terça-feira, 25 de março de 2014

Notas ao Caloiro em/na Praxe


Um dos mais antigos preceitos da Tradição é que só está na/em Praxe (Lei Académica) quem está devidamente trajado, ou seja a condição de "praxista" (literalmente: aquele que observa a lei académica) implica, necessariamente, quando está na/em Praxe, usar do Traje Académico.

Ora perguntamos: caloiros à futrica estão na/em Praxe?
Resposta: por princípio NÃO! (caiu um bomba!)

 À luz da Praxe(da lei académica), assente na Tradição, não é lícito praxar caloiros que não se encontrem trajados.

 Desde que me lembra que os caloiros são praxados à futrica (eu fui-o e sempre os praxei assim também), muitas vezes porque se pensava, e se lhes disse, a partir de determinada altura, que não podiam trajar (ou, então, não se lhes disse, precisamente, que DEVIAM trajar).


[se me dissessem isto há uns largos anos atrás, era capaz de me dar uma coisa e espernear, embora não me furtasse, depois, calmamente, a ponderar e reconhecer a validade do argumento]

Um conceito erróneo já com várias décadas e que, contudo, nunca foi devidamente reflectido e posto em causa.



Caloiro sob trupe (foto diurna, pois era para publicar em Bilhete Postal Ilustrado)
in Illustração Portugueza, II Série, Nº 302, de 04 Dezembro 1911, pp.711
(Hemeroteca Municipal de Lisboa).

Uma trupe - Coimbra -P Borges, 1911 BNP, PI-5882-P
Tonsura a um caloiro, em desenho mural na Real República Rás-Teparta
Simulacro de um rapanço e de uma ida às unhas ao caloiro.
(os estudantes posando para Bilhete Postal Ilustrado) ca. 1911


Sabemos que já nos anos 60 se praxavam caloiros trajados ou não (os alunos de liceu, por exemplo, estavam sujeitos a praxe de trupe, como disso nos deu conta o Zé Veloso, estudante que lá fez o liceu, em finais dos anos 50, e cursou a universidade, nos anos 60), de forma indiscriminada, o que revela uma fase de transição, em que o antigo preceito (praxe a caloiros trajados) convivia com um novo (praxes a caloiros à futrica), com uma clara "desobediência"  pela tradição (pelo menos a que se registava até aos anos 50), quiçá movida, entre outras possíveis razões, pela irreverência de quem, até as suas próprias "leis", gosta de quebrar e, de certo modo, talvez (e sublinhamos o talvez), em razão das conotações que eram atribuídas ao porte da capa e batina, em certos círculos políticos e sociais.
Às vezes as práticas caem em desuso sem uma explicação muito clara, temos deconvir.
Ainda assim, convém dizer que, nesses tempos, e citando o  informe do amigo Zé Veloso,


"...aderir à praxe não era facultativo: a praxe era imposta a todos os alunos liceais e universitários, quer gostassem quer não. Não eram obrigados a usar capa e batina, a praxar, a usar grelo ou fitas. Mas estavam sujeitos a praxe de trupe (se bichos ou caloiros) e a ser mobilizados e praxados (se caloiros). Por estranho que pareça, era assim, e tanto a academia como a cidade aceitavam que as coisas assim se passassem, incluindo as autoridades civis, a polícia e os tribunais. ".

Ainda bem, estamos em crer, que o cariz obrigatório das práticas de praxe aos caloiros e liceais se foi perdendo, em razão da mudança de contexto e mentalidades, embora com ele também se tenham, paulatinamente,  desvanecidos alguns conceitos.



(Abrimos um 1º parêntesis para umas breves notas especulativas:
Muito se tem dito que usar capa e batina era ser conotado com o regime salazarista,, mas a verdade é que não era bem assim (como já disso demos conta AQUI).
Será que a perseguição aos caloiros sem traje era uma forma de "castigar", também, os que não pretendiam trajar, punindo aqueles que teriam aderido (ou simpatizado) às propostas "educativas" da Mocidade Portuguesa (para a qual a capa e batina era res subversiva), sendo, por isso, vistos como "inimigos internos da Academia" a precisarem de serem (re)educados; (re)doutrinados?
São conjecturas apenas.)

Mais tarde, depois, com o reabilitar das tradições, nos anos 1980/90, e com o uso do traje ainda quase reduzido a ilhas, era normal que as praxes ocorressem em pessoas que não trajavam (lideradas pelos poucos que trajavam).
Era normal, mas continuava a colidir com a noção basilar que acima sublinhámos.

(Abrimos um 2º parêntesis para deixar claro que a Praxe, é feita de cristalizações, avanços e rupturas. Muitos costumes foram caindo em desuso, normalmente por se ver neles algo que não era adequado à época e valores vigentes. Contudo, aquilo a que se tem vindo a assistir é ao desuso não por ser considerado inadequado, mas pelo hiato temporal que constituiu o luto académico, e que promoveu o desconhecimento da Tradição, quando esta foi "repescada")


Actualmente, o uso do traje está muito mais universalizado e disseminado, contudo, desde os anos 80/90, registou-se, com o crescimento da adesão ao traje, uma doença (mutação assente em estupidez e ignorância) que foi minando os próprios alicerces da Praxe: proibir caloiros de trajar (elevada a “lei” em muitos codigozinhos de treta), o que, desde logo, também implica que esses trajes deixem de ser, de facto, “académicos”, pois retiram-lhe, exactamente, a sua função histórica e primária: identificar o estudante (e caloiro é estudante), como já neste blogue abordámos (ver AQUI).

Dir-me-ão que, hoje em dia, o traje não é de porte obrigatório e que, por isso, os caloiros se furtariam a usá-lo (logo de início) só para não serem praxados.
Pois é, é um direito que lhes assiste, tal como aceitarem, ou não, serem praxados (sem que isso possa ter consequências sequer). Mas creio ser argumento erróneo, pois se as praxes sempre existiram, tal nunca impediu os caloiros de trajarem (mesmo depois da abolição do porte obrigatório), até porque um dos maiores sonhos do caloiro, por princípio, é precisamente o de poder trajar (porque, ele sim - o traje, é o primeiro e mais forte elemento integrador, o principal elemento iconográfico expressivo de pertença e identificação da sua condição).

Voltamos a sublinhar que o porte obrigatório do traje já foi abolido há cerca de 100 anos, o que não impediu os caloiros (e liceais) de continuarem a trajar durante décadas (ininterruptamente até à década de 1960), pelo que sempre houve praxes a caloiros trajados, como era próprio, secundum praxis, como sempre tiveram gosto em fazê-lo, sem precisarem de dar provasde um qualquer merecimento praxístico (quando o merecimento resulta, apenas e só, do seu mérito académico, que os colocou na universidade).

 Diamantino Calisto recorda o seu tempo de novato (caloiro) dizendo:

 “Em 1901 – 17 de Outubro, salvo erro -  apresentei-me na Universidade com a minha capa e batina “rota e velhinha” (…) atravessei a “Porta Férrea” sem apanhar o “canelão” a que já me referi, isto é, sem apanhar como “caloiro” que era, pastadas na cabeça e nas costas e pontapés ou caneladas acompanhadas das respectivas assuadas, e sem, tão pouco, já dentro da Universidade, ser troçado”[1]

 Alberto Costa (ex Pad-Zé) dizia do seu tempo de novato:

 “Já então desfrutava de uma certa popularidade (…)  minha audácia de entrar a porta-férrea sem protecção, desafiando o coice segundanista, a descarada resistência que opunha às troças, de que o veterano saía por vezes com trombuda cara de caloiro (…)Para mais, eu era o preferido de uma apetitosa tricaninha do Bêco dos Militares, a quem um lente de Direito “fazia bem”, e que me cosia a capa e batina nas ausências recatadas do catedrático.”[2]

 Por sua vez, Antão de Vasconcellos narra, nas suas famosas memórias, o episódio de um famoso caloiro, de seu nome “Bica”, num desacato com alguns veteranos:

 “O Bica tirou a capa e com ella dobrada a meio, como arma de combate, a única de que dispunha, rompeu o cerco e, recuando, disputou palmo a palmo o terreno, até que pôde esgueirar-se com a capa em petição de miséria…..não o apanharam!!”[3]

Também em Barbosa de Carvalho[4], encontramos a seguinte passagem, referente à exploração do caloiro por parte dos veteranos, a quem se vendia um traje em mau estado ou má qualidade, ainda que exigindo pagamento como se fosse pano de 1ª qualidade:

 “Já o José Vitorino se abrigou indevidamente á sombra deste principio, impingindo a um caloiro certa batinade má fazenda, muito para lástimas e com buracos, por preço exorbitante e desmedido.”

Por fim, também em Trindade Coelho[5], a referência a caloiros trajados:

 “…porque nos apareceu no 1° ano um fedelhote e formou-se não tendo ainda na cara sinais de barba! Era Além disso muito branquinho, muito coradinho, muito tenrinho e um quase nada louro, e andava sempre com a sua capa e batina muito escovadas e a risquinha do cabelo muito bem feita!”
(...)
 “Eu, por exemplo, enverguei uma batina no dia em que cheguei a Coimbra, pus-lhe por cima uma capa – e capa e batina foram elas, que me fizeram a formatura!”

R. Salinas Carvalho refere, quanto a ele, enquanto caloiro (1991-12), o seguinte:

“Éramos todos doutores, mesmo em caloiros [para a população]
(…)
O nosso traje era a capa e batina, e a farda de cavalaria para o Alvim , louro e garboso cadete, de bicha dourada, e duas estrelas de metal amarelo, de segundanista e o pequeno barrete militar, “taxinho”, sem pala com francelete de verniz prêto”[6]



São apenas alguns excertos que ilustram um facto que desmonta as muitas estórias, ficções e invencionismos.


Trupe praxando um caloiro
In Estudantes de Coimbra e a sua Boémia,  Ilustração, Ano 6, Nº 141, de 01 Novembro de 1931, p.22
(Hemeroteca Municipal de Lisboa).
Tonsura de um caloiro por elementos de uma trupe.
Pintura mural de finais da década de 1950 que existiu na extinta República dos Paxás
Caloiro protegido pela pasta do veterano, escapando, assim, ao canelão.
In "Estudiantes de Coimbra",  Revista Estampa Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p3
Caloiro alvo de praxe (no que parece ser um rapanço)
In "Estudiantes de Coimbra", Revista Estampa Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p.3


Por outro lado, não enjeitemos o facto do uso do traje ser, desde há décadas, facultativo, o que nunca foi causa do abandono do traje, pelo que o argumento de que os caloiros só aderem ao traje porque esse gosto é miraculosamente incutido por "obra e graça" das praxes, não tem qualquer sentido.


Hoje em dia vestem a “fatiota” especialmente para poderem praxar? Fazem mal, enfermando esse propósito um enorme erro atitudinal, pois o traje não tem por finalidade praxar, pois praxar é apenas uma premissa decorrente do seu uso e do estatuto de já ser "doutor".

Como muitos estarão agora a pensar, exercer certos ritos em caloiros trajados iria, desde logo, colocar reservas a certas práticas, muito por causa (e bem), do respeito que nos deve um traje académico.
Assim, só alguém verdadeiramente sem respeito e sem escrúpulos se atiraria a, por exemplo, conspurcar um caloiro, envergando o uniforme estudantil, com aquelas mistelas do "costume", a mandá-lo deslizar ou rebolar na lama, rastejar em excrementos, etc.

 E quão bom isso seria, para a dignificação da Tradição, até porque essas "brincadeiras" estupidificantes não têm registo na Tradição (excepto na acefalia pandémica que se iniciou a partir dos anos 80 do séc. XX). Aliás, nenhuma obra de referência ou literatura especializada cita, como próprias ou lícitas, praxes que incluam farinha, ovos, molhos, perfumes, pinturas…………….. citam muitas outras práticas - algumas verdadeiramente bárbaras, entretanto abandonadas[7], mas não esses actuais preparos que passaram a ser as praxes em que muitos se especializam e acham ser preciso fazer uma qualquer recruta para estar apto à idiotice.

O caloiro tem o direito inalienável a trajar desde que se matricula no Ensino Superior. Faz, tal, parte do livre direito do exercício da sua cidadania académica ,conferido por um estatuto que decorre exclusivamente da sua condição de aluno universitário (condição essa que não é determinável por nenhum organismo praxístico, mas apenas pela instituição de ensino cursada e ministério da tutela, pois o acto de matrícula, e mesmo o reconhecimento de matrículas, não é da jurisdição da Praxe).


Representação do caloiro sob domínio do doutor.
In Leis extravagantes da Academia de Coimbra ou código das muitas partidas
de Barbosa de Carvalho (1916), logo na 1ª página.
Quartanista Grelado de Direito(à esquerda) e Apadrinhamento de um Caloiro (à direita).
 Pintura de Varela dos Reis, feita na República dos Paxás, anos 50.


A Praxe sempre consagrou a praxe aos caloiros sem nunca referir que pudessem estar “à futrica”, precisamente porque ela parte de uma premissa básica: a lei aplica-se a quem a ela adere, e isso começa exactamente por "vestir a condição".

Ora a condição primárias é a identificação do foro académico, tal só possível pelo uso do traje – que existe exactamente para expressar esse status quo.

Não que quem traje tenha obrigatoriamente de aceitar ser praxado ou tenha o dever de praxar (praxar, ou ser praxado, é tão só um direito, nunca dever), mas é a condição sine qua non envergar o traje académico, para poder (caso queira), também, exercer esse direito.


 ADENDA - para os que acham, nesciamente, que hoje em dia os caloiros não "saberiam" trajar e precisariam aprender a fazé-lo, bem como ganhar o gosto pelo uso do traje (pelos vistos só possível por “obra e graças das praxes”), sob o argumento tonto de que a única coisa que os caloiros sabem de praxe é o que ouviram dos outros (supostamente as parte piores):

que dizer dos jovens liceais que, desde os 16 anos trajavam (e ainda trajam em Évora e Guimarães), sem que a sua tenra idade os impedisse de o fazer devidamente ou ter gosto (e respeito) no seu uniforme?

E os pobres finalistas do 12º ano que, para o baile de finalistas, vão de fato e gravata? Tiveram de ir a uma escola de modelos, fazer um curso num alfaiate ou ler um qualquer tratado régio de "bem vestir em toda a sala"?

TAMBÉM nunca ninguém ensinou um jovem mancebo a usar o uniforme militar (os vários que se usavam durante o tempo de tropa), e certamente que também ouviu muitas histórias sobre quem lá andou.
Precisou de fazer a recruta de jeans e t-shirt para aprender a vestir umas calças, sapatos, camisa, gravata, casaco e boina?

Pois...........



[1] In CALISTO, Diamantino – Costumes Académicos de Antanho, 1898/1950. 3º Milhar, Imprensa Moderna. Porto, 1950, pp. 71-72
[2]In COSTA, Alberto – O Livro do Doutor Assis, 9ª edição, Livraria Clássica Editora. Lisboa, 1945, p. 35
[3]n VASCONCELLOS, Antão – Memória do Mata-Carochas, in meo tempore – Empreza Litterária e Typográphica editora. Porto, 1906, p. 380
[4]CARVALHO de, Barbosa - Leis extravagantes da Academia de Coimbra ou código das muitas partidas. Livraria Cunha. Coimbra, 1916, p.59
[5] In Illo Tempore, Estudantes, lentes e futricas. Livraria Aillaud & Cª. Paris-Lisboa,1902. Citações extraídas das páginas 53 e189, respectivamente.
[6] CALADO, R. Salinas – Memórias de um estudante de Direito, Coimbra Editora Ldª, 1942, p.140
[7] António Macedo, no seu livro “Da Academia do meu tempo aos estudantes de amanhã” (Livraria Internacional. Porto, 1945) refere, às páginas tantas (neste caso na 19) que “Praxistas e anti-praxistas lançaram na mesa os seus trunfos e a “praxe” foi vencida nos seus aspectos degradantes ou de humilhação e atenuada em outros, como na prática inconcebível – e que pelo exagero chegou a ser monstruosa – da “tourada ao lente”…”.




Notas ao Estudo dos Costumes Académicos

Vale a pena trazer à liça o seguinte artigo do nosso muito estimado amigo, António M. Nunes, historiador e consagrado especialista em tradições, protocolo e etiqueta académicas.
Importa em razão da reflexão feita sobre praxes e costumes académicos que, durante tantos anos, foram um "não-tema" na agenda académica.
Hoje, e de há uns quantos anos a esta parte, são já vários, e bons,os estudos e teses sobre estas matérias, permitindo (re)descobrir o património cultural estudantil, de forma mais científica e fundamentada.

Costumes académicos de Coimbra, registados em 1909,
in  Ilustração Portuguesa, Nº 161, de 22 Março 1909, p361

Costumes académicos de Coimbra, registados em 1909,
 in  Ilustração Portuguesa, Nº 161, de 22 Março 1909, p361



"O Leão de Camões

O leão de Camões, inaugurado junto ao Paço das Escolas em 1880. Apontamento de uma fotoreportagem sobre os costumes académicos de Coimbra. Rara figuração do estudante "urso". Por desconhecimento resultante da falta de viagens a outras instituições de ensino superior estrangeiras e de escassa circulação de literatura especializada, as tradições estudantis de Coimbra tendiam a ser vistas nos inícios do século XX como singularidades e casticismos, quando em bom rigor:a) sob diversas formulações e variantes também eram praticadas nas universidades da Alemanha, Suécia, Bélgica e nas faculdades de direito do Brasil;

b) tinham vindo a alastar aos liceus portugueses, ganhando mesmo colorações marcadas pela originalidade (é dificilmente aceitável hoje que nada se soubesse e dissesse sobre as festas Nicolinas dos estudantes do ensino médio/liceal da cidade de Guimarães, ou sobre a popular Festa do Galo das escolas primárias);

c) grande parte dos rituais cíclicos iniciático-punitivos conhecidos em Portugal por praxes, e no Brasil por trotes, eram comuns às escolas militares e quarteis castrenses (ritos iniciáticos, partidas e troças, hierarquias, alcunhas, formas de tratamento, punições);

d) diversas tradições já bem radicadas ou em fase de implementação/invenção em inícios do século XX eram semelhantes às festividades cíclicas realizadas pelas comunidades tradicionais de Portugal, Espanha, Brasil, Bélgica, Itália (caso dos corsos carnavalescos, batalhas de flores em carruagens floridas, queimas e enterros os mais variados).

Nos últimos anos, no Brasil, as faculdades de psicologia e ciências da educação promoveram importantes estudos sobre as vivências estudantis e os trotes (praxes) associadas a processos de afirmação dos matriculandos da classe média e à construção de identidade(s). Indêntico interesse ocorre em França, conquanto colocando a tónica nas relações de poder, nos mecanismos de controle social, nas relações de género e na sempre difícil equação integrar/não integrar, respeitar os direitos humanos/violentar os direitos humanos.
No tempo em que frequentei a Universidade de Coimbra, o professorado rejeitava ostensivamente qualquer hipótese de inclusão destes temas na agenda académica. Havia excepções, é claro, como o saudoso Prof. Joaquim Ferreira Gomes que estudou as instituições de ensino superior, os laboratórios de investigação, os equipamentos científico-laboratoriais, a feminilização do ensino superior e orientou a tese de doutoramento de Manuel Carvalho Prata sobre a academia de Coimbra entre finais do século XIX e os anos inaugurais do século XX. Hoje em dia, esta visão primária e preconceituosa começa a desaparecer. Assimilada a lição bourdieuana, nos últimos vinte anos a sociologia interessou-se pelo estudo dos costumes estudantis. Os investigadores das ciências da educação começaram a explorar os manuais de civilidade e não tarda passarão aos trajes académicos, ritos, festividades, códigos de praxe e instrumentos de construção da identidade do homus academicus. É o que parece anunciar o IX Congresso Luso-Brasileiro de história da Educação, Rituais, Espaços e Patrimónios Escolares que terá lugar em 12-15 de Junho 2012 na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa/Instituto de Educação (http://colubhe2012.ie.ul.pt/).
Fonte: Ilustração Portuguesa, n.º 161, de 22.3.1909

Alguns exemplos:
AAVV - A festa. In: Vértice, n.º 28, Junho de 1990, pp. 7 e ss. (diversos artigos sobre festividades e costumes académicos).
ALBUQUERQUE, Carlos Linhares, e MACHADO, Eduardo Paes - O batizado dos recrutas. Trote, socialização académica e resistência ao novo ensino policial brasileiro. in: Capítulo Criminológico, volume 31, n.º 2, Abril-Junho 2003, pp. 101-127, http://revistas.luz.edu.index.php/cc/article/reviewFile/329/314.
AVELAR, Ediana Abreu - O imaginário da formatura. Um estudo sobre o pensamento dos formandos do curso de direito pertencentes à classe média. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis, 2007 (tese de mestrado), http://www.ucp.br/html/joomlaBR/images/mestrado/ediana%20abreu%20avelar.pdf.
BLANC, Dominique - Du concours au bizutage. Des rites dans les siciétés secularisées. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1999, WWW: http://www.dominiqueblanc.com/index.php?id=29.
BRUNO, Sinésio Ferraz - Vida danificada e trote universitário. Marília, 2003. In: educação em Revista, n.º 6, 2005, pp. 37-50, http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/educacaoemrevista/article/viewFile/597/480.
CARDINA, Miguel - Memórias incómodas e rasura do tempo. Movimentos estudantis e praxe académica no declínio do Estado Novo. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 81, junho 2008, pp. 111-131, http://www.ces.uc.pt/rcc/includes/download.php?id=992.
CARREIRO, Teresa - Viver numa república de estudantes de Coimbra. Real República Palácio da Loucura (1960-70). Porto: Campo das Letras, 2004.
CASTRO, Amílcar Ferreira de - A gíria dos estudantes de Coimbra. Coimbra. Coimbra: Faculdade de Letras, 1947 (Biblos, n.º7).
CASTRO, Celso - O trote no Colégio Naval. Uma visão antropológica. The hazing in the brasilian Navy's College. An anthropological approach. In: Antíteses, Volume 2, n.º 4, jul-dez de 2009, pp. 569-595, http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1839.pdf.
COLLOCA, Viviane Patrícia - O trote universitário. O caso do curso de Química da UFSCar. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos, 2003 (dissertação de mestrado), http://www.bdae.org.br/dspace/bitstream/123456789/1178/1/tese.pdf.
CORBIERE, Martine- Le bizutage dans les écoles d'ingénieurs. Paris: Harmattan Éditions, 2003.
COUSIN, E.- Bizutage et société, 1998.
CRUZEIRO, Maria Eduarda - Costumes estudantis de Coimbra no século XIX. Tradição e conservação institucional. In: Análise Social, volume XV (60), 1979, pp. 795-838, http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223990403T2oCN9gi5Xo15HK9.pdf.
DAVIDENKOFF, E., e PRENEUF, C. de - Du bizutage, des grandes écoles et d'élite. Paris: Plon, 1993.
FRIAS, Aníbal - Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 66, outubro de 2003, pp. 81-116, http://www.ces.uc.pt/publicacoes/rcc/artigos/66/RCCCS66-081-116-Anibal%Frias.pdf.
FRIAS, Aníbal - Patrimonialização da Alta e da Praxe Académica em Coimbra. Comunicação ao IV congresso português de sociologia, http://aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR462de01a41f32_1.PDF.
GARISO, Henrique Manuel da Costa - O direito no feminino. As estudantes da Universidade de Coimbra durante o Estado Novo (1933-1960). Lisboa: Universidade Aberta, 2002 (tese de mestrado. Não foi sinalizado exemplar na Biblioteca Nacional).
GONÇALVES, Albertino - O sentido da comunidade num mundo às avessas. O imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga. Braga: Biblioteca Pública de Braga, 2001.
HOMEM, Armando Luís de Carvalho - O traje dos lentes. Memória para a história da veste dos universitários portugueses (séculos XIX-XX). Porto: flup e-dita, 2007.
LAMY, Alberto Sousa - A Academia de Coimbra (1537-1990). Lisboa: Rei dos Livros, 1990.
LARGUÉZE, Brigitte - Statut des filles et répresentations féminines dans les rituels de bizutage. In: Sociétés Contemporaines, Année 1995, n.º 21, volume 21, pp. 75-78, http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/socco_1150_1944_1995_num_2_1_1420.
LONZA, Furio - História do uniforme escolar no Brasil. Rhodia, 2005.
LOPES, António Rodrigues - A sociedade tradicional académica coimbrã. Introdução ao estudo etnoantropológico. Coimbra: Edição do autor, 1982.
MENDONÇA, Luciana - Trote da cidadania. Editora Fundação Editora, 2002, http://www.objectivosdomilenio.org.br/downloads/Trote-(1).pdf.
MOULIN, Léo - A vida quotidiana dos estudantes na Idade Média. Lisboa: Livros do Brasil, 1994.
NÓVOA, António, e SANTA-CLARA, Ana Teresa (coordenação) - Os liceus em Portugal. Histórias, arquivos, memórias. Porto: Edições ASA, 2003.
NUNES, Henrique Barreto (e outros) - Tradições académicas de Braga. Braga: Associação Académica da Universidade do Minho, 2001.
PRATA, Manuel Alberto Carvalho - Academia de Coimbra (1880-1926). Contributo para a sua história. Coimbra: Imprensa da UC, 2002 (tese de doutoramnto, 1995).
PRATA, Manuel Alberto Carvalho - A praxe na Academia de Coimbra. Das práticas às representações. In: Revista de História das Ideias, n.º 15, 1993, pp. 161-176.
RAFAEL, Berta Maria Maurício - O Liceu de Santarém no espaço local. 1848-1895. Lisboa: ISCTE, 1999 (tese de mestrado).
RIBEIRO, Rita - As lições dos aprendizes. As praxes académicas na Universidade do Minho. Braga: Universidade do Minho/Instituto de Ciências Sociais, 2000 (tese de mestrado), http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/18;http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/286/1/ritaribeiro.pdf.
RIVIÈRE, Claude - L'excès festif juvénile tempéré par le rite. In: Socio-Anthropologie, n.º 14, 2004, pp. 1-25, http://socio-anthropologie.revues.org/index381.html.
SILVA, Lucinda Monteiro da - O Liceu de Lamego de 1888-1970. A construção da identidade histórica. Braga: Universidade do Minho, 1999. Editado em livro: O Liceu de Lamego. a construção da identidade histórica. Lamego: Edição da Câmara Municipal de Lamego, 2000.
SIQUEIRA, Vera Helena Ferraz de, e ROCHA, Glória Walkyria de Fátima - Género e relações de poder no trote universitário. Implicações para a cidadania. Florianópolis, 25 a 28 de Agosto de 2008, http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST5/Siqueira-Rocha_05.pdf.
SOUZA, André Peixoto - Do discurso jurídico-académico ao discurso político. Elementos para a constituição de um sujeito político no Império Brasileiro. Curitiba: Universidade Federal de Paraná/Setor de Ciências Jurídicas, 2003, http://dspace.c3sl.ufpr.br/despace/bitstream/handle/1884/25173/D%20AOUZA,%20ANDRE%PEIXOTO%20DE.pdf?Sequence=1.
Universidade(s). História, memória, perspectivas. Actas do Congresso História da Universidade no 7.º centenário da sua fundação, Coimbra, 5 a 9 de março de 1990. Coimbra: Comissão Organizadora, 1991 (5 volumes).
VILLAÇA, Fabiana de Mello, e PALÁCIOS, Marisa - Concepções sobre assédio moral. Bullying e trote em uma escola médica. In: Revista Brasileira de Educação Médica, 34(4), 2010, pp. 506-514, http://www.scielo.br/pdf/rbem/v34n4/v34n4a05.pdf.
ZUIN, António Álvaro Soares - Trote na universidade. Passagens de um rito de iniciação. São Paulo: Cortez, 2002."



Nunes, A. M. - O leão de camões, http://virtualandmemories.blogspot.com/, 21.10.2011.

Notas aos primórdios do Traje Académico Feminino

Mais uma incursão ao blogue do António Manuel Nunes, Virtual Memories,  cujo artigo aqui reproduzimos integralmente, sem mais delongas, apenas sublinhando a destacando os dados que merecem toda a atenção:


"Estudantes do Liceu de Évora com Florbela Espanca (1917)






Grupo de estudantes finalistas do Liceu de Évora, dois alunos de capa e batina, um aluno com farda militar, três alunas com no novo traje académico de capa e tailleur preto criado em 1914-1915.
Esta fotografia vem publicada por Rui Guedes, Fotobiografia [de] Florbela Espanca. Lisboa: Dom Quixote, 1999, p. 107, com identificação dos seguintes elementos: (esquerda para a direita) Francisco da Cunha Marques, Alice Mendes de Morais Sarmento, Florbela Espanca, Lídia Amélia Nogueira, José Rodrigues Candeias, Joaquim da Cruz Margalho. Florbela evocou o seu tempo de estudante no poema "Colegas do passado/Em vossas capas belas/Agoniza o luar das minhas ilusões (...)".

 A fotografia foi tirada em 1917 e deve ser uma das raras que mostra o traje académico feminino na sua formulação primitiva: casaquinho feminino de três quartos, cintado, saia de funil pela meia perna, sapatos pretos, blusa branca, ausência de gravata.

Esta fotografia não vem referenciada por Adília Zacarias e Isilda Mendes, Tuna académica do Liceu de Évora. 100 anos. História e tradições. 2012, nas páginas dedicadas ao traje académico (32-39). Na página 36, escreve-se "Não temos, até à década de [19]30, fotografias em que estejam alunas do Liceu trajadas".
O que a fotografia supra vem demonstrar é que o traje feminino rapidamente se divulgou a partir dos liceus de Lisboa e do Porto aos restantes liceus (1914 e ss.), traduzindo a força de um movimento espontâneo que passou completamente ao lado dos ministros da Instrução Pública e dos reitores dos liceus. Quando o Ministério da Instrução/Educação decide regulamentar o traje estudantil, versão feminina, fá-lo tardiamente, em 1924, e em artigos péssimos que revelam completo desconhecimento da função, importância, características e morfologia dos trajes corporativos.

 Não vemos coberturas de cabeça nesta imagem, mas sabemos que o acessório mais usado nestes anos nos liceus de Lisboa e de Évora foi o tachinho ou barretina de pano preto, igual ao dos alunos do Colégio Militar, que tanto foi usado por alunos como por alunas.

Por último, saliente-se que o processo de criação deste traje liceal (em meados da década de 1940 passará a universitário graças ao Orfeão da UP, quando o seu uso já estava generalizado na maior parte dos liceus portugueses) está perfeitamente inserido no contexto ocidental da época, coincidindo com as fardas desenhadas expressamente para as mulheres que exerceram tarefas colaborativas nas forças militares dos USA, Canadá, Grã-Bretanha e França durante a Grande Guerra (carteiro, enfermeira, condutora de ambulância, Cruz-Vermelha)."

Notas de Praxe em debate na FCUL