos 50/60 se dizia (que eram conquistas), para o que, anos depois, vigorava (amores frustrados).
Nos anos 70, o seguinte significado podemos observar:

 "A cada amor percorrido enquanto o infinito perdure corresponde um rasgão na bainha da capa negra do estudante."[11]

Contudo é nos anos 80, com a reabilitação das tradições académicas, que a moda se espalha pandemicamente e ganha N significados em simultâneo.

Com a massificação do Ensino Superior, e a invenção (quase sempre sem nexo) de pseudo-tradições e códigos, bastaram menos de 10 anos e já o significado dos rasgões era atribuído às amizades especiais, aos grandes amigos de faculdade, e vida académica, e vigorava já uma nova moda: o rasgão a meio da capa, destinado ao namorado(a) “a sério” (prontamente cosido se a seriedade descambasse em ruptura).

 Voltava, a propósito, a recordar a intervenção do Zé Veloso quando falava dos rasgões cosidos com linha da cor da faculdade, para dizer que, nestas ultimas duas/três décadas o que foi comumente doutrinado é que o rasgão reservado, a meio da capa, à namorada, se tivesse de ser cosido teria de o ser com linha branca.

De onde virá tal determinação?
Será isso uma inspiração na figura do João da Ega, da famosa obra “Os Maias”, de Eça de Queirós, que, como reacionário e contra as praxes, mostrava a sua irreverência, em jeito de provocação, cosendo a branco os rasgões de que ia padecendo, pelo uso, a sua batina?

 "Desde a sua entrada na Universidade, renovara as tradições da antiga Boêmia; trazia os rasgões da batina cosidos à linha branca;"[12]

Será essa a inspiração ou tratar-se-á de uma feliz coincidência?

Parece também estranho que em finais dos anos 80, inícios dos 90, as próprias estruturas da Praxe, na figura do Conselho de Veteranos (segundo testemunhou o João Portugal Vieira que cursou nessa altura), terem considerado essa prática como sem fundamento (chegando-se a distribuir um panfleto onde se dizia precisamente isso), apesar de já mencionada no código de 1957.

Poderemos dizer, se confessos defensores da sobriedade do trajar, que os rasgões não são algo propriamente estético e que não dão boa imagem de aprumo, dado que o Traje Nacional é, antes de mais, um uniforme, mas nem sempre as tradições ocorrem dentro da etiqueta e daquilo que é secundum praxis, havendo muitas vezes contributos que chegam por “via popular” - em oposição a uma “via erudita”, se permitem a analogia da área da linguística.

Mas a prática reiterada, pese embora os significados da mesma mutarem ciclicamente, cristalizou-se e enraizou-se, sendo que conquistou o seu lugar como tradição académica (e muitos códigos mais recentes já contemplam isso, regrando o tamanho e a forma de se fazerem os rasgões).

Obviamente que é um costume ele próprio sujeito a desvios, como são disso exemplo os nós dados com as franjas/tiras resultantes desses cortes, como se observa em algumas latitudes, cujo significado se inventa na exacta medida daquilo que se desvirtua.
Pior então são as tranças que vemos em algumas geografias, e que são um prova fidedigna da tonteria, da ignorância e do desrespeito total pela tradição.

Notemos, por exemplo, que nos anos 90, entre os significados dados aos rasgões, aparece um totalmente novo e divergente do até aí entendido, ou seja que os cortes corresponderiam aos fracassos escolares, aos chumbos:

"É composto desde finais do século passado por calça comprida, colete e sobrecasaca, denominada batina por advir da primitiva ... A capa tem mais uma peculiaridade pois, a cada exame passado, corresponde um rasgão feito na extremidade, apresentando no fim do curso numerosos rasgões. Desta figura ressalta um apego ao valor do estatuto universitário e às praxes seculares da Academia."[13]

 Os rasgões, segundo a tradição, serão feitos com os dentes (num acto mais “personalizado”, se assim quisermos emprestar essa significância) e/ou porque usar a tesoura seria misturar um objecto que, em Praxe, serve para sanções, com um acto que é festivo.

A capa é, pois, guardiã de memórias, representando os tempos de mocidade universitária, cujos rasgões testemunham momentos singulares do exercício da cidadania académica:

"Capa pretas onde revejo
toda a minha mocidade,
cada nódoa é um beijo
cada rasgão uma saudade."[14]

Uma tradição, uma convenção, que perpassou a mera esfera da etiqueta e do protocolo ligados ao traje, chegando a capa rasgada a ser cantada pela própria canção coimbrã:

"A minha capa rasgada,
Espelho do coração,
Por te pedir p'ra seres minha
E dizeres sempre que não.

Lá no alto junto a Deus
Ouvi os anjos rezar
Cá na Terra junto a ti
Passei a vida a penar."

<
Sobre este vídeo disse o Eduardo Coelho, a 3 de Novembro 2012, no anterior artigo (inexistente, já) dedicado aos rasgões na capa:

“Grandes amigos a tocar e cantar. Adelino Miguel, um dos virtuosos portuenses (nacionais, diria eu) da guitarra, aqui a dar os seus primeiros passos... É vê-lo actualmente num projecto interessantíssimo -os "Fado em si bemol".
O Pacheco, o veteraníssimo Pacheco - um dos leões da Praxe e das tradições académicas cá do Douro... o Adalberto, na viola... a voz do Mário... Gente boa, gente boa.
Talvez não leiam esta mensagem, mas aqui lhes deixo um sentido abraço.
Fica este primeiro apontamento, a merecer mais aturada pesquisa, contudo já elucidativo para percebermos um pouco das nossas tradições, as curiosidades da mesma e suas nuances.”

Muito haverá ainda para dizer, pois se algumas questões puderam ser já respondidas, muitas outras carecem de novos dados e descobertas, desde se mantendo a mesma com que se iniciou este artigo: de onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa?
Procuraram-se respostas, encontraram-se, simultaneamente, outras tantas questões.
Esperamos, ainda assim, que seja este artigo útil e um pontapé de saída para novas descobertas e actualizações.


[1] Ministério da Educação e Cultura  - Anuário do Museu imperial, Volume 36. do Brasil. Petrópolis, 1982, p.60.
[2] EDITORIAL ENCICLOPÉDIA - Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XXIII. Editorial Enciclopédia Lda, Lisboa - Rio de Janeiro,1936-1960, pp. 67-67.
[3] Revista - Illustração Portugueza, II Série, nº 558,de 30 Outubro 1916, p. 341.
[4] VELOSO, José - TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA…, in blogue Penedo d@ Saudade, artigo de 7 Abril 2010, [em linha] http://penedosaudade.blogspot.pt/2010/04/tricanas-xailes-e-capas-transforma-se-o.html
[6] [em linha] http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005_09_25_archive.html , artigo de 01 Outubro de 2005.
[7] NUNES, António M. - Património vestimentário... (cont.) Do “talar” ao “casacar”, in blogue Virtual Memories, artigo de 4 de Setembro de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.pt/search?q=rasg%C3%B5es
[8] Idem - III - Património... (Académicos de toga e académicos de espada), in blogue
Virtual Memories, artigo de 28 Agosto de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.com/
[9] PRATA, Manuel Alberto C. - Rituais e Cerimónias, A Praxe na Academia de Coimbra. Revista da História das Ideias 15. Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras. Coimbra, 1993,p. 170, em nota de rodapé nº 37.
[10] Post de 31 Outubro in https://www.facebook.com/#!/groups/penedodasaudade.tertulia/
[11] ALMADA, João - Biblioteca da História 33, Salazar, 1889-1970. Editora Três, Brasil, 1974.Cap. III - Em Coimbra, p. 61.
[12] LAGO, Sylvio - Eça de Queirós, Ensaios e Estudos 1. Biblioteca 24 horas.SP Brasil, 2010, p. 237.
[13] TEIXEIRA, Madalena B. - Trajes míticos da cultura regional portuguesa. Sociedade Lisboa, Lisboa, 1994,  p.105.
[14] PEREIRA, B., Joacil - A Vida e o Tempo. Memórias, Vol. I. União Superintendência de Imprensa e Editora, 1996.
Nota: a 1ª e última fotos são adaptações feitas a partir dos originais patentes em http://lm-sunshine.blogspot.pt/















Notas ao fim da capa e batina nos liceus

Sempre me intrigou o "súbito" desaparecimento da capa e batina dos estabelecimentos de ensino secundário - os antigos liceus.

Mais estranheza causa quando a adopção do traje académico resultou, na maioria dos casos, da persistência e de esforços continuados por parte da comunidade estudantil junto das autoridades educativas - e que redundaram na publicação de um decreto que autorizava (não obrigava) os alunos dos liceus a envergar capa e batina.

Na obra "Tuna Académica do Liceu de Évora" (Adília Zacarias e Isilda Mendes), lê-se, a pp. 34, o seguinte:

"No entanto, a política também não foi estranha a alguma quebra no uso do traje. Estão neste caso momentos como a implantação da República, o Estado Novo e o pós 25 de abril. 
A principal interferência no uso do traje académico, durante o Estado Novo, teve, sobretudo, a ver com o espírito da M. P. [Mocidade Portuguesa] que se traduz, por exemplo (...) na perseguição caricata ao uso da "capa e batina" (...) o que levou o deputado António Gromicho (que era também o Reitor do Liceu de Évora) a declarar na Assembleia Nacional: 
com o aparecimento da M.P. e com a expansão desta organização, estabeleceu-se uma certa confusão e equívoco, pois formou-se o mito, na minha opinião erradíssimo, de que o uso da capa e batina é um obstáculo à actuação da M.P. Dizia-se, e creio que continua a dizer-se, que o trajo (sic) académico representa ideias e costumes contrários às doutrinas daquela organização. (Labor, N.º 157, abril de 1956, p. 478)"

e, na p. 65, referindo-se ao lento processo de "passagem" da Associação Académica para a Mocidade Portuguesa:

"Ostensiva ou subreticiamente, a M.P. opunha-se às tradições [democráticas] que tão orgulhosamente os académicos [do Liceu de Évora] respeitavam e preservavam."

Será que o caso do Liceu de Évora pode ser extrapolado para todos os liceus nacionais da época?

Estamos em crer que sim, muito embora não disponhamos de dados tangíveis que nos levem a dar uma inequívoca resposta afirmativa.

No entanto, e tendo em conta que o processo de adopção é semelhante em todos os liceus (também nas antigas "províncias ultramarinas"), não vemos razão pela qual o processo, "filosofia" e sobretudo o agente da extinção do traje possa ou deva ser diferente caso a caso. O Liceu de Évora nem era o único a usar capa e batina nem o único a possuir estruturas estudantis democráticas. Temos, assim, que a Mocidade Portuguesa procurou (e conseguiu) insinuar-se como estrutura organizativa centralizada (e centralizadora) das actividades recreativas juvenis.

Por outro lado, cai por terra a argumentação dos que vêem na capa e batina um símbolo do regime fascista do Estado Novo - uma vez que o próprio regime via no traje académico um "obstáculo" e a representação de "ideias e costumes contrários às [suas] doutrinas".





















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ZACARIAS, Adília, e MENDES, Isilda M. Tuna Académica do Liceu de Évora (100 Anos de História e Tradições), [s.n.], Évora, 2012

As autoras escreveram de acordo com as normas do AO90, que respeitámos na transcrição dos excertos.